Uma PGR para a humanidade, por Wilson Rocha Fernandes Assis

A instituição foi desenhada para defender os direitos humanos e promover a persecução dos indesejáveis, dos malfeitores e inimigos públicos.

Divulgação

Uma PGR para a humanidade

por Wilson Rocha Fernandes Assis

A pele envidraçada do edifício-sede da PGR, na primeira claridade do dia, é uma tela de céu azul e nuvens brancas, capaz de impressionar até os transeuntes cotidianos da cidade de Lúcio Costa. Araras e papagaios que voem por ali poderão se encantar com suas próprias cores, contrastadas no verdor do Cerrado à beira do Paranoá. Já aos leitores profissionais ou ocasionais da cena política, ou aos desconfiados em geral, a estrutura panóptica do edifício é capaz de semear receios e desconfianças. As superfícies espelhadas do prédio ao mesmo tempo escondem e revelam. Revelam com magnanimidade a presença institucional do Ministério Público na esplanada dos Poderes e escondem a complexidade da postulação desse Ministério Público como instituição autônoma, responsável pela fiscalização de poderes.

No espírito do genial Niemeyer, certamente havia o esforço de traduzir na concepção projetual do edifício as atribuições do novo Ministério Público brasileiro. A instituição foi desenhada ao mesmo tempo para defender os direitos humanos e promover a persecução dos indesejáveis, dos malfeitores, dos inimigos públicos. Uma proposta constitucional arrojada e ao mesmo tempