O Poder Judiciário e os desmatamentos ilegais na Amazônia

Qual tem sido o desempenho do Judiciário na responsabilização dos autores por desmatamentos ilegais na Amazônia? Por André Lima

Foto: © Daniel Beltra for Greenpeace

O “poder” do Judiciário e os desmatamentos ilegais na Amazônia

Por André Lima

Do Conjur

A Constituição confere um destaque especial à proteção da floresta amazônica como patrimônio nacional, no parágrafo 4º do seu artigo 225. Mas qual tem sido o desempenho do Judiciário brasileiro, especialmente o amazônico, em relação ao desafio da responsabilização dos autores por desmatamentos ilegais na Amazônia? Quem tem feito essa análise e com base em que dados e informações? O que é preciso ser feito para aumentar a eficácia nas ações? O fato é que o desmatamento voltou a crescer em mais de 50% nos últimos quatro anos e o judiciário pode ser um fator relevante para a reversão desse quadro.

Em seu voto no plenário do Supremo Tribunal Federal, na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760, movida pela Rede Sustentabilidade, PSB, PDT, PT e PSOL, a relatora ministra Carmen Lúcia enfatizou que nos últimos anos deste atual governo, o que se verificou em relação às ações de controle dos desmatamentos ilegais no bioma amazônico foi apenas a aparência de uma ação que, na prática, chamou de “engodo administrativo” ou “o estado teatral em matéria ambiental”, ou ainda um “Faz de conta que faz algo…”. Para a relatora, é fundamental observar os resultados obtidos nas operações de fiscalização, e não apenas a quantidade de operações realizadas. A relatora colocou ênfase no “Poder-Dever” do Poder “Executivo”.

O Brasil já foi exemplo em ações de monitoramento e controle, sobretudo entre os anos de 2004 e 2012 quando reduziu o desmatamento na região em mais de 82%. Foram salvas, por ações de governo, mais de dez bilhões de árvores adultas de milhares de espécies da nossa biodiversidade, em mais de uma dezena de milhões de hectares. Foi a maior contribuição de um único País para o corte de emissões de CO2 em escala global no período. Mais de 2 gigatoneladas de CO2 equivalentes que deixaram de ser emitidos pelas ações do Plano de Prevenção e Controle dos Desmatamentos na Amazônia (PPCDAm).

Portanto, em sede de controle concentrado (STF) de constitucionalidade em defesa da floresta amazônica, o Judiciário brasileiro até aqui vem dando respostas satisfatórias. O STJ também proferiu acórdãos recentes importantes sobre o tema considerando judicialmente válidas as provas produzidas por sistemas remotos, como as imagens de satélites do Prodes e Deter, sistemas desenvolvidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, órgão ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCTi) para o monitoramento remoto dos desmatamentos ilegais. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente de lavra do ministro Herman Benjamin, também reconhece além do uso de tecnologias remotas para produção de provas, as citações judiciais “por edital” para réus indeterminados em casos de desmatamento ilegal, situação muito comum (mais de 50% dos casos) em se tratando de desmatamento ilegal em terras públicas, onde o infrator raramente é identificado pela fiscalização presencial ou remota.

Se considerarmos os últimos dez anos de dinâmica de desmatamento na Amazônia, desde que entrou em vigor o “novo” Código Florestal (Lei federal 12.651/2012), e a alta de mais de 50% nos últimos quatro anos, foram mais de 8,5 milhões de hectares em desmatamentos ilegais. Área quase equivalente ao estado de Santa Catarina inteiro de desmatamento ilegal na Amazônia no período.

Não parece razoável interpretar que o Constituinte de 1988 tenha atribuído exclusiva responsabilidade pela proteção especial da floresta amazônica ao Poder Executivo. Sobretudo porque o caput do artigo 225 afirma que cabe a “Todos” o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Incumbindo ao poder público uma série de diretrizes em seus parágrafos.

Mas qual então o papel do Judiciário nesse desafio? Como ele tem respondido às ações? Como ele tem sido demandado a responder? Será possível alcançarmos a meta brasileira de zerar o desmatamento ilegal em todos os biomas brasileiros antes de 2030 (em menos de oito anos) sem que o Judiciário e seus operadores exerçam um protagonismo efetivo, decisivo e de destaque?

Na nossa sincera opinião, sem que o Judiciário (e seus operadores) realmente abrace e se aproprie dessa meta nacional disposta na nossa NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), no âmbito do Acordo de Paris e da Convenção de Mudanças Climáticas dificilmente vamos atingir nossa ousada meta.

