O voto de Dias Toffoli no julgamento do financiamento privado

Sugerido por Assis Ribeiro

Do Conjur

O parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, o qual dispõe que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, encerra o princípio republicano, que se traduz na afirmação de que “a soberania reside no povo, que se autogoverna mediante leis elaboradas preferencialmente pelos seus representantes” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 138).

O princípio republicano de que o povo se autogoverna escolhendo seus representantes se concretiza no voto direto e secreto do cidadão, com igual valor para todos, como posto no caputdo art. 14 da Constituição Federal.

Conforme salienta Jorge Miranda,

“o sufrágio é o direito político máximo, porque, através dele, os cidadãos escolhem os governantes e, assim, direta e indiretamente, as coordenadas principais de política do Estado (ou das entidades descentralizadas em que se situem)” (Os direitos político dos cidadãos na Constituição portuguesa. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 15, nº 60, jul.-set./2007, p. 300-301).

Sobre essas bases assenta-se o Estado Democrático de Direito, pois o exercício da democracia pressupõe a existência de eleições tão livres, universais e equânimes quanto possível. E o mecanismo utilizado pelo eleitor para externar sua vontade política é o voto.  O voto é, pois, a manifestação, a exteriorização da soberania e da vontade do povo, que decide quem deve governar e como se dará essa governança.

Nas palavras de José Afonso da Silva:

“Na democracia representativa a participação popular é indireta, periódica e formal, por via das instituições eleitorais que visam a disciplinar as técnicas de escolha dos representantes do povo. A ordem democrática,  contudo, não é apenas uma questão de eleições periódicas, em que, por meio do voto, são escolhidas as autoridades governamentais. Por um lado, ela consubstancia um procedimento técnico para a designação de pessoas para o exercício de funções governamentais. Por outro, ‘eleger’ significa expressar preferência entre alternativas, realizar um ato formal de decisão política. Realmente, nas democracias de partido e sufrágio universal as eleições tendem a ultrapassar a pura função designatória, para se transformar num instrumento pelo qual o povo adere a uma política governamental e confere seu consentimento – e, por consequência, legitimidade – às autoridades governamentais. Ela é, assim, o modo pelo qual o povo, nas democracias representativas, participa na formação da vontade do governo e no processo político” (Comentário contextual à Constituição. 3 ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41).

Assim, quando do exercício da soberania popular, o cidadão, pessoa física, é o único constitucionalmente legitimado a exercitá-la. A hora do voto é um daqueles raros momentos – se não o único — em que há a perfeita consumação do princípio da igualdade, em que todos os cidadãos – ricos, pobres, de qualquer raça, opção sexual, credo – são formal e  materialmente iguais entre si.

São formalmente iguais porque a Constituição Federal dá o direito de voto a todos os maiores de dezesseis anos, inclusive os analfabetos. E são materialmente iguais entre si porque o voto de cada qual tem o mesmo valor.

Observa-se, assim, com toda a evidência, que o parágrafo único do art. 1º e o caput do art. 14 da Constituição Federal não se destinam à pessoa jurídica: essa não pode votar, não pode ser votada e, caso pudesse votar, o voto não teria o mesmo valor, formal e material, para todas.

Não há, portanto, comando ou princípio constitucional que justifique a participação de pessoas jurídicas no processo eleitoral brasileiro, em qualquer fase ou forma, já que não podem exercer a soberania pelo voto direto e secreto.

Conforme bem apontado por Daniel Sarmento e Aline Osório, em trabalho desenvolvido para subsidiar a presente ação direta,   “[a] permissão legal para arrecadação de fundos para campanhas eleitorais via pessoas jurídicas é, em si prejudicial à democracia, pois concede a quem não tem voto uma rota alternativa – e, como visto, mais ‘eficaz’ – para participar do processo político-eleitoral.” (Eleições, dinheiro e democracia: a ADI 4.650 e o modelo de financiamento de campanhas eleitorais. p. 9).

Com efeito, o financiamento eleitoral deve ter liame com os atores sociais que participam do pleito: os eleitores, os partidos políticos e os candidatos. É inegável que as pessoas jurídicas desempenham relevante papel na sociedade, exercendo, por exemplo, pressão social sobre o Estado, mas não são – e não podem ser – atores do processo eleitoral.

 Se as pessoas jurídicas não participam do processo democrático – pois não gozam de cidadania -, admitir que possam financiar o processo eleitoral é violar um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da soberania popular.

Não é demais ressaltar que o processo eleitoral é o principal instrumento de efetivação do modelo democrático representativo, pois viabiliza a concretização dos ideais republicano e da soberania popular.

E, para que a genuína vontade popular se consubstancie, é preciso que esse processo eleitoral garanta que a escolha dos representantes políticos pelos cidadãos se dê mediante campanhas livres e equânimes. E, nesse sentido, o texto constitucional também não deixa dúvidas acerca da vedação à participação das pessoas jurídicas no financiamento do processo eleitoral brasileiro.

Com efeito, a Constituição de 1988, em seu art. 14, § 9º, determinou que lei complementar estabelecesse outros casos de inelegibilidade, a fim de garantir “a normalidade e [a] legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Ressalte-se que a Carta de 1988, inovando ao que já previsto desde a Emenda à Constituição de 1946 de nº 14/65, mais do que o abuso, vedou – sem nenhum adjetivo – ainfluência do poder econômico no processo eleitoral.

Ora, se o comando constitucional foi expresso ao proteger a normalidade e a legitimidade das eleições da influência do poder econômico, como poderia o legislador autorizar que setores da iniciativa privada possam financiar o processo eleitoral?

No meu entender, não há dúvidas, portanto, que o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas resulta em evidente influência do poder econômico sobre as eleições – expressamente vedada no art. 14, § 9º, CF/88. -, o que já seria suficiente para se declarar a inconstitucionalidade da norma.

Por sua vez, autorizar a influência dos setores econômicos sobre o processo eleitoral é admitir o que também é constitucionalmente vedado: a quebra da igualdade jurídica nas disputas eleitorais e o desequilíbrio no pleito.

É inegável que os candidatos, os partidos políticos e as coligações com maior capacidade de arrecadar recursos junto aos grupos de interesse com maior poder econômico têm aumentadas as probabilidades de se sagrarem vitoriosos nas eleições.

Nesse cenário, sobressai a discussão acerca do financiamento de partidos e campanhas eleitorais, pois, conquanto necessário para a realização do processo democrático – afinal, não há como negar os altos custos de uma campanha eleitoral –, o financiamento não pode gerar distorções e desigualdades na disputa eleitoral, afetando a premissa democrática da participação livre, igual e consciente dos eleitores no processo político, tendo em vista que o fator preponderante nesse processo deve ser sempre a vontade popular.

Nesse mesmo sentido, aponta a douta Procuradoria-Geral da República:

“(…) [D]evem ficar afastadas da participação, direta ou indireta, nos processos eleitorais as pessoas jurídicas de direito privado sem conotação política, na medida em que não gozam do statusde cidadão, nem representam interesses públicos ou sociais. Pelo contrário, seus atos constitutivos referem-se explicitamente a negócios privados, geralmente de índole mercantil.”

Ora, as pessoas jurídicas de direito privado não têm ideologia. Elas buscam, em verdade, atender interesses eminentemente econômicos. Afinal, a razão de existência das empresas privadas é a obtenção de lucro.

Sendo assim, qual a razão instrumental de as empresas realizarem doações a partidos políticos ou a campanhas eleitorais?

Walfrido Jorge Warde Júnior (Empresa pluridimensional. Empresa política e lobby. In: Revista do Advogado, São Paulo, ano 28, nº 96, mar.2008), ao fazer essa análise, lança dúvidas sobre a possibilidade dessas doações. O autor, dentre outras conclusões, afirma que o conceito jurídico de ‘objeto social’ da empresa (cuja consecução é o escopo empresarial) não comporta as doações de campanha. Afinal, como se argumentar que aquelas contribuições reverterão, financeiramente, para a sociedade empresarial e a ajudarão na realização de seu objeto social? Ora, sabe-se que não existe, do ponto de vista jurídico e ético, essa justificativa.

Conforme esclarece o autor:

 “Todos os atos de uma sociedade empresária devem ser afetados pela atividade empresarial prevista em seu objeto social. (…).

A única maneira, à luz do direito societário, de justificar tais doações, sem que sejam ultrapassados os limites impostos pelo objeto social (que é restrito ao exercício da empresa econômica), seria demonstrar que a eleição de dado candidato traria benefícios econômicos à sociedade empresária em questão e, no particular, que promoveria um aumento dos lucros distribuíveis e do valor das participações societárias.

Essa justificativa é hoje, porém, porque vedada por normas eleitorais e penais aplicáveis, antijurídica.”

