Machado no palco, o Otelo brasileiro

Pesquisador identifica influência do teatro na obra de Machado de Assis

 

Ubiratan Brasil – O Estado de S. Paulo – 25 de abril de 2014

Antes de ser romancista (e de se transformar em um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa), Machado de Assis (1839-1908) desejava ser dramaturgo. Ainda jovem, chegou a escrever sete peças, mas foi o veredicto do jornalista Quintino Bocaiuva quem o convenceu a adotar a ficção: “Bocaiuva lhe disse que suas peças eram mais para serem lidas que encenadas, pois eram mais cheias de ideias que de dramas”, observa o escritor e pesquisador José Luiz Passos, autor de Romance com Pessoas, obra que ganha nova versão, agora pela Alfaguara, e que se consolida como uma das principais análises contemporâneas sobre a escrita machadiana.

O pesquisador passou longos meses na Academia Brasileira de Letras, folheando os livros que pertenceram à biblioteca de Machado. “Levantei a marginália dele, ou seja, o que anotou, sublinhou, tentando descobrir o que lhe interessava e como isso teria influenciado sua ficção”, conta Passos, que notou Shakespeare como uma referência constante. “Talvez, com exceção da Bíblia, ele seja o autor individualmente mais citado por Machado: há cerca de 230 referências diretas a quase 20 peças do bardo – desde 1858, quando publica seu primeiro poema, Ofélia, referência a Hamlet, até 1908, quando cita Shakespeare em Memorial de Aires, algumas vezes com ironia, como quando compara o drama de Romeu e Julieta com o de Cibélia.”
Vencedor do Prêmio Portugal Telecom do ano passado com o romance O Sonâmbulo Amador, o pernambucano José Luiz Passos constata que Machado tinha grande interesse pela vida interior dos personagens. “É a pedra de toque da sua literatura. E essa vida é formada pelos valores morais que o sujeito tem dele próprio.”Passos mostra como, em seus romances e contos, Machado utilizou o julgamento moral como um detalhe decisivo na construção dos personagens, tornando-os únicos naquele momento da literatura brasileira (segunda metade do século 19). É nesse ponto que entra a paixão pelo teatro – e mais decisivamente as peças de Shakespeare – como modelo para sua “sondagem da vida interior e do engano moral”.

Passos notou ainda que, nos momentos centrais dos romances machadianos, em que o protagonista se avalia, ou entra em crise, Shakespeare é invocado. “Com isso, tentei criar uma relação entre a fascinação pelo bardo com a mecânica de criação dos próprios personagens.”

 

Para autor, a presença da peça de Shakespeare é fundamental na obra do bruxo do Cosme Velho

Ubiratan Brasil

Em sua pesquisa sobre a importância de Shakespeare na obra de Machado de Assis, José Luiz Passos fez importantes descobertas. Percebeu, por exemplo, que o autor brasileiro se refere a Otelo ao menos 30 vezes em sua obra. “Ele tenta reescrever Otelo em vários contos, flerta com isso em Ressurreição, no qual cita Iago, até atingir o auge em Dom Casmurro”, observa ele, lembrando de uma obra clássica dos anos 1960, O Otelo Brasileiro de Machado de Assis (Ateliê), em que a americana Helen Caldwell traça um perfeito paralelo entre Otelo e Dom Casmurro, a ponto de se fazer pensar que Capitu, assim como Desdêmona, é inocente na traição.

Em seu livro Romance com Pessoas, cuja primeira edição saiu em 2007, José Luiz Passos torna precisa ainda a afirmação de Machado ser o grande nome da literatura brasileira no final do século 19, época dominada por escritores românticos, como José de Alencar, e naturalistas, como Aluízio de Azevedo. “Entre esses, Machado cria o que digo ser uma terceira via.”