A busca por maior efetividade, eficácia e eficiência no controle judicial difuso, nos casos concretos, das ilegalidades e inconstitucionalidades pelo desmatamento que vem aumentando em toda Amazônia será decisiva. É dever do Estado dar consequência prática ao disposto no parágrafo 3º do artigo 225 da Constituição de 1988, que recepcionou integralmente a responsabilidade civil (inclusive objetiva) por danos ambientais, disposta na Lei de Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal nº 6.938 de 1981) e na Lei de Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7.347 de 1985). Ou seja, independentemente de sanções administrativas e penais, e do controle concentrado de inconstitucionalidade por ação e omissão do Poder Executivo, o causador (agente público ou privado) de danos ambientais na Floresta Amazônica deve ser instado coercitivamente (judicialmente), se não o fizer por ajustamento de conduta, a reparar o dano à floreta. E mais que isso, as áreas desmatadas ilegalmente devem ficar embargadas para qualquer tipo de uso econômico e apropriação (inclusive em processos de regularização fundiária).

Quantos dos causadores desses mais de 8,5 milhões de hectares de desmatamento ilegal, e centenas de milhares de polígonos de desmatamento espalhados por toda Amazônia, em terras públicas e privadas, estão sendo de fato responsabilizados civilmente para reparar o dano? Quanto dessas áreas estão sendo judicialmente “embargadas”, ou seja, retirada da expectativa de apropriação e ganho econômico ilegal?

Sob pena de sermos coniventes com a ineficiência e ineficácia do sistema, temos que debater esse papel do Judiciário com transparência e com base em dados.

Foi para isso e motivados por essas razões que a equipe do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), think-tank fundado em 2009, e que defende ser o Poder Judiciário um player indispensável ao fortalecimento da Democracia e da Sustentabilidade no Brasil, idealizou e desenvolveu o Portal JusAmazônia, cuja versão “beta”, lançada no último dia 16 de dezembro, encontra-se em processo de aprimoramento colaborativo no link www.jusamazonia.org

JusAmazônia é um portal de transparência sobre o Poder Judiciário brasileiro que possibilita acesso gratuito e online aos andamentos de ações civis públicas ambientais com foco em desmatamento ilegal na Amazônia brasileira. O objetivo central da plataforma é oferecer aos operadores e estudiosos do Direito um mecanismo ágil e confiável de busca, consulta e acompanhamento de ações civis públicas com foco na supressão vegetal ilícita na região da Amazônia Legal, conferindo transparência aos dados de tais litígios. O JusAmazônia apresenta cruzamento de dados minerados que trazem informações como o número de ações civis públicas estaduais e federais, no tempo e espaço, por assunto, palavra-chave, autoria, estado, comarca ou seção judicial da região amazônica, com acesso a documentos como petições iniciais, decisões, sentenças, pareceres. JusAmazônia pretende também divulgar pesquisas pioneiras, que abordam o enfrentamento judicial do desmatamento na Amazônia. Foram levantadas nesta fase inicial quase 6 mil ações civis públicas, nos nove estados Amazônicos.

Alguns dados interessantes já podem ser conferidos no Portal. Das quase 6.000 ações movidas após 2012, identificadas pelo Jusamazônia:

– 1.272 ações possuem sentenças (22%);
– 4.685 ações ainda estão tramitando em 1ª instância (78%);
– 1.183 em 2ª instância (20%);
– 79 nos tribunais superiores (1,3%);
– houve um salto de 2,4 mil processos em 2018, para quase 6 mil ações em 2022, um crescimento da ordem de 250% desde então.

As ações do Ministério Público Federal e Ibama representam 63% (2/3) do total e as ações do MP estadual 37% (1/3) mapeadas no sistema.

Somente entre 2016 e 2022 foram propostas, no nível estadual amazônico, quase 1.500 ações, do total de pouco mais de 2.000 ações estaduais acumuladas nos últimos 10 anos. Um grande aumento recente na propositura de ações estaduais. Houve aumento de 75% no número total de ações em tramitação de 2016 até 2022.

Em relação às ações federais, o salto foi de 1.210 ACPs em 2017 para 3.763 em 2022, um crescimento de 210% no período. O Programa Amazônia Protege do Ministério Público Federal foi crucial para esse incremento significativo de ações civis públicas na Amazônia e precisa ser fortalecido e incrementado.

Pará e Mato Grosso representam 57% do total das ações civis públicas. Se considerarmos também Rondônia e Amazonas, esses quatro estados (PA, MT, AM e RO) representam 95% das ações civis públicas movidas depois de 2012: MT 1620 (27%), RO 1206 (20%), PA 1795 (30%) e AM 1078 (18%).

