Justiça não é imparcial, defender legalidade não basta, por Monica Stival

Do Outras Palavras

“Estado democrático de direito” ou “Democracia”?

Por Monica Stival

“Justiça”, estátua de Alfredo Ceschiatti diante do Supremo Tribunal Federal

Por uma esquerda que rejeite o mito da neutralidade das leis; e que defenda, em vez a “legalidade” abstrata, os conflitos, a pressão social e a disputa no interior do sistema jurídico

Proponho que nós, de esquerda, reflitamos sobre o que significa defender pura e simplesmente “a legalidade”, “o Estado de direito”, “a aplicação imparcial das leis”.

Quando discutimos os meios de comunicação, quando discutimos as intervenções e posições cotidianas, mesmo aquelas em almoços familiares ou nas confusões sentimentais em grupos de amigos, costumamos mostrar como é ingênua a afirmação da neutralidade. Tomamos já como discussão vencida a ideia da imparcialidade. Por que, então, haveria neutralidade ou imparcialidade no sistema judiciário?

Quando a lei antiterrorismo for utilizada contra manifestações populares, quando a lei de propriedade for utilizada contra ocupações populares daqueles que não contam nem com a garantia do direito à moradia, quando o aborto for absolutamente criminalizado, vamos defender pura e simplesmente a legalidade? Não estou sugerindo, de modo algum, menosprezar o direito positivo; estou propondo disputar o espaço que confere legitimidade às leis, às interpretações e às decisões jurídicas. É nessa medida que defender a Constituição de 1988 é defender o direito positivo vigente sobretudo porque esta Constituição é uma conquista social substancialmente progressista. Nem toda Constituição é imediatamente boa ou justa, de um ponto de vista político e social (não qualquer ponto de vista). É somente este ponto de vista que pode disputar a legitimidade dos processos institucionais – e a disputa política, sabemos bem, não se dá em esfera pública igualitária, mas nos enfrentamentos por narrativas próprias (aqui o papel fundamental das mídias alternativas e das redes sociais, apesar dos pesares) e nos enfrentamentos práticos organizados, como ocupações e manifestações de rua.

Assim, creio que a tarefa crítica de esquerda seja hoje, sobretudo, explicitar a posição política que cada decisão implica. Não podemos sacralizar o direito positivo, como se a aplicação das normas ou os procedimentos pudessem ser “puros”, independentes de narrativas e de perspectivas políticas e morais. Não se pode simplesmente defender a legalidade por ela mesma, mas disputar o sentido e, com isso, o conteúdo do sistema legal. Por exemplo, creio que caiba à esquerda mostrar que, sim, há lei de responsabilidade fiscal, cujo sentido é fundamentalmente liberal; mas ela implica crime de responsabilidade? A ilegalidade que justifica o termo golpe, abstraindo todo o resto do processo complexo de narrativa e inviabilização de certas figuras politicamente fortes, está na ligação entre a lei que regulamenta a gestão orçamentária e a possibilidade de interromper mandato – essa possibilidade não está dada constitucionalmente. Pelo menos se a questão for analisada politicamente. Afinal, além da letra da lei de responsabilidade há o espírito complexo que faz com que outros direitos dependam de grana, simplesmente – combate à zika, combate à miséria, ao desemprego, etc. Vale notar como é curioso defender alteração no sistema institucional executivo por gestão orçamentária e, ao mesmo tempo, como sugere Armínio Fraga em entrevista recente, propor “orçamento zero”, isto é, a suspensão dos repasses constitucionais – muitos dos quais ligados a políticas públicas que se sobrepuseram, por seu valor social e político, à letra do controle fiscal.

Aqui entra a decisão sobre o vínculo entre essas normas, a viabilidade de políticas públicas dentro do preceito liberal do modelo fiscal e a aplicação da lei geral ao caso particular (sem comentar que se aplicaria, se fosse o caso, a todos os governantes, em exercício ou não…). [não vou tratar aqui da questão das ilegalidades que não estão diretamente ligadas ao processo formal de impedimento aberto na Câmara Federal]. A decisão é conceito político por excelência (e não elemento especificamente jurídico, como diz Schmitt, senão formalmente ligado ao sistema jurídico nesse nosso tipo de sociedade).

