A guerra e o retorno do Estado nacional, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os Estados nacionais são produto de uma longa construção histórica que começou antes da Revolução Francesa.

A guerra e o retorno do Estado nacional

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No meu último texto, comentei a destruição parcial da ponte que liga a Rússia à Crimeia. Naquela oportunidade disse que:

“Ao tentar impor seus interesses nacionais na Europa os EUA enfraquecerá as economias europeias e não causará sérios danos à Rússia. O crescimento do nacionalismo russo e chinês (uma reação inevitável ao recrudescimento do imperialismo norte-americano) amplificará o poder dos dois adversários da Casa Branca. Na Europa, porém, o crescimento do nacionalismo fragilizará a União Europeia criando novos conflitos que podem se refletir de maneira negativa no mercado financeiro dos EUA.”

Volto ao assunto, porque existe um aspecto que merece ser melhor explorado.

Os Estados nacionais são produto de uma longa construção histórica que começou antes da Revolução Francesa. Depois dela, porém, esse processo foi acelerado até o momento em que os Estados nacionais se tornaram a única forma política com poder de interferir na arena internacional.

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As disputas entre os Estados nacionais se tornaram inevitáveis. Mas ao contrário de acarretarem conflitos limitados entre pequenos exércitos inimigos, elas provocaram guerras totais que devastaram cidades inteiras na Europa e na Ásia. Ao fim da I Guerra Mundial os impérios coloniais começaram a desmoronar originando novos Estados nacionais europeus. Algo semelhante ocorreu em relação às colônias inglesas, francesas, belgas e alemãs na África e na Ásia ao fim da II Guerra Mundial.

Durante o pós-guerra, enquanto os Estados nacionais lutavam para defender seus próprios interesses num mundo polarizado pelo conflito entre duas potências nucleares, as multinacionais cresceram e expandiram seu poder econômico até se tornarem atores internacionais. Elas foram seguidas pela internacionalização das finanças até que a hegemonia do neoliberalismo acarretou um refluxo político considerável.

A globalização levou pensadores como Francis Fukuyama a sustentar a tese de que a História havia chegado ao fim. Foi nesse contexto intelectual que Kenichi Ohmae defendeu o fim do Estado nacional. Isso seria um resultado inexorável das leis econômicas:

“… Seja qual for a forma de governo no poder e a ideologia política que o molda, as exigências do mínimo público de apoio a interesses especiais e de subsídios e proteção aos que ficaram para trás inexoravelmente aumentam. Em diferentes circunstâncias, sob diferentes regimes e durante diferentes épocas, a velocidade dessa escalada varia. Uma boa política pode retardar o ritmo, uma má política pode acelerá-lo. Mas nenhuma política consegue detê-lo por completo. Os estados-nações são organismos políticos, e em suas veias econômicas o colesterol gradualmente aumenta. Com o tempo, as artérias endurecem e o organismo perde a vitalidade.” (O fim do Estado-nação, Kenichi Ohmae, Editora Campus, São Paulo, 1999, p. 140)

Num mundo globalizado, todas as noções que ajudaram a construir os Estados nacionais teriam se tornado irrelevantes.

“O debate público pode encontrar-se como refém do vocabulário antiguado das fronteiras políticas, mas as realidades diárias com que as pessoas se defrontam nos mundos desenvolvido e em desenvolvimento – como cidadãs e como consumidoras – falam um idioma totalmente diferente: aquele de uma economia cada vez mais sem fronteiras, de um mercado realmente global.” (O fim do Estado-nação, Kenichi Ohmae, Editora Campus, São Paulo, 1999, p. 2)

Bancos, banqueiros, fundos de investimento, multinacionais e alguns investidores se tornaram mais poderosos que vários países. As forças econômicas que criaram e modelaram a globalização enfraqueceram os Estados nacionais.

