Descriminalização do usuário pelo STF não impedirá a explosão de prisões

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Luiz Flávio Gomes

Em 2006 o legislador brasileiro tomou a decisão (Lei 11.343/06) de implantar uma política diferenciada para o “usuário de drogas”.

Teoricamente separou o “traficante” do “usuário”. Para o primeiro agravou as penas carcerárias; para o segundo eliminou a pena de prisão. Isso se chama despenalização (o fato continuou sendo crime, mas sem a pena de prisão).

Pretendia-se (discursivamente) evitar a explosão de prisões. Para isso a lei chegou a prever pena diminuída para “pequenos traficantes”. Mas não ofereceu critérios objetivos para se distinguir as três categorias: (a) “usuário”, “pequeno traficante” e “grande traficante”.

Considerando que os critérios distintivos entre “usuário”, “pequeno traficante” e “traficante contumaz” são subjetivos ou valorativos (natureza da droga, quantidade, local da prisão, condições do agente etc.), tudo ficou por conta da práxis, com grande margem de arbítrio ou de discricionariedade aos aplicadores da lei.

Num país racista (aqui a tábua de salvação para o autoengano é a doutrina da miscigenação de Gilberto Freyre), discriminador, violento (aqui a tábua de salvação do autoengano é a mal entendida “cordialidade” de Sérgio Buarque de Holanda) e tremendamente desigual (somos um dos 10 países mais desiguais do planeta), levam a pior os jovens pobres, sobretudo negros e pardos. Eles são os prisionáveis, além de mutiláveis, torturáveis e extermináveis. Homo sacer (diria Agamben).

O propósito declarado (prisões somente quando necessárias) resultou frustrado. Houve aumento de 309% nessa população carcerária (de 2007 a 2014) relacionada a drogas.

Hoje, 27% do sistema é de “traficantes”. São quase 180 mil presos (a um custo mensal per capita de R$ 2 mil). Bilhões são gastos com eles anualmente.

Como bilhões de dólares gastaram os EUA com sua política repressiva (sem dar solução para o problema). Agora eles estão mudando (5 Estados já legalizaram a maconha; 21 para fins medicinais). Das medidas desesperadas (repressão aloprada) chegou-se ao reconhecimento e aceitação do problema e, agora, começam a aparecer as soluções racionais.

No Brasil continuamos com o pensamento atrasado (daí a quantidade assustadora de medidas desesperadas). As massas rebeladas de todas as classes sociais (com média de 7,2 anos de escolaridade, igual a Zimbábue) demonizam os envolvidos com drogas.

Escravas da política de demonização pregada pelos ultraconservadores dos EUA, desde as décadas de 60/70 (Nixon, em 1971, declarou “guerra às drogas”).

De qualquer modo, no campo punitivo, não se pode ignorar a força política das massas rebeladas. Isso se chama oclocracia (governo das massas mesmo quando sustentam teses irracionais).

Dos aplicadores da lei, 60% dos juízes são a favor da criminalização (crime, em regra, com pena de prisão, até onde for possível – Estadão 21/8/15: A16).

Na prática, sobretudo se se trata de réu jovem, negro ou pardo, pobre, não proprietário de bens nem de “status” e, de sobra, desempregado e fora da escola, a grande maioria acaba caindo na vala comum (traficante).

Muitos presos, embora primários, trabalhadores e portadores de quantidades não expressivas de drogas, passaram a ser enquadrados como “traficantes”.

É grande a possibilidade de se repetir o que ocorreu a partir de 2006 (quando veio a nova Lei de Drogas – 11.343/06): a descriminalização do “usuário” sustentada pelo min. Gilmar Mendes (STF, RE 635.659-SP) não vai evitar o aumento da explosão carcerária.

Claro, até que se chegue o dia da “implosão” completa do sistema prisional falido.

Com base no Estado de Direito vigente (princípios e regras previstos nas leis, Constituição e tratados internacionais) o min. Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Mas isso não significa legalização das drogas (como fez o Uruguai e 5 Estados dos EUA).

Ocorre que o Estado de Direito não se confunde com o Poder Punitivo Estatal nem tampouco com oEstado Policialesco. Há muita distância entre o que está programado pelas normas do Estado de Direito e o que acontece na prática por força do Estado Policialesco (que significa a aplicação desproporcional ou desarrazoada do direito vigente).