Na época, aponta o pesquisador, havia dois modelos que dominavam o mundo da ficção. Um era o de Alencar, marcado por relações arquetípicas e valores ideais, como a virtude, a pureza, a vilania. “Os personagens eram marcados por valores absolutos, que determinavam traços de personalidade ou qualidades associados a valores sociais”, conta. “Havia também a fórmula naturalista, em que os personagens são resultantes de determinações muito maiores, e incontroláveis, de origem climática, racial, etc.”

E eis que Machado cria uma terceira via para o romance, uma outra maneira de observar, em que predomina uma descrição mais robusta do universo interior dos personagens, oferecendo-lhes uma psicologia plenamente individualizada.

“E como Machado faz isso? Optando por uma espécie de anacronismo deliberado e buscando na literatura do Renascimento (Cervantes, Shakespeare, Dante e Camões) determinadas maneiras de falar sobre valores humanos que pertencem à vida moral, ao mergulho do eu, ao terreno da dúvida, à avaliação do indivíduo, e à capacidade de fingir”, analisa.

“Com isso, adensa os personagens fazendo com que tenham uma relação complexa com o tempo, ou seja, que eles percebam que mudaram entre o começo e o fim da história.”

Gênio ou crápula. Exemplos não faltam. Em Iaiá Garcia, a protagonista se educa observando as outras pessoas dissimularem. “Ela começa como uma adolescente ingênua e chata e termina como uma mulher segura e informada pela desconfiança. Já Brás Cubasreconta a própria história de uma forma que, se o leitor confiar, descobre um gênio, mas, se desconfiar, encontra um crápula. O que esses personagens diferem dos alencarianos e naturalistas é um dinamismo moral, uma invenção machadiana para as letras brasileiras. Ele cria uma variante fundamental para a narrativa nacional que vai resultar no realismo psicológico.”

Na conversa que teve com o Estado, Passos revelou particular interesse pelas obras finais de Machado, Esaú e Jacó (1905) e, sobretudo, Memorial de Aires (1908). “Eles espantam o leitor, pois não têm a pirotecnia verbal e conceitual de Brás Cubas, nem o pathos trágico de Dom Casmurro, ou mesmo aquela alegria humana e às vezes farsesca de Quincas Borba. São romances muito sutis, pertencentes à fase simbolista de Machado.”

Futuro. Um dos planos do pesquisador é escrever sobre a relação de Machado com Henry James, sobretudo nas semelhanças entre Memorial de Aires e Os Embaixadores. “Aires é um personagem dentro do romance, pois se trata de um diário, mas a visão de mundo do narrador onisciente em terceira pessoa se cola de tal maneira à consciência de Aires que ela é uma perspectiva dele. É fascinante e é uma técnica literária também utilizada por James, em seu livro”, observa. “Ainda pretendo escrever sobre essa conexão entre a última obra de Machado com Henry James.”

ROMANCE COM PESSOAS
Autor: José Luiz Passos
Editora: Alfaguara(400 págs.,R$ 46,90 ou, na versão e-book, R$ 29)

 

Estudo revela compreensão inovadora da obra de Machado de Assis

.José Luiz Passos arrisca um largo passo atrás, a fim de recuperar a potência inicial do gênero romance

João Cézar de Castro Rocha – O Estado de S. Paulo – 25 de abril de 2014

No sentido amplo da palavra, Romance com Pessoas é um livro excepcional.

De um lado, José Luiz Passos desenvolve uma leitura marcante do conjunto da obra de Machado de Assis, com destaque para um entendimento inovador de seus nove romances. De outro, seu ensaio distancia-se radical e deliberadamente dos métodos dominantes no estudos literários, em geral, e dos estudos machadianos, em particular.

Vejamos como se reúnem as duas excepcionalidades, esclarecendo a força da original análise da “imaginação em Machado de Assis”. Passos guia o leitor, explicitando seu projeto: “a despeito da imensa variedade de perspectivas sobre o autor, ainda não dispomos de um vocabulário conceitual sensível para descrever as principais situações narrativas que ele nos propõe”.

