Uma sagrada família evangélica, por Fábio Oliveira Ribeiro

Esta crônica satiriza o famoso "cidadão de bem", obcecado por armas e frequentador de algumas igrejas que propagam a homofobia

José foi criado pela avó na periferia do Rio de Janeiro. Em razão das contradições e privações de sua vida de mulatinho bonito e miserável, ele trocou a Escola pela boca de fumo. Aviãozinho do tráfico, ele se tornou viciado em maconha e começou a cometer pequenos furtos para completar e renda e sustentar o vício.

Aos 15 José foi internado numa instituição para adolescentes infratores. Aos 19 foi condenado à prisão por roubo à mão desalmada. No presídio, porém, ele encontrou Zezuis e se tornou ‘cidadão de bem’, sem pecados nem vícios. Quando foi solto, José se tornou obreiro na igreja do pastor que o batizou no pátio da prisão, com a missão de cobrar o dízimo ameaçando os devedores da fé com o sangue de Zezuis.

Após o capitão Bolsonaro ganhar a eleição e inundar o Brasil de armas de fogo, José decidiu realizar seu sonho. Com ajuda do pastor, ele comprou um trezoitão cano curto preto à prestação documentado. Durante os cultos ele era visto com sua ferramenta de trabalho na cintura, sempre pronto a despachar à bala o capeta do corpo qualquer infiel que tentasse fiscalizar o dinheiro arrecadado e utilizado com grande liberdade e egoísmo pelo pastor.

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Um dia feio de outono, José foi à loja de material bélico de um irmão evangélico. Ele precisava comprar munição ungida. Ao entrar na loja ele tropeçou e caiu ao ficar prestando muita atenção na bunda de uma moça debruçada no balcão. Ela sorriu e o ajudou a levantar. Ele acariciou acidentalmente a perna dela.

– Prazer, sou o José – disse o rapaz.

– Meu nome é Maria. Você é irmão?

– Sou sim. Obreiro de Zezuis. O que uma moça bonita como você faz numa loja de armas?

– Quero comprar um revólver, pois sou devota e meu pastor recomendou.

A atração entre os dois foi imediata. Mas foi somente depois de uma bela trepada que José ficou sabendo que Maria era ex-puta convertida e dizimista. Ela também conseguiu penetrar os segredos tristes, engraçados e picantes daquele ‘cidadão de bem’ que entrou na vida dela aconselhando-a a comprar um 38 Tauros niquelado cano curto. Na primeira noite de amor, ambos fizeram um pacto solene diante de seus revólveres. Maria fez José ajoelhar e solenemente jurar que nunca violaria aquele pacto.

Casamento marcado, ambos só tiveram um problema. Escolher em que igreja iriam se casar. Maria fazia questão de casar na igreja dela. José não queria ofender o pastor de quem era obreiro. O jeito encontrado para resolver a disputa foi sofisticada. Após várias negociações, ficou acertado que o casamento seria realizado na igreja da noiva, mas celebrado pelo pastor do noivo. Os dois pastores dividiriam igualmente o preço pago pela cerimônia. O dízimo arrecadado foi embolsado pelo dono da igreja. Mas José teve que compensar por fora o pastor de sua própria igreja.

Um ano depois do casamento nasceu o filho do casal. Ele foi chamado de Jesus. O batismo foi celebrado nas duas igrejas. Cada qual pagou a despesa do seu pastor. Durante o batismo, José acabou reencontrando um colega de cárcere que também havia sido convertido em nome de Zezuis. Na prisão, Oscar era gay. Abduzido por uma comunidade evangélica, ele foi curado. Mas de vez em quanto o demônio o fazia sentir comichões.

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A tentação que o ex-gay sentiu por José foi imediata e irresistível. Com paciência, Oscar se reaproximou do ex-amigo íntimo de cárcere. A intimidade renasceu entre os dois. E não demorou para que ambos voltassem a pecar juntos em nome de Satã, quero dizer, de Zezuis.

– A ‘gayzidade docês é um pobrema grave’, mas não existe mal que não possa ser curado com malemolência teológica e algum dinheiro, louvado seja Zezuis! – foi o que disse o pastor de José ao saber o que estava ocorrendo.

O preço pelo acréscimo de felicidade na vida do casal evangélico gay foi uma rachadinha. Doravante José e Oscar teriam que dar mensalmente uma parcela extra dos seus rendimentos para o pastor. Em troca ele acobertaria o relacionamento de ambos e apaziguaria as suspeitas crescentes e as carências sexuais de Maria.

Tudo poderia ter dado certo, exceto por um detalhe. A mulher de José era obsessiva, intolerante e ferozmente fiel ao pacto que o casal havia feito na sua primeira noite de amor. No dia que finalmente ela surpreendeu ele e Oscar fazendo amor na cama do casal, a desgraça foi inevitável, com tiros e mortes.

– Matei sim, seu delegado. Matei, em nome de Zezuis. – disse Maria ao começar a prestar depoimento após sua prisão em flagrante.

– Você matou ambos porque eles eram gayzistas? – perguntou o delegado, querendo qualificar o duplo homicídio como ‘crime cometido por homofobia’ para poder desfrutar alguns minutos de fama na Rede Globo.

– Não. O motivo não foi esse não, seu doutor – disse Maria.

Antes que o delegado fizesse uma nova pergunta, ela acrescentou apontando para os objetos apreendidos na cena do crime que estavam na mesa dele:

– Matei porque José traiu meu 38 Tauros cano curto com essa pistola Beretta M9. Nós havíamos jurado ser um Casal Trezoitão e essa traição imperdoável eu não poderia perdoar não. Entende?

O delegado obviamente não entendeu e se limitou a reduzir a termo o que ela disse, palavra por palavra. Felizmente o filho do casal estava no barraco da irmã da mãe dele quando da tragédia. Órfão de pai e condenado a ficar separado da mãe encarcerada, o menino Jesus terá um longo passado pela frente.

אַלץ איז פאַרלאָרן און פאַקט אַרויף

אַלץ איז פאַרלאָרן און פאַקט אַרויף

A Ilíada narra uma guerra que se desdobra em dois planos. Enquanto gregos e troianos se digladiam na praia e próximo às muralhas de Ílion, o conflito entre os deuses no Olimpo esquenta à medida que cada um deles passa a apoiar e a ajudar um dos campos inimigos.

A eleição presidencial brasileira de 2022 também se dará em dois planos. Enquanto os dois principais candidatos e seus apoiadores lutam para garantir maioria na urna, três divindades estão começando a brigar. Refiro-me obviamente ao Zezuis Trezoitão, Zezuis Pistola 765 e Zezuis Fuzil AR-15.

No campo evangélico a disputa pela hegemonia entre os três Zezuis provocará sangrentas batalhas dentro das igrejas. O peso do eleitorado fanático vai se fazer sentir nos cemitérios.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Fábio de Oliveira Ribeiro

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