Ainda sobre o carnaval, por Matê da Luz

Antes de mais nada, eu não odeio o carnaval.

Apenas acho que o dito o maior espetáculo da terra, acaba por reforçar um contexto que, além da alegria contagiante – para alguns – fere, duranta quase uma semana, as vias de regra da vida real, em geral.

Tudo pode no carnaval: beber além da conta, beijar além da conta, estar nu além da conta, estar feliz além da conta, cuidar do corpo além da conta, como se esta semana fosse a única que importasse.

É isto o que mais me incomoda: como se esta semana fosse a única que importasse.

Se todos nós mantivéssemos nosso compromisso e bebêssemos para celebrar, beijássemos muito para seduzir e nos mantivéssemos felizes e contentes com nossa exposição física (além de todas as outras que todos nós possuímos), acharia condizente que nesta esta conduta continuasse, sem abusos e exageros, além de estarmos dividindo equalitariamente todo esse tanto de tudo pelos 12 meses do ano.

Mas não: reprimidos, sentimos e somos o carnaval como um “agora pode” que quebra lutas e provoca esquecimentos – às vezes literais. A fantasia, ao meu ver, não apenas mascara uma realidade dura demais, visto que estamos sem água em diversos pontos do País, sob um esquema de apontamentos de corrupção sem fim no esquema político (embora eu tenha a crença de que esta exposição toda faz parte de um todo positivo, onde está tudo tão exposto que não dá mais pra não se envolver com afinco e exigir o melhor) e, ainda, particularmente poucos estejam sentindo um tanto de felicidade, mas traz de volta a vida real com um mix de sofrimento e saudade, além da expectativa para o próximo ano: no carnaval, afinal de contas, tudo fica melhor.

Não, repito: não odeio o carnaval nem sou uma pessimista de plantão.

Apenas desejo e emano, ano após ano, que nossa vida seja repleta de confete e serpentina durante um tempo maior do que uma semana, e com tamanha verdade que não precisaremos mais de uma espécie de habeas corpus para celebrar a vida, numa migalha de semana de celebração.

Mariana A. Nassif

6 Comentários

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  1. Vitrine

    Credo que horror, uma semana com a vitrine aberta para as pseudo celebridades mostrarem seus atrativos corporais já torra a paciencia, imagina essa vitrine aberta para essas tais se exporem durante longos 12 meses….. cruz credo que horror.

  2. Mais coisas entre o céu e a terra…

    Parece-me que faltou humildade à nossa comentarista, para perceber que o carnaval vai além do que ela pensa e o que ela quer. Mas como ele é irremediavelmente diferente, nossa comentarista não se conforma. Tudo bem, mas talvez tudo o que faça com a sua prédica seja apenas dar murro em ponta de faca. Porque carnaval não é daquelas coisas que obedeçam às pequenezas, que se dobrem facilmente a imperativos domesticadores.

    O carnaval é tão maior e mais complexo que alguns antropólogos já o tentaram explicar como “rito de inversão”. Roberto da Matta importou essa ideia dos antropólogos britânicos que trabalharam na África do Sul na década de 30, e ela é uma ideia poderosa, daquelas que querem explicar tudo e acabam não explicando nada.

    Por essa interpretação, no carnaval, o sentido mesmo de ordem seria invertido, para que essa experiência, esse lapso “sagrado”, possa justificar, por contraste, radicalidade e prova vivencial, a existência e manutenção da ordem trivial e profana da vida corriqueira. Essa é, no fundo, uma explicação psicologicista, mas acerta na intuição: há certas coisas da experiência humana que são feitas mesmo para ultrapassar a trivialidade, e assim elas são vividas.

    A vida não é só a eterna pasmaceira da mediocridade diária. E aí está o mistério e a potência carnavalesca, muitas vezes até vivida como experiência do sublime.