“A verdade perturbadora é que, em termos da economia global, os Estados-nações toraram-se pouco mais que atores coadjuvantes. Originalmente, em sua fase mercantilista, eles podem ter sido mecanismos independentes e terrivelmente eficientes da geração de riquezas. Mais recentemente, porém, com a economia sob o domínio mortal da lógica da política eleitoral, tornaram-se – acima de tudo – mecanismos notadamente ineficientes de distribuição de riquezas. Os líderes políticos eleitos conquistam e mantêm o poder fornecendo aos eleitores o que eles desejam – e isto raramente resulta num decréscimo substancial dos benefícios, dos serviços e dos subsídios concedidos pelo Estado.” (O fim do Estado-nação, Kenichi Ohmae, Editora Campus, São Paulo, 1999, p. 6)

A eficiência dos mercados globalizados e a inevitável obsolescência política dos Estados nacionais ao fim da História estariam, segundo o autor, originando algo novo:

“Os indícios, então, são tão exaustivos como perturbadores: em uma economia sem fronteiras, os mapas focalizados nas nações que costumávamos utilizar para entender a atividade econômica são totalmente enganadores. Precisamos, tanto os gerentes como os formuladores de políticas, encarar finalmente a verdade embaraçosa e desconfortável: a velha cartografia já não funciona. Ela se tornou apenas uma ilusão.” (O fim do Estado-nação, Kenichi Ohmae, Editora Campus, São Paulo, 1999, p. 14)

O que parecia uma verdade inquestionável, entretanto, evaporou no ar assim que os mísseis começaram a ferir o coração da Europa.

A guerra da Ucrânia recolocou na ordem do dia duas coisas que Kenichi Ohmae considerava superadas: as fronteiras territoriais e a necessidade de admitir que a própria globalização é uma ilusão. Ao destruir as pontes econômicas que ligavam o Ocidente à Rússia, os norte-americanos não apenas defenderam seus interesses nacionais. Na prática, eles estão tentando redefinir sozinhos o mundo em que predominam os conflitos entre Estados nacionais submetidos a um único Estado nacional militarmente hegemônico (os EUA).

O que pode dar errado quando dois blocos de países usam a força bruta para conquistar ou preservar a hegemonia global? A destruição de quase todos os contendores foi o que ocorreu na I e na II Guerra Mundial. Os EUA ficaram intactos porque interferiram em conflitos distantes que não chegaram realmente ao território norte-americano. Isso obviamente não poderá ser evitado se a III Guerra Mundial realmente explodir.

Alarmado, um coronel da reserva dos EUA antecipa o pior https://youtu.be/ALb2FPXFro4. O depoimento dele é impressionante, mas está baseado num pressuposto errado. Os norte-americanos não atacaram o gasoduto russo para garantir os lucros dos atores globais e sim para tentar impor os interesses nacionais mesquinhos dos EUA.

É nesse contexto que a eleição brasileira será decidida. Qualquer que seja a decisão ela será histórica.

Lula defende o desenvolvimento do Brasil e se comprometeu com a preservação dos interesses nacionais brasileiros. Ele pretende restaurar a credibilidade do Estado como peça chave na expansão das potencialidades econômicas do nosso país. Bolsonaro pretende liquidar o que resta do patrimônio público como se a globalização não tivesse chegado ao fim. Quem votar no capitão defensor do neoliberalismo autoritário imaginando que isso provocará um salto em direção ao futuro somente conseguirá uma coisa: condenar o Brasil ao atraso num contexto internacional em que o país deveria reforçar sua capacidade de intervir na economia.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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1 Comentário

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  1. Uma questão é o envolvimento econômico que pode se dar entre as nações, outra bem diferente é relacionada à condição de cada nação e o que cada uma delas é cultural, filosófica, histórica e sentimentalmente. Aspectos econômicos não podem apagar o significado transcendental que identifica cada povo. Apenas na base da força, pelo tempo possível, se vai impedir o auto -reconhecimento de um povo em relação aos seus valores, o uso de produtos ou de serviços pode ser aceito mas não vai negar o que cada um é. Imaginar o cenário ideal ao próprio pensamento achando que nada vai se opor de forma natural ao argumento, muitas vezes ocorre. O fato é que impérios foram formados ao longo da história, mas o que permaneceu são os povos; a esfera de influência nessa disputa por hegemonia política e econômica pode ter um final trágico se não houver respeito em relação à existência dos povos. É preciso haver limites nessa disputa.

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