O propósito do ensaio é precisamente esboçar tal vocabulário. Porém, o caráter fragmentário do livro não deixa de ser desconcertante. Ele é composto por uma instigante colagem de breves estudos de personagens e situações ficcionais, além de notas reveladoras acerca de fontes tanto de Machado quanto de Passos: aqui incluídos os nomes de Santo Agostinho, David Hume, John Locke, e, claro, à frente de todos, William Shakespeare.

Ciente do risco, no instante “Pessoas”, o autor se converte em autêntico Virgílio, assumindo o papel de condutor da leitura: “A meio caminho deste ensaio, é tempo de fazermos uma pequena revisão (…). O que significa dizer que um romance é sobre a pessoa humana? Procurei defender a noção de que os romances de Machado são sobre o modo como indivíduos conduzem suas vidas”.

Destaque-se a ousadia da empresa. A escrita ensaística de Passos parece muito mais próxima da imaginação crítica de um Edmund Wilson e de um Lionel Trilling do que dos arrevesados debates contemporâneos.

No fundo, o autor arrisca um largo passo atrás, a fim de recuperar a potência inicial do gênero romance. Perfeitamente expressa, aliás, no programa de Henry Fielding, definido no Tom Jones (1749): “o Exemplo é uma forma de Retrato, no qual a Virtude aparece como se fosse um Objeto Visível, e nos surpreende com a Ideia daquele Encanto que, segundo Platão, encontra-se presente na Virtude em si mesma”. Se a filosofia – ou a teoria da literatura, sussurra o autor – traduz em conceitos a matéria vital, a literatura nela se constitui, oferecendo ao leitor um espelho que, ao ser atravessado, devolve-lhe uma imagem mais nítida de sua dimensão propriamente moral. Eis como Passos a entende: “autoexame deflagrado pela suspeita dos motivos alheios”.

Em tom menor, a mesma vocação existencial foi retomada pelo narrador proustiano: “assim muda nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores, mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação”. Passos inventa sua aposta pascaliana: a literatura possui um valor epistemológico fundamental, embora negligenciado nas últimas décadas. Trata-se do sentido existencial inerente ao ato de escrever e, sobretudo, de ler ficção. Daí, a pertinência da pergunta que soa improvável aos ouvidos críticos coevos: “saber se o romance pode nos tornar melhores pessoas”. Na perspectiva aqui delineada, a pergunta nada tem de ingênua.

Pois bem: como se não bastasse, Passos valoriza um conceito que a crítica brasileira transformou num Judas em sábado de aleluia: “Proponho que, seguindo uma sugestão de John Searle, façamos do realismo uma prática que nos oferece a extensão imaginada do nosso conhecimento e de nossas crenças sobre nosso próprio mundo”.

O gesto se impõe, pois é preciso assegurar uma ponte entre o ato de leitura e o autoexame, as dissimulações, os cálculos e as desilusões dos personagens machadianos. Então, e o achado revela o escritor, romance com pessoas. No texto, claro está, mas também do outro lado: ler uma narrativa, ensina Passos, também é ler-se a si mesmo. Esse caminho de torna-viagem é o percurso por ele iluminado.

E há mais: uma análise inspirada da gênese do personagem Brás Cubas, visto como um compósito de personagens dos romances da chamada primeira fase. Ainda: páginas bem pensadas acerca da centralidade de Shakespeare na literatura e na visão do mundo de Machado. Não é tudo: a exemplo do que fez Wolfgang Iser em seu estudo sobre Laurence Sterne, Passos constrói seu entendimento da ficção em diálogo com Hume e Locke, sublinhando a relevância da noção de empatia.

José Luiz Passos realizou uma façanha crítica: muito jovem, já construiu um espaço só seu. Território generosamente franqueado ao leitor que decidir acompanhá-lo nessa bela ruptura em que o alarde é substituído pelo senso cavalheiresco, quase aristocrático, da exata proporção.

JOÃO CÉZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ E AUTOR DE ‘MACHADO DE ASSIS: POR UMA POÉTICA DA EMULAÇÃO’

Redação

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