Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Fugindo da selvageria, por Izaías Almada

Pena que ao nos tornarmos adultos, percamos essa sinceridade e a transparência das crianças.

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Fugindo da selvageria

por Izaías Almada

Escrever sobre o Brasil atual às vésperas das eleições presidenciais está dando urticária na pele. Vou mudar um pouquinho de assunto e lembrar coisas interessantes.

As crianças, por exemplo, são maravilhosas, em particular quando andam aí pelos quatro, cinco anos de idade. Aprendem a falar, mas ainda não compreendem determinadas frases, expressões ou mesmo onomatopeias sonoras que criam lá dentro das suas cabecinhas.

Trocam as letras de muitas palavras, criando uma linguagem própria ao mesmo tempo cômica e saborosa, mas como estão se socializando, aprendendo, falam e se expressam com muita confiança e “conhecimento de causa” todo o seu vocabulário… Um mundo encantado…

Cito aqui duas pérolas para começar: há alguns anos descia eu a Rua Augusta aqui em São Paulo, quando cruzei com um casal, cuja filhinha caminhava segurando a mão do pai… As calçadas da Rua Augusta, que entre a longa descida da Avenida Paulista até a Rua Estados Unidos tem alguns degraus feitos em pedra ou cimento para ajudar os pedestres a não perderem o equilíbrio… Ao se aproximar de um desses degraus a menininha disse para o pai com sua vozinha de grande conhecimento: “papai, toma cuidado com o DREGAU pra não cair…”.

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Outra historinha eu presenciei dentro de uma loja da Kopenhagen, quando também uma menina dos seus quatro ou cinco anos puxava a mãe pelo vestido e apontando para uma pilha de caixas de chocolates dizia: mamãe compra uma LINGA DE GUATO pra mim?

Posso citar também minha própria filha, Ana Luísa, hoje uma moçona, mãe do meu neto Leonardo, na altura com seus quatro aninhos… Estava entretida a brincar com um desses jogos de encaixar as peças e diante de alguma dificuldade momentânea, ouvi-a exclamar: “PUCAMELA!” Como não entendi o significado da expressão, perguntei-lhe o que havia dito e ela repetiu: “PUCAMELA!”.

Algum tempo depois é que me dei conta. Na verdade, tratava-se de uma expressão chula e que expressava sua revolta por não conseguir colocar a peça de papelão no lugar exato do joguinho. Significava nada mais, nada menos “puta merda!”, ouvida – com certeza – na conversa de adultos, da qual não nego a minha irresponsabilidade.

Outra pérola é a resposta de um menino quando lhe perguntaram pela mãe: “Como está sua mãe, Pedrinho?” A resposta foi seca e brilhante: “MAMÃE ESTÁ LÁ EM CASA SENTADA, OLHANDO…” Profundo senso de observação.

Um primo da minha companheira, também na mesma faixa de idade, chegou com a mãe a uma festinha de aniversário. Os adultos, sempre bajuladores, atacam com suas tradicionais perguntas: “E aí, Carlinhos, cadê o seu pai?”. A resposta, decidida, mostrava também um agudo senso de observação e pragmatismo: “PAPAI FOI TRABAIÁ PÁ COMPÁ PIJUNTO”, pois o Carlinhos adorava presunto.

Por último, uma aventura do meu filho caçula, o Vinícius, hoje com seus quarenta anos de idade. Era eu sócio de uma empresa produtora de filmes publicitários, quando numa determinada tarde recebi a visita do pequeno Vinícius acompanhado do padrinho Jorge.

Lá pelas tantas, o padrinho foi até uma padaria próxima ao escritório e levou o Vinícius, oferecendo-lhe a perspectiva de um sorvete ou uma barra de chocolate. 

A preferência foi pelo chocolate e o padrinho comprou duas: uma para o Vinícius e outra para a irmã, que estava no colégio. No caminho de volta para a produtora o Vinícius comeu com enorme prazer a sua barra de chocolate, chegando ao escritório com aquele indefectível bigode produzido pelo chocolate derretido ao redor da boca. Lavou as mãos, limpou-se e dirigindo-se ao padrinho, disparou: “agora eu quero meu chocolate…” O padrinho Jorge, surpreso e com ares pedagógicos respondeu: “mas o seu você já comeu pelo caminho.” Meu filho não teve dúvidas: “NÃO, AQUELE ERA O DA MINHA IRMÃ, AGORA EU QUERO O MEU…” Gênio.

Pena que ao nos tornarmos adultos, percamos essa sinceridade e essa transparência das crianças. O mundo seria bem melhor.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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