O ótimo e os inimigos do bom, por Guilherme Scalzilli

A liberdade de expressão funciona para os oportunistas como criptografias e algoritmos para os monopólios digitais.

O ótimo e os inimigos do bom

por Guilherme Scalzilli

As dificuldades do PL 2630 nasceram do esforço para agregar um arco excessivo de interesses corporativistas, que teoricamente facilitariam sua aprovação. Abrindo muitas frentes de diálogo, o projeto se afastou do consenso desejado. Terminou incapaz de atender às demandas geradas pela desnecessária complexidade que o sufoca.

Entendo que Orlando Silva tenha seguido o apanágio pragmático “o ótimo é inimigo do bom”. Uma lei permissiva, ou pontualmente vaga, seria melhor do que lei nenhuma. De fato, em especial na urgência deste caso. Mas há um limite a partir do qual a concessão vira derrota e o acordo passa a causar mais estragos do que benefícios.

A imunidade a parlamentares e manifestações supostamente religiosas é desses absurdos que tornam preferível o abandono da proposta. O resultado equivale a permitir discursos golpistas, homofóbicos, racistas e xenófobos, desde que fantasiados de opinativos ou partidários. No cenário ruim atual, pelo menos existe a chance de eventual punição.

Por outro lado, não é razoável criticar a “autorregulamentação compulsória” prevista na lei. Embora imprescindível, um órgão regulador jamais daria conta do varejo das denúncias cotidianas, que a direita calhorda tratará de multiplicar. Só as plataformas têm recursos técnicos e humanos para esse controle. E, a rigor, trata-se de ônus operacional que cabe às empresas, não aos contribuintes. Basta seguirem critérios preestabelecidos.

Insisto nesse aspecto fundamental: as plataformas não podem exercer arbítrio censório. Devem seguir apenas as leis vigentes, liberando o que não for expressamente proibido, adotando compensações proporcionais aos danos, identificando e banindo criminosos. Manifestação pública não obedece a “políticas internas”, e sim à constitucionalidade.

A ociosa referência às fake news atola o debate em definições de “verdade”, “mentira” e “erro”, depois envolve as de “golpe”, “fascismo” e “genocídio”, até que o impasse vire espelho das refregas digitais. Essa plataformização do ambiente legitima interlocutores nefandos, encabeçados pela seleta casta dos evangélicos que leem George Orwell.

A liberdade de expressão funciona para os oportunistas como criptografias e algoritmos para os monopólios digitais. Não por acaso, ambos os grupos apelam à autovitimização e exploram a hipossuficiência técnica dos usuários para convencê-los de que são livres nas redes sociais e, pior, de que têm o “direito” de espalhar falácias e agressões.

Abordando os disparos massivos nos aplicativos de mensagens, o uso de informações pessoais e o enquadramento das redes nos Códigos Penal, Civil e do Consumidor, com normas claras, simples e fiscalizáveis, a proposta já avançaria muito. Exigir que ela remende todos os defeitos da pós-democracia é uma maneira de inviabilizá-la. E não faltam vozes que defendem a regulamentação “ótima” porque adivinham o seu fracasso.

http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2023/05/o-otimo-e-os-inimigos-do-bom.html

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutor em Meios e Processos Audiovisuais. Website: www.guilhermescalzilli.blogspot.com

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador