Sem a China, o que seria da indústria de automóveis?, por Luiz Alberto Melchert

Descontando-se a produção de veículos chinesa, a do resto do mundo está estagnada, variando 0,9% ao ano

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Sem a China, o que seria da indústria de automóveis?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Anos atrás, quando o governo Lula pretendia que o país tivesse assento no conselho de segurança da ONU, a fim de seduzir os chineses, o Brasil declarou a China como tendo uma economia de mercado. Por aquele tempo, orientei um trabalho de conclusão de curso acerca das consequências disso para a economia brasileira. É que não havia um jornal sequer que não discutisse diuturnamente o assunto, em geral com contundentes críticas a nossa política externa. A conclusão a que se chegou naquele trabalho era de que a declaração não fedia nem cheirava — era totalmente inócua. A China não venderia nem mais, nem menos graças à declaração e o Brasil não aumentaria nem diminuiria as importações por causa disso.

Passados mais de dez anos, a China continua sendo o centro de discussões em âmbito cultural e econômico. Embora os jornalistas em geral teimem em não usar a paridade do poder de compra como meio de comparação entre países, tornou-se evidente que a China tem a maior economia do mundo hoje. As retaliações do governo Trump não são mais que a admissão tácita de que os Estados Unidos já não dão as cartas no cenário mundial, por importantes que sejam e continuarão sendo.

O crescimento médio da produção mundial foi de 3,3% ao ano, enquanto o da produção chinesa foi de 23,4% ao ano: em média, ela cresceu 19,3% acima da mundial

Fábrica da Land Rover na China; o país, que tinha 1,4% da produção mundial em 1999, chegou a 34% no ano passado
Fábrica da Land Rover na China; o país, que tinha 1,4% da produção mundial em 1999, chegou a 34% em 2017

Foi pensando nisso que resolvi escrever sobre o papel da China na indústria automobilística. Minha intenção inicial era montar um modelo econométrico, tendo como variável dependente a produção de veículos e como variáveis independentes a produção chinesa, a do resto do mundo, a exportação da China e a crise. Para quem gosta de Estatística, o modelo é P = A0 + A1X1 + A2X2 + A3X3, onde P é produção mundial de automóveis, X1 é a produção da China e X2 é a produção mundial, descontada a China e acrescida das exportações dela para o resto do mundo.

A variável X3, por sua vez, é uma dummy, variável binária em que 0 corresponde à situação normal e 1 identifica o período crítico. Assim, na série, os anos de 2009 a 2013, correspondendo à crise, teriam o valor 1 e os restante seriam 0. Os coeficientes A1, A2 e A3 representariam a tendência secular em número de veículos. Se algum deles fosse negativo, apontaria tendência ao declínio nas vendas, enquanto positivo representaria provável crescimento.

Depois de levantar os dados, enfrentei dois problemas. O primeiro é que carros são comprados por inúmeros motivos, haja vista que são bens de consumo sujeitos ao gosto do freguês, à sua renda e às condições de financiamento, entre muitas outras variáveis. Já os veículos comerciais são função da atividade econômica prioritariamente, não se podendo misturar à categoria de carros de passageiros. Resolvi a primeira questão usando somente carros de passageiros e reservando os comerciais para outra matéria.

Produção estagnada

O segundo problema é que os números são estrondosamente díspares e qualquer modelo elaborado não faria nada a não ser o óbvio, sob o ponto de vista dos “profetas do passado”. De acordo com a tabela a seguir, a China tinha apenas 1,43% da produção mundial (565 mil unidades) em 1999, saltando para 34% (mais de 24 milhões) em 2017. O crescimento médio da produção mundial foi de 3,32% ao ano, enquanto o da produção chinesa foi de 23,38% ao ano. Isso significa que, em média, ela cresceu 19,33% acima da mundial, portanto, açambarcando parcela importante dos investimentos no setor.

Tabela-China

Quanto mais significativa fica a China, mais o crescimento da produção mundial tende ao crescimento de lá. Isso ainda não é muito perceptível, mas, na medida em que o número de automóveis por habitante aproximar-se da média mundial— quem sabe, da dos países mais motorizados —, o fenômeno vai ficando cada vez mais evidente.

Mais impressionante foi constatar que, retirando-se a produção chinesa, a do resto do mundo está estagnada, variando 0,9% ao ano no mesmo período. Inúmeras matérias nacionais e estrangeiras dizem que existe uma migração da produção para lá, até mesmo com a terceirização da fabricação. Embora o fenômeno seja indiscutível, ainda não é significativo porque menos de 800 mil automóveis saíram da China em 2017, ou seja, pouco mais de 3% da produção. Na verdade, ainda com dados da China Association of Automobile Manufacturers, entraram no país cerca de 1,1 milhão de carros no período, tornando-a importador líquido.

Tudo indica que o mercado automobilístico esteja e continuará crescendo mais lentamente que a taxa da expansão vegetativa, exceto em alguns mercados

De fato, há países como Chile e Austrália em que a produção simplesmente se encerrou. Em outros, como os Estados Unidos, as quantidades reduziram-se a níveis inimagináveis. Segundo a mesma fonte da tabela, em 2017, produziram-se em torno de 3 milhões de automóveis de passeio, contra 8,1 milhões de veículos comerciais. Em 1999 eram 5,6 milhões contra 7,4 milhões, na mesma ordem. Mesmo que para os EUA a migração do consumo individual de carros para utilitários seja uma distorção estatística, pois eles provavelmente foram inseridos como comerciais, a queda foi significativa. Isso pode não se dever à invasão chinesa, mas a acordos comerciais como o NAFTA, além de outros bilaterais e da importação independente de outros países.

Assim, conquanto o trampolim de exportações esteja sendo construído de fato, não se pode afirmar que o que ocorre naquele gigante oriental seja afetado pela propensão a consumir automóveis no resto do mundo. Em outras palavras, tudo indica que o mercado automobilístico esteja e continuará crescendo mais lentamente que a taxa da expansão vegetativa, exceto em alguns mercados em que a motorização média da população seja significativamente deficiente, o que parece ser o caso da China e da Índia — esta não analisada aqui por não ser o tema da matéria, embora mereça estudo à parte.

Atingido o nível de carros por habitante de um país medianamente desenvolvido, o encanto tende a acabar, assim como tem acontecido para os hardwares em geral, como telefones celulares. O dragão tem fogo, mas o combustível não é eterno.

Artigo publicado originalmente em julho de 2018

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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