Portanto, a democracia se revela esse espaço aberto à disputa política e moral sobre as leis, interpretações e decisões. É na democracia que se pode disputar o sentido político que atravessa necessariamente o sistema judiciário, na medida em que é praticado por pessoas. E explicitar isso não significa menosprezar a ordem jurídica, mas mostrá-la tão humana quanto qualquer outra esfera da vida social, tão política quanto qualquer outra intervenção no espaço comum, no espaço público. Não se pode simplesmente defender a legalidade como se estivesse em questão assentir ao que diz o sistema jurídico, como se este fosse um sistema impessoal que se revelasse a origem e o fundamento da verdade e do justo.

Ora, todo movimento social que obteve vitória na demanda por algum direito social sabe que não se pode reservar as transformações do direito positivo exclusivamente ao movimento de jurisprudência, como se as transformações – que não são “frias”, mas reacionárias ou progressistas, isto é, com sentido político – respondessem apenas a uma necessidade interna do sistema jurídico; ou como se fossem legitimadas em discussões igualitárias cujo procedimento estivesse calcado em uma razão comum. As conquistas sociais sedimentadas na forma jurídica são resultado de disputas que envolvem racionalidades distintas, que envolvem força política, que envolvem posição explícita a respeito do sentido progressista que tais demandas representam, considerando a vida concreta das pessoas (não todas, é claro…).

Combater o normativismo não implica dizer que não há democracia, mas estado de exceção. As medidas de exceção só estão em disputa política e social em uma democracia, em um espaço aberto justamente a diferentes narrativas e interpretações sobre os fatos e sobre o dever-ser (direito). Enquanto pudermos enfrentar esse debate, há democracia. E é explicitando o sentido reacionário de interpretações e decisões correntes que poderemos manter esse espaço aberto e nos colocarmos dele de maneira distinta daquela religiosa pela qual se coloca as decisões jurídicas acima da crítica social. Abrir mão de mostrar que há sentidos distintos nas normas e na sua aplicação é abrir mão de colocar-se no espaço aberto e indeterminado que a democracia permite.

Redação

6 Comentários

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  1. A subjetividade, paixão e isenção.

    A quem de direito? Sim a quem de direito possa salvar nossa democracia.

    Em um temporal de pedidos de impeachments, liminares contra posse de ministros, condução coercitiva, grampos, julgamentos politicos sendo conduzidos e votados por pessoas que respondem processos, midias fazendo descaradamente propaganda partidaria até com editoriais, a quem de direito a sociedade pode reclamar?

    O povo ofendido terá que ir à um advogado e entrar com uma ação contra cada um dos envolvidos? E se o advogado for da parte da OAB que entrou com pedido de impeachment? 

    Se não conseguir advogado, procurará o MP , e se o MP for da parte que apóia o impeachment?

    Sse durante o trajeto o cidadão passar mal e for para o hospital , deverá perguntar ao médico se ele apóia o impeachment?

    O mundo brasilis está dividido, a teoria dos interesses difusos e coletivos deixaram de existir, Juizes emitem liminares proibindo a posse de ministros, aplicando rigidamente a lei, e o país e suas instituições como ficam?

    A inercia ou a inepcia, não são perdoados pelo melhor juiz que existe, que é o tempo. E o Brasil não tem tempo para esperar os trâmites ritualisticos da justiça.

    Thêmis usa a espada com o poder da justiça, a balança o equilibrio entre as partes e a venda , a imparcialidade que não vê lados. O poder, o equilibrio e a imparcialidade sendo sendo ameaçados. Basta ver a hostilidade que qualquer juiz sofre ao defender medidas a favor do governo legitimo.

    Esse estado de hostilidade deve ser reprimido, e para isso a justiça precisa tirar a venda dos olhos e olhar ao redor  e ver o que está havendo.