Antes de apresentar dados do Tribunal Superior Eleitoral relativos às  eleições de 2004 a 2012, os quais bem ilustram o predomínio dos interesses econômicos no financiamento do processo eleitoral no Brasil, vale lembrar a abundância de formas de doação por pessoas jurídicas que a nossa legislação eleitoral autoriza.

Nos períodos anteriores às eleições, as pessoas jurídicas podem contribuir financeiramente: (a) para o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, o Fundo Partidário, disciplinado no art. 38, da Lei nº 9.096, de 19/9/95 (Lei dos Partidos Políticos), que beneficia todas as agremiações; e (b) para os órgãos de direção nacional, estadual e municipal dos partidos políticos, para constituição de seus fundos (art. 39, da Lei nº 9.096/95).

As doações para o Fundo Partidário e para os partidos políticos acontecem por meio de depósito ou transferência bancários feitos diretamente para suas contas correntes, admitindo-se, também, no caso dos partidos políticos, doação mediante cheque cruzado e nominal (arts. 38, III; e 39, § 3º, da Lei n° 9.096/95).

As doações das pessoas jurídicas aos partidos políticos não podem advir, direta ou indiretamente, nem sob a forma de publicidade, de qualquer espécie: (a) de entidade ou governo estrangeiros; (b) de autoridades ou órgãos públicos; (c) de autarquias, empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos, sociedades de economia mista ou fundações instituídas em virtude de lei e para cujos recursos concorram órgãos ou entidades governamentais; e (d) de entidade de classe ou sindical (art. 31, da Lei n° 9.096/95).

Note-se que, na ausência de previsão legal em sentido contrário, também no ano da eleição pode haver doações de pessoas jurídicas ao Fundo Partidário, a partidos políticos ou a campanhas eleitorais, devendo-se identificar, nesse caso, as figuras jurídicas típicas que surgem nesse período, tais como “candidato”; “comitê financeiro” e “contas de campanha”.

Os candidatos, comitês financeiros e partidos políticos que optem por arrecadar recursos e aplicá-los nas campanhas eleitorais são obrigados a abrir “contas de campanha”, que servem para registrar toda a movimentação financeira das respectivas empreitadas. Essas contas são, portanto, específicas para esse fim, vedando-se a utilização de conta bancária preexistente (art. 22, caput, da Lei nº 9.504/97).

Podem também destinar às campanhas eleitorais bens e serviços estimáveis em dinheiro, devendo qualquer doação ser feita mediante recibo eleitoral (art. 23, §§ 2º e 4º, da Lei n° 9.504/97).

O limite de doação às campanhas eleitorais a que estão sujeitas as pessoas jurídicas é de dois por cento do seu faturamento bruto no ano anterior à eleição (art. 81, § 1º, da Lei nº 9.504/97).

Também estão proibidos de doar os entes enumerados no art. 24 da Lei nº 9.504/97, a saber, (a) entidade ou governo estrangeiro; (b) órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos públicos; (c) empresa concessionária ou permissionária de serviços públicos; (d) entidade de direito privado beneficiária de contribuição compulsória; (e) entidade declarada de utilidade pública ou organização da sociedade civil de interesse público; (f) sindicato ouentidade de classe; (g) pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior; (h) entidade beneficente, religiosa ou esportiva; (i) organização não governamental que receba recursos públicos.

A pessoa jurídica que optar por pulverizar suas doações pelas diversas campanhas eleitorais de uma mesma eleição deve-se ater ao seu limite contributivo. Em resumo, são as seguintes as fontes de financiamento das campanhas políticas: a) recursos próprios do candidato; b) contribuições e doações de pessoas físicas; c) contribuições e doações de pessoas jurídicas; d) recursos públicos provenientes do fundo partidário; e) doações de outros candidatos, partidos políticos ou comitês financeiros; f) receitas decorrentes da comercialização de bens ou da realização de eventos.

Seguem dados do Tribunal Superior Eleitoral relativos às receitas de campanhas eleitorais do período de 2004 a 2012:

(…)

Conquanto a preocupação normativa com o financiamento eleitoral seja fato recente, não é de hoje que se verifica a influência do poder privado nas práticas eleitorais no Brasil.

Durante o Império, a influência econômica estava institucionalizada na política do voto censitário, segundo a qual só se qualificavam como eleitores os indivíduos (do sexo masculino) com um determinada condição econômica. Essa influência do poder econômico estava presente também nos requisitos de elegibilidade. Para ser senador, por exemplo, o cidadão tinha de ter uma renda anual de no mínimo oitocentos mil réis (art. 45, IV, da Constituição de 1824).

Com o advento da República, afastou-se o uso da renda como critério para a qualificação dos eleitores. Surgiu, contudo, na República Velha, a chamada “política do café com leite”, resultado da aliança entre as elites oligárquicas dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais, a qual tinha como base o “coronelismo”, que se manifestava nas eleições, na forma do “voto de cabresto”.

Victor Nunes Leal, já ressaltava, com perspicácia, a natureza desse fenômeno histórico. Nas suas palavras,

 “[o coronelismo] é antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.” (Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 44).

Como anota Barbosa Lima Sobrinho, com a criação da Justiça Eleitoral (Decreto 21.076/1932) e a preocupação, cada vez maior, de se impedirem as fraudes eleitorais e de se garantir o voto secreto,

“[a]s técnicas eleitorais do passado perdem sua eficácia, diante da nova realidade política. (…) O poder político, obediente aos novos tempos, esquece a antiga brutalidade dos processos policiais e adota as luvas de pelica do poder econômico. Já se pode estabelecer, em alguns Estados, o preço de uma cadeira de deputado. Nas eleições majoritárias, o rádio e a televisão exercem papel preponderante, favorecendo os candidatos que contam com o apoio dos mais pujantes grupos econômicos.” (Evolução dos sistemas eleitorais. Revista de Direito Público e Ciência Política. v. IV, n. 3. set./dez. Rio de Janeiro. 1961. p. 39)

Vai nesse mesmo sentido o pensamento de Sídia Maria Porto Lima:

“A partir das sensíveis mudanças socioeconômicas resultantes da decadência do coronelismo, decorrente, sobretudo, do acelerado processo de urbanização e industrialização, as massas de trabalhadores tornaram-se independentes, resultando em uma redução na eficácia das formas tradicionais de dependência do eleitorado. À medida que o personalismo foi perdendo, aos poucos, sua força, o processo eleitoral, respectivo às mudanças socioeconômicas, passou a assimilar práticas inerentes ao capitalismo emergente.” (Prestação de contas e financiamento de campanhas eleitorais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 48).

Sem o voto censitário, sem o voto de cabresto, restou às forças econômicas do país atuar no financiamento das campanhas. Antes, as elites agrárias – os produtores de cana-de-açúcar e de café -, hoje, as elites empresariais – as instituições financeiras, as empreiteiras e as grandes indústrias.

Nesse contexto, o financiamento eleitoral por pessoas jurídicas nada mais é do que uma reminiscência dessas práticas oligárquicas e da participação hipertrofiada do poder privado na nossa realidade eleitoral, em direta violação às cláusulas pétreas da Constituição de 1988, também chamada, convém lembrar, de “Carta Cidadã”.

É preciso reconhecer, portanto, que o financiamento eleitoral por empresas privadas é um instrumento – senão o principal – de permanência da forte influência do poder econômico no nosso processo eleitoral, instrumento esse capaz de desvirtuar a democracia representativa e a participação cidadã.

Sobre isso, já advertia Fávila Ribeiro:

“A interferência do poder econômico traz sempre por resultado a venalização do processo eleitoral, em maior ou menor escala.

(…)

À proporção que a riqueza invade a disputa eleitoral, cada vez se torna mais avassaladora a influência do dinheiro, espantando os líderes políticos genuínos, que também vão cedendo, ainda que em menor escala, a comprometimentos econômicos que não conseguem de todo escapar, sendo compelidos a ser conspurcarem com métodos corruptos.” (Abuso de poder no Direito Eleitoral. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 58).

Sob outra ótica, a intensa participação das pessoas jurídicas no financiamento das campanhas eleitorais acaba por apequenar a participação da própria cidadania na disputa. Como visto, as campanhas, especialmente as nacionais e as estaduais, são quase que totalmente custeadas por contribuições de empresas, sendo, em geral, ínfima a participação das contribuições individuais nesses processos. Entretanto, é o cidadão, e não os grupos econômicos, a figura central do processo eleitoral.

Afastadas as empresas privadas do financiamento do processo eleitoral, a cidadania retoma o seu necessário e imprescindível papel no exercício da soberania, estimulando-se, assim, inclusive, a reaproximação entre partidos políticos, candidatos e eleitores, estímulo esse que se traduz, portanto, em comprometimento não só emocional, mas também financeiro.

É o que chamo de financiamento democrático do processo eleitoral: o financiamento privado de partidos e candidatos mediante incentivo às doações feitas pelos eleitores, dentre de certos limites. Nesse mesmo sentido, aponta Maurice Duverger, ao tratar dos partidos de massa:

“(…) Ao invés de se dirigirem a alguns grandes doadores privados, industriais, banqueiros, ou grandes comerciantes, para cobrirem as despesas da campanha – o que põe o candidato (e o eleito) na dependência destes últimos – os partidos maciços reportem o encargo por um número tão elevado quanto possível de adeptos, contribuindo cada um com uma soma modesta. Do mesmo modo, os partidos de massas caracterizam-se pela atração que exercem sobre o público: um público pagante, que permite à campanha eleitoral escapar às servidões capitalistas, junto a um público que ouve e que age, que recebe uma educação política e aprende o meio de intervir na vida do Estado.” (Os partidos políticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Universidade de Brasília, 1980. p. 99- 100).

Não é demais frisar: a pessoa natural tem o direito, como detentora, por excelência, da soberania popular, de contribuir financeiramente para as campanhas, observados, é claro, determinados limites.

Sob essa perspectiva também assiste razão à requerente quando aponta que tanto a adoção de um critério baseado na renda para a definição dos limites das doações por pessoas físicas, quanto a permissão de utilização de recursos próprios pelos candidatos em suas campanhas até o valor máximo de gastos fixado por seu próprio partido violam os princípios da isonomia e da proporcionalidade.

No meu sentir, o ponto de partida, dessa análise, em verdade, deve ser a fixação de um teto para os gastos com as campanhas eleitorais de cada qual dos cargos em disputa, de forma a garantir-se maior igualdade, lisura e equidade no processo eleitoral.

Há de se reconhecer, também, que o estabelecimento de um limite de doação baseado na renda do doador e a ausência de teto para a utilização de recursos financeiros dos próprios candidatos perpetuam a decisiva influência do poder econômico sobre o pleito eleitoral, já que não impedem que a desigualdade de recursos entre os concorrentes seja fator preponderante para o sucesso na disputa.

É evidente que, sem a definição de limites uniformes e independentes da condição financeira dos doadores ou dos candidatos, as desigualdades econômicas e a concentração de renda que imperam na nossa sociedade hão de refletir no financiamento das campanhas e, consequentemente, no resultado da eleições.

Como bem ilustrou o requerente, há distorções no critério hoje utilizado para as doações por pessoas físicas:

“Se, por exemplo, dois indivíduos tivessem, no ano anterior à eleição, rendimentos de, respectivamente, R$ 100.000,00 e R$ 20.000,00, uma doação a um candidato feita pelo primeiro no valor de R$ 5.000,00 seria perfeitamente lícita, mas o segundo, se praticasse o mesmo ato, cometeria um ilícito eleitoral que o sujeitaria a multa de valor entre R$ 15.000,00 e R$ 30.000,00 (art. 24, § 3º, Lei 9.504/97). Não há qualquer  justificativa racional e aceitável para esta discriminação, que se reveste de caráter verdadeiramente odioso.”

Enfim, não se pode medir o exercício da cidadania e a participação de eleitores e dos candidatos no processo eleitoral com base na capacidade financeira de cada um deles. Todos os cidadãos, no processo eleitoral, têm o mesmo valor. No exercício da cidadania, todos – ricos, pobres, de qualquer raça, opção sexual, credo – são formal e materialmente iguais entre si, o que impede que se retire dos eleitores e candidatos a possibilidade de igual participação no pleito eleitoral.

Por essas razões, Senhores Ministros, forte no princípio republicano, na soberania popular e no papel constitucional desta Corte em garantir um processo democrático de escolha dos representantes políticos pelos cidadãos, mediante campanhas livres e equânimes que concretizem a genuína vontade popular, todos preceitos imutáveis na Carta Constitucional, voto pela procedência dos pedidos da presente ação direta de inconstitucionalidade.

Pág. 11 e segs.

Clique aqui para ler a íntegra do voto de Dias Toffoli.

Redação

2 Comentários

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  1. a soberania popular encerra o

    a soberania popular encerra o princípio democrático, e não republicano (que tem mais a ver com ideia de supremacia do interesse público). Se for assim, na Inglaterra, que é uma monarquia parlamentar,  não seria o povo que “se autogoverna”

    Isso mostra a definiciência grave do cursos de direito no país que não ensinam teoria política;

  2. Garantismo voltou ao sTF

    O garantismo que se fez ausente no julgamento do mensalão resolveu mostrar as caras, sei…

    Sou contra o financiamento privado, desde que haja financimento publico 

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