Não existe Estado de Direito puro (Zaffaroni). Todos são perturbados pelos Estados Policialescos.

Ambos, no entanto, são regidos por “constituições” completamente distintas. O Estado de Direito segue a Constituição de 1988 (foi com base nela que o ministro Gilmar Mendes descriminalizou o porte de drogas para uso pessoal).

O Estado Policialesco, por seu turno, está ancorado no Malleus Maleficarum, elaborado em 1497 por dois padres (Krämer e Sprenger), que é o código (manual) central da Inquisição. A forma mentis inquisitivanunca morreu.

No exercício do Poder Punitivo Estatal frequentemente se pratica abusos, excessos, desproporcionalidades (todos são reconduzíveis à letra ou ao espírito do Malleus Maleficarum).

Luiz Flávio Gomes é jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

5 Comentários

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  1. Essa é uma POLÊMICA PAUTA POR

    Essa é uma POLÊMICA PAUTA POR CAUSA DOS FILHOS DOS RICOS QUE USAM DROGAS!

    Se fosse um problema EXCLUSIVO DAS CLASSES MAIS POBRES, não estaria no STF para descriminalizar, mas para aumento de penas!

    É um problema de saúde pública, em que TEIMAMOS em não tratar o FINANCIAMENTO DA SAÚDE!

    Os politicos PREFEREM FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS À CPMF PARA A SAÚDE!l,m

    CPMF PARA SAÚDE PÚBLICA!

  2. pequeno traficante

    Faltou uma categoria!

    Teve senador e deputado federal que se sentiu desamparado pela lei.

    O STF não definiu em qual categoria se enquadram os importadores de droga que se utilizam de helipóptero (cor de uva) particular, porém com o combustível pago pelo povo. 

  3. A sociedade brasileira vive

    A sociedade brasileira vive dentro de uma nevoa de ignorancia e obscurantismo tão grande que se tornou cega para encontrar saidas, soluções.

    O cidadão le e assiste nos jornais, todos os dias, que de cada 100 assassinatos cometidos no pais, apenas 2 são elucidados pela policia.

    A justificatica para tal dado alarmante é sempre a mesma, falta de recursos.

    Ao mesmo tempo,o mesmo cidadão assiste, todos os dias, cortejos de veiculos blindados,levando tropas fortemente armadas, subindo em favelas, para prender moribundos “perigosos traficantes”,  de chinelos haviana, vendendo maconha a “cinco real”.

    É tão frequente e vigorosa a mensagem sobre o perigo da existencia do “perigoso traficante”, que a sociedade se esquece de pedir que, “na falta de recursos”, a prioridade deveria ser a proteção e segurança dos cidadãos, constantemente assaltados, nas ruas, nos sinais de transito, nos onibus, quando não sequestrados, assassinados, estuprados.

    Qualquer pessoa, por mais ingenua que seja, ja percebeu que colocar um jovem  na cadeia, por ter vendido um cigarro de maconha, é o melhor caminho para transforma-lo num verdadeiro perigoso bandido.

    A pena para um miseravel que vende maconha, a “cinco real”, deveria ser frequentar obrigatoriamente a escola.

    A “guerra as drogas” so interessa aos grandes traficantes, que, alias, habitam bem longe das favelas e aos seus associados escondidos em delegacias e foruns.

    Tomara que o STF tambem entenda essa simples verdade.

    Afinal,  ingenuos, em geral, não integram tamanha suprema corte.

     

  4. Lastimável, mesquinho,

    Lastimável, mesquinho, arrogantemente cleptocrata (domínio pela libido dominandi) de corações, mentes e corpos, pérfido por criar condição de, no mínimo,constrangimento pois se não é crime fumar, pressupõe que se há de adquirir em algum lugar, mas se a venda for proibida expõe-se alguém a  garras  persecutório-punitivas! Que liberdade é esta?!

    Ah! sim, claro, ia esqucendoda herança teológico-despótica de viés religioso, científico e filosófico que nos macula corações, mentes e corpos, afinal, são séculos e séculos de jugo, de autoritarismo, de verticalização das estruturas de poder a miserabilizar a vida-viva.

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