    Mas a vida também não está repleta de confete e serpentina o ano inteiro. No geral, ela é feita de trabalho, de engarrafamento, de metrô ou ônibus lotado, de contas a pagar e problemas a resolver. Essa é a vida social produtiva e muitas vezes desajeitadamente regrada, mas é a forma (às vezes muito mal disposta) de lidarmos permanentemente com a externalidade do mundo, que não é mera satisfação dos desejos narcísicos. Uma coisa é contestarmos essas disposições sociais; outra, é acharmos que possamos viver sem disposição ordenadora alguma. E nada nos garante que a “solução” para uma ordem mal disposta seja apenas importar do carnaval sua dose de hedonismo individualista.

    A contraface da “vida dura” não implicaria em tentar explicar o carnaval como “compensação”. Isso seria apenas uma aritmética idealista. Mas o carnaval é uma experiência disruptiva de possibilidades. Em seu curioso agonismo, ele também nos ensina que, quando a vida retoma seu curso “duro”, a festa dos desejos irrefreados já não faz mais sentido.

    Por isso é que não faz sentido querer que a vida seja um eterno carnaval. Tanto quanto não faz sentido querer que o carnaval se medriocrize em nome de uma vida pretensamente “bem regrada”, como se todo o calendário e, portanto, a experiência do curso do tempo, fosse passível de ser homogeneizada numa espécie de paraíso stalinista ou fukuyâmico do fim da história.

    O carnaval é um desses momentos particularmente prenhes de significações, onde uma experiência do desejo se converte em uma forma de experiência do sentido, sem que isso seja necessariamente racionalizado, porque, como nos explicava Lévi-Strauss, a cultura é antes de mais nada essa camada de inconsciente simbólico.

    O carnaval, em sua rica loucura, pode ser muito mais do que suspeitam algumas vãs filosofias.

  3. Tá precisando se embriagar, moça. Gozar o carnaval …

    Festa é pra isso mesmo,e necessária:fugir,sonhar,sorrir,inverter papéis(havia choros,pelos “perseguidores” de alguns blocos,no último dia, em Recife (cfe. XYZ…ah,citar não importa tanto assim).Nos líricos frevos-de-bloco típicos de Recife,sejam os antigos (início da década de 20),sejam os mais recentes,principalmente nos BCM,já estavam letras cantando e se dançando tristezas, saudades, o regresso,a volta à vida cotidiana,ou ao passado “que não volta mais”. Por isso mesmo, esquecendo.Do muuuito anterior aos autores citados: “É preciso estar sempre bêbado” (o lamento e a pomposa erudição tb é uma forma de embriaguês).Nem se precisam de Robertos Da Matta, o midiático, e como é chique…

    1. 1924 – não encontro a música que é ritmo de Dobrado, marcial

      MARCHA DA FOLIA (Raul Moraes) 1924 Hino do Bloco das Flores:  “Bloco das Flores por onde passa. Semeia com tal graça ao som de lindas canções. E os esplendores dessa alegria Que as almas extasia E apaixona os corações Viva a folia do carnaval Intensa alegria sem outra igual Que olvidar faz a dor ferina E nos ensina a sorrir e amar Temos na vida só dissabores Tristezas, amargores e a desilusão final Mas de vencida o mal levemos E esqueçamos que sofremos divertindo o carnaval. Viva a folia do carnaval Intensa alegria sem outra igual Que olvidar faz a dor ferina Que nos ensina a sorrir e amar.” Originalmente (que tenho em vinil e não sei transformar pra CD, nem upload em youtube).

      1. Uma versão (Antônio Nóbrega)

        é besteira comparar versões, mas eu sou besta: tira muito da gravação em ritmo de guerra, o  início é muito claro quanto a isto (que se perde aqui). A revolta, a superação no carnaaval, da dureza do resto do ano. Mas… brincando co carnaval, é sabedoria (e olhe que eu não sou idólatra do que seja popular. Aliás, não sou, ou acho que não sou, idólatra de nada)

        [video:https://www.youtube.com/watch?v=dhb6K8IO39M align:left]

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