O porco comilão e as desgraças do mundo
por Sebastião Nunes
Estava um porco fuçando num lamaçal quando quase quebrou o queixo.
– Ui, ui, ui – gemeu, dando um pulo para trás. – Quem foi que botou essa pedra no meio da lama? Antigamente este chiqueiro era mais limpo.
Limpo nada. No sítio de Jeca Tatu reinava uma bagunça danada, e o dono não estava nem aí: cercas caídas, portas sem tramela, janelas esburacadas, galinhas doentes, horta descuidada e até as duas vacas, que davam um leite ralo e minguado, mal tinham o que comer. Só o bode Barbicha e o porco Gorducho, que engoliam qualquer porcaria (sic), se davam bem naquelas brenhas.
Ouvindo os gemidos do amigo, Barbicha largou a lata de óleo de mamona vazia que roía e indagou:
– Que foi, compadre, quebrou um dente?
– Quase – respondeu Gorducho. – Foi uma maldita pedra que mordi sem querer.
Desconfiado como todo bode, Barbicha meteu o nariz na lama até encontrar um objeto duro e grande, mais parecendo metal do que pedra.
– Isso aí parece uma mala enferrujada – disse o bode, entendido e esclarecido em metais de qualquer natureza.
– Mas quem terá enterrado uma mala no meu lamaçal? – indagou o porco.
– Sei lá – respondeu o bode. – Seo Jeca acho que não foi.
De fato, não parecia coisa de Jeca Tatu: a mala estava tão enferrujada que devia ter pelo menos dois mil anos.
Juntando suas humildes forças e suando, puxaram a mala para fora do lamaçal. Na tampa estava escrito, em português legítimo: PRAGAS DE PANDORA Nº 2. Claro que os amigos não tinham menor ideia do que fosse praga, muito menos Pandora.
Ainda assim resolveram abrir a mala, que era de fato velhíssima. Tão velha que, mesmo roendo com força, Barbicha levou mais de dez horas para arrebentar a dura fechadura.
Um último esforço e a tampa saltou, como se tivesse mola prendendo.
Livres e gritando “liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, todos os males desconhecidos pela humanidade desde a Arca de Noé saíram voando aos bilhões pelos céus do Brasil, entrando velozmente na alma de homens, mulheres e até crianças.
Lerda como sempre, a Esperança foi a última a sair. Estava velhinha, coitada, e saiu capengando e com a mão nas cadeiras, que o reumatismo estava de lascar.
Foi então que a velha Esperança olhou bem para Gorducho e Barbicha, suspirou fundo e resmungou, resignada:
– Não faz mal. Depois do que os brasileiros passaram nestes últimos anos, eles tiram de letra qualquer tipo de praga.
MORAL AMORALISTA
A esperança tarda, mas não falha (ou: antes tarde do que nunca).
Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.
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