    Dirigentes politicos sendo mortos, manifestações sendo dispersadas com violência, reuiniões pacificas sendo invadidas por policiais armados de metralhadora, estudantes sendo proibidos de se manifestarem em universidades, pessoas de vermelho sendo agredidas, professoras sendo chamadas de comunistas, diretoras sendo ameaçadas por pedirem para alunos vestirem vermelho, até onde iremos?

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    A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.... Frase de Rui Barbosa.

  2. GRANDE JORNALISTA NASSIF,

    GRANDE JORNALISTA NASSIF, MAIS UMA VEZ PARABÉNS, CONCORDO COM CADA PALAVRAS SUAS…!

     

    O STF TEM QUE TOMAR AS REDIAS DESSE IMPASSE POLÍTICO, ANTES QUE ACONTEÇA ALGO QUE FUJA AO CONTRELE DAS INSTITUIÇÕES DESSE PAIS.

    O PAIS ESTÁ ENTRANDO EM CAMPO MUITO PERIGOSO, NO CAMPO DO CONFLITO.

    O STF TEM PARAR DE FINGIR QUE NÃO ESTÁ VENDO, TAMANHO CONFLITO PRÉ-EXISTENTE NO BRASIL, O STF TEM PARAR DE AGIR IGUAL A PILATOS.

  3. A subjetividade, paixão e isenção.

    A quem de direito? Sim a quem de direito possa salvar nossa democracia.

    Em um temporal de pedidos de impeachments, liminares contra posse de ministros, condução coercitiva, grampos, julgamentos politicos sendo conduzidos e votados por pessoas que respondem processos, midias fazendo descaradamente propaganda partidaria até com editoriais, a quem de direito a sociedade pode reclamar?

    O povo ofendido terá que ir à um advogado e entrar com uma ação contra cada um dos envolvidos? E se o advogado for da parte da OAB que entrou com pedido de impeachment? 

    Se não conseguir advogado, procurará o MP , e se o MP for da parte que apóia o impeachment?

    Sse durante o trajeto o cidadão passar mal e for para o hospital , deverá perguntar ao médico se ele apóia o impeachment?

    O mundo brasilis está dividido, a teoria dos interesses difusos e coletivos deixaram de existir, Juizes emitem liminares proibindo a posse de ministros, aplicando rigidamente a lei, e o país e suas instituições como ficam?

    A inercia ou a inepcia, não são perdoados pelo melhor juiz que existe, que é o tempo. E o Brasil não tem tempo para esperar os trâmites ritualisticos da justiça.

    Thêmis usa a espada com o poder da justiça, a balança o equilibrio entre as partes e a venda , a imparcialidade que não vê lados. O poder, o equilibrio e a imparcialidade sendo sendo ameaçados. Basta ver a hostilidade que qualquer juiz sofre ao defender medidas a favor do governo legitimo.

    Esse estado de hostilidade deve ser reprimido, e para isso a justiça precisa tirar a venda dos olhos e olhar ao redor  e ver o que está havendo.

    Dirigentes politicos sendo mortos, manifestações sendo dispersadas com violência, reuiniões pacificas sendo invadidas por policiais armados de metralhadora, estudantes sendo proibidos de se manifestarem em universidades, pessoas de vermelho sendo agredidas, professoras sendo chamadas de comunistas, diretoras sendo ameaçadas por pedirem para alunos vestirem vermelho, até onde iremos?

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    A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.... Frase de Rui Barbosa.

  4. Comentário.

    Desculpe a autora, mas “esquerda” é muito genérico. Talvez ela se refira à “esquerda” que ela conhece.

    Um marxista, por exemplo, nunca trataria a lei de forma abstrata, mas de modo histórico.

    Gente, a coisa já aparece na crítica à filosofia política de Hegel, compreende?

  5. Justiça não é imparcial

    Olà Monica,

    Seu artigo é perfeito!

    Reconheço que muitos temem em afirmar de forma tão clara a parcialidade da Justiça porque isso parece suprimir uma referência objetiva  necessária no processo decisional, qual seja: a legalidade. Contudo, sejamos sinceros, honestos mesmo com a essência desse processo. Tudo o que se faz visando a uma decisão é, inevitavelmente, um ato subjetivo porque somente o homem é dotado da capacidade de escolha que qualquer decisão supõe. Afinal de contas, ninguém é sabão, não é ? Decidir é o ato humano mais próximo da química: é preciso acertar na dose e muitas variáveis interferem nessa dosagem.

    Historicamente se sabe o que significa assumir a postura que você corajosa e ponderadamente defendeu no seu artigo, inclusive por conta da citação a Carl Schmitt., mas o compromisso que se deve ter com o mundo é exatamente melhor compreender o que na História tem e teve peso contra a emancipação do homem e contra a sua dignidade e, assim, conferir a todos um espaço de vida em comum mais benéfico do que aquele conferido no passado.

    Invocar a democracia como rota de orientação, contextualizando o seu significado e sentido – como você fez – situa a palavra no lugar do qual ela, talvez, nunca devesse ter saído: aquele da coerência entre o fazer  e o discurso. As palavras têm essa capacidade ondulatória, vão tomando formas a cada impulso e por isso mesmo é bem possível que mesmo os que conspiram contra a democracia se digam democratas. Entretanto, na prática, para os mais atentos, logo se vê que o fazer  se distancia e, muito, do discurso, quase anulando-o. Ora, se ao longo da História – pelo menos no Ocidente, para retomar aqui aquilo que Hannah Arendt bem explorou –   a ação política (antes equivalente a discurso) foi pouco a pouco se transformando a ponto de romper drasticamente com o seu significado original, hoje ação é sinônimo de fazer, esse rompimento aconteceu porque o homem (único ser detentor da palavra) se deixou iludir pelas próprias contradições e se embaralhar com elas.

    Assim, mesmo que a palavra inserida em todo ou qualquer discurso (seja ele político ou não) tenha se tornado algo independente da ação (esta há muito identificada a um labor, um fazer) usar  a palavra ainda nos serve como veículo de afago ou de agressão,. Por isso, cabe a todos nós usá-la de forma a não realizar violência, mas coerência. Cabe a nós usá-la para a ela conferir um papel mais dignificante para a vida humana e não o contrário, cabe-nos, enfim, usá-la de forma generosa e essa tarefa somente se torna possível quando nos tornamos sujeitos emancipados, críticos e respeitosos.

    Portanto, para concluir (já que me alonguei em demasia neste comentário), quero dizer que o seu artigo lança uma excelente e oportuna reflexão não apenas sobre a realidade de processos decisórios quanto sobre o poder das palavras. Nessa linha de reflexão, estou certa que alguns dirão, a Constituição de 1988 não passa de monte de palavras, é verdade! Não discordo, mas não é só isso. Ela o melhor texto que ao longo da nossa História  produzimos e é aquele que não nos pode ser subtraído sob pena de subtrair o desejo de um Brasil melhor. Exatamente aquele desejo que nos moveu a elaborá-lo! Que as interpretações que esse texto permite sejam aquelas que nos leve à melhor decisão e que esta decisão ou decisões sejam aquelas que nos confira a  todos nós a qualidade de sujeitos da nossa própria História, sujeitos que se envolvam no embate com respeito para conquistar a vitória em favor senão de todos, pelo menos, daqueles desde sempre neste país foram vítimas da carência de direitos em virtude da arrogância de poucos. E nesse cálculo contamos com 54 milhões!

     

     

  6. é  bom  lembrar tb que o

    é  bom  lembrar tb que o brasil conseguiu romper o golpe de 64, a ditadura,  

    rompendo de csrta forma os canones do momento político da época…

    a partir daí foi possível, com muita luta, recriar sindicatos e a  sociedade civil como ela era há pouco tempo…

    criar o  mst – quem imaginaria antes dos movimento socais que lutaram contra o golpe, 

    como o movimento histórico dos sindicalistas do abc?

    lembram que o mst dizia que se não fosse  na lei ia na marra?

    tempos épicos….

     

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