O fim da própria Cultura? Por Antonio Uchoa Neto

Espero estar errado, mas creio que o que está ao fim é a cultura entendida como fazer humano para aprimorar o próprio homem

Comentário originalmente publicado no post Livraria Cultura, o fim de uma era, por Luís Nassif

Por Antonio Uchoa Neto

Fim de uma era… não sou (nem quero ser) nenhum Fukuyama, e espero estar tão errado quanto ele, mas creio que o que está chegando ao fim é a própria Cultura, entendida como fazer humano com vistas ao aprimoramento do próprio homem, e com vistas também a um melhor entendimento do mundo e das relações sociais.

Ao Estado da Natureza seguiu-se o Estado da Cultura, e agora estamos no limiar do Estado do Algoritmo. O fazer inumano dessa entidade não visa qualquer tipo de ampliação da capacidade cognitiva e intelectual de seu criador, o Homem, visa apenas reproduzir valor para acumular. Nas próprias mãos, bem entendido.

Se o prezado leitor lê um livro, ao fim desse ato – que durará, dependendo do número de páginas, apenas algumas horas, consecutivas ou intercaladas – ele estará alguns centímetros mais inteligente, mais bem informado, mais apto a compreender o mundo e os seus semelhantes, e, na maioria dos casos, mais capaz de compaixão e entendimento.

E após assistir a um desses inacreditavelmente estúpidos videozinhos de alguns segundos dos kwais da vida, como estará o nosso amigo da era digital? Com sorte, estará apenas alguns segundos mais velho, e, na pior das hipóteses, alguns centímetros mais idiotizado. No longo prazo, terá voltado à era da comunicação por grunhidos ou rosnados.

Há muitos anos, meu pai desencorajou-me da ideia de ser escritor, apontando a incongruência de querer ganhar a vida com livros em um país de analfabetos, ou de pessoas que tem dificuldade em discernir uma oração subordinada quando deparam com uma.

Mas, como todo idiota é, em geral, persistente, até hoje estou nessa, colecionando, como o Nassif, desilusões com editoras. E sinto que vivo os estertores de uma era, onde o livro ainda tinha um papel a desempenhar.

O século XX trouxe o primado do som e da imagem – principalmente esta última – e agora vivemos o início do primado do dígito. O raciocínio, além de enfadonho, consome muito tempo das pessoas.

Pensar hoje é dispensável; basta ver, e quanto mais breve e sintético o que houver para ver, melhor. Uma tiragem de 1.000 livros pode levar meses, anos, para ser vendida; nesse espaço de tempo, é possível assistir a milhões de vídeos do kwai e tiktok (os mais uptodate entre os leitores do GGN me perdoem se eu estiver mencionando coisas que não existem mais, mas da última vez que eu toquei no assunto, Kwai e Tiktok eram as plataformas mais conhecidas e utilizadas; hoje, 12/02/2023, já podem ser outras, de que não tomei conhecimento).

Quando o transporte rodoviário foi introduzido no Brasil, as ferrovias deixaram de ser construídas. Quando o Rádio, o Cinema, a Televisão invadiram o lado lúdico e intelectual do ser humano, a palavra tornou-se dispensável, e entrou em declínio – hoje, está definhando e em perigo de extinção.

Fecham-se as livrarias, não há mais consumidores. O mundo está com a cara enfiada nos celulares, essa praga moderna que põe no chinelo seus similares do Egito ou de qualquer outro lugar.

Nem quero saber como será essa Idade do Algoritmo que ora se inicia, mas desconfio que distopia nenhuma já imaginada pelo Homem a igualou ou antecipou. E tenho pena daqueles que a viverão. Eu não. Não tenho nem pretendo ter filhos, não vou transmitir a nenhuma criatura a miséria de viver num mundo sem livros e ideias.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

3 Comentários

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  1. Bem lembrado o nome Egito no seu texto. Isso reporta-me ao papiro; também aos hieroglifos, fonte de onde os cananeus retiraram os primeiros riscos que depois de aprimorados pelos fenícios converteu-se nesses caracteres com que aqui me expresso. A massificação do papiro durante o Império Romano propiciou um tempo de relativo esplendor das ideias; inclusive daquela que acabou por derrubar o Império: o cristianismo. O fim da massificação do papiro trouxe a Idade Média. Que dispensa apresentações.

  2. Seu comentário, Antonio, dá o que pensar. Se houver pessoas para os ler, 1000 livros serão insuficientes para abordar o tópicos por você levantados. Mas, pensou que não ia ter, tem sim, mas, permita-me, acertar o futuro, o mundo vai acabar, há vida após a morte, a inflação vai subir, o dolar baixar, são coisas só para os que creem, sem crença elas não existem. Incrédulo dessas coisas, gosto de perscrutar o passado: Alguém pensou em prever que Lula ficaria sem liberdade por 580 dias ? Como já sei o desfecho, me pergunto, e fico sem resposta, como estaria hoje Lula, e nós todos, se não tivesse aparecido em seu/nosso futuro um certo hacker ? E se o Gilmar Mendes não estivesse no futuro de um passado recente, algo que ninguém previu, defendendo com galhardia a aplicação de Justiça e desnudando a farsa da condenação de nosso presidente ? Se por questões aleatórias, vontade pessoal ou de força maior, não mais ocupasse a cadeira no STF, outro teria feito o mesmo ? Não sei se o futuro a Deus pertence, mas o passado me convence de que previsões são coisas tais, que o futuro sem as quais, é tal qual. Gostaria de poder analisar hoje o legado da “miséria” de M. de A., se ele a tivesse deixado. E que no futuro alguém pudesse aquilatar a “miséria” do legado de um certo Antonio, que encheu livros com idéias que serviram para impedir a chegada da Idade do Algorritmo.

  3. Prezado Eduardo, não creio que eu tenha feito nenhuma previsão, no meu comentário; apenas constatei uma das possibilidades do que será o futuro. Como eu disse, espero estar errado. A miséria a que Machado se referiu também não é uma previsão, é a constatação de um legado: o da nossa miséria humana, o nosso fracasso como espécie, nossa absoluta ausência de generosidade ou espírito humanitário (coisas que só sobrevivem em alguns poucos de nós, e que só podem vingar se houver quem as financie, muito embora eu desconfie que generosidade ou espírito humanitário não sejam boas decisões de investimento; o retorno é minguado), coisa de que os yanomami, hoje, são apenas mais um pálido reflexo. E nem todos os Machados (e Tolstóis, Dostoiévski, do mundo) serão capazes de deter a Era do Algoritmo. A força deles é a palavra e o raciocínio crítico – coisas que dão trabalho para assimilar. A força da Era do Algoritmo é…bem, todos sabemos qual é a força desse novo Deus, que a humanidade está escolhendo para cultuar e adorar. E que não exige esforço algum para tanto. Basta enfiar a cara no celular, e pronto: satisfação e diversão garantidas. E uma cifose, também, caso o neófito seja azarado. Um abraço, e obrigado pela atenção ao meu comentário (e ao José de Almeida Bispo, também).

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