Todavia apesar desse importante crescimento no volume total de ações, sobretudo nos principais estados com as maiores taxas de desmatamento na Amazônia, ainda se verifica que a taxa de efetividade (a correlação entre o número de áreas desmatadas e o número de ACPs propostas) está muito aquém de cobrir a maioria dos desmatamentos ocorridos ao longo dos últimos anos. O acúmulo de defasagem cresce todos os anos, principalmente agora que as taxas estão voltando a crescer desde 2019, na região.

O segundo gráfico da aba “Distribuição do Desmatamento” no Portal JusAmazônia nos mostra o total de ações civil públicas na Amazônia e por estado em comparação com o total de polígonos de desmatamento com área acima de 50 hectares (aproximadamente meio campo de futebol), a partir de 2017. Esse parâmetro objetivo foi usado com base na definição do MPF, que adotou como critério e meta a propositura de ações em todas as áreas acima de 60 hectares pelo Programa Amazônia Protege.

Ao considerarmos como referência apenas o número de polígonos de desmatamento com área acima de 50 hectares como um parâmetro para avaliar a efetividade da cobertura das ações de responsabilização civil por desmatamento, verificamos que apenas cerca de 1/3 dos polígonos estão sofrendo ações. Vejamos no quadro abaixo:

EstadoPolígonos > 50haACP´s%
AM2.1611.22357%
PA5.5521.40525%
MT3.1561.25240%
RO2.61197637%
Total13.4804.85636%

Com o portal JusAmazônia, o IDS pretende fomentar o desenvolvimento de análises, técnicas e inclusive científicas, mais sofisticadas e ampliadas sobre a correlação e os impactos das ações e decisões judiciais em relação à dinâmica de desmatamento, por municípios críticos na Amazônia. O IDS pretende desenvolver parcerias com o Imazon, o Programa MapBiomas e outros parceiros com capacidade de desenvolver análises georreferenciadas para avançar na geoespacialização das ações e sofisticar as análises de impacto das ações judiciais na dinâmica de desmatamento nas áreas subjudice e entorno.

O sistema oferece também outras opções de pesquisa e análise avançada, além de acesso aos documentos e acompanhamento em tempo real da movimentação das ações civis públicas por desmatamento na Amazônia desde 2012. Por exemplo, é possível uma análise das ações civis públicas por estados e comarca, por ano e por autores e esfera. Em relação à eficiência da prestação jurisdicional, o sistema permite identificar que ações estão sem movimentação há mais de 90, 180, 360 e 720 dias.

A plataforma ficará, a partir de dezembro de 2022 por seis meses em consulta aberta e aperfeiçoamento colaborativo. No portal, há um espaço especial para que o usuário possa encaminhar críticas, sugestões de aprimoramento e correções na plataforma. Com outros parceiros como o portal JusBrasil, a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), a Associação Brasileira dos membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), o Ministério Público Federal e Estadual dos estados Amazônicos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Imazon, o Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia, e organizações do Observatório do Clima, IDS pretende realizar nos próximos seis meses reuniões técnicas, oficinas e um seminário presencial, em junho de 2023, sobre Jurimetria e Proteção da Floresta Amazônica, quando o portal será lançado em sua primeira versão oficial após as contribuições abertas da sociedade.

O desenvolvimento do portal JusAmazônia está sendo financiado pela Iniciativa Internacional de Clima e Florestas do Governo Norueguês, um dos principais doadores oficiais do Fundo Amazônia.

Certamente são muitos e enormes os desafios de ordem processual, legal, orçamentária, operacional, de recursos humanos, de comunicação e infraestrutura que afetam os operadores do Direito e da Justiça brasileira para fazer valer e dar eficácia máxima à responsabilização civil em matéria de desmatamento ilegal na Amazônia. E isso precisa ser objeto de debate e discussão aberta para que encontremos as soluções apropriadas e possíveis.

Sem uma presença forte, estruturada, eficiente e eficaz do judiciário brasileiro na responsabilização dos desmatamentos ilegais, sobretudo na Amazônia, dificilmente alcançaremos o desmatamento zero até 2050, quiçá 2028 como prevê inclusive proposta recente do atual governo.

Navegue no portal JusAmazônia e nos ajude a contribuir com esse grande desafio para o Direito e a política socioambiental brasileira dos próximos anos que é alcançarmos o “desmatamento zero” na Amazônia.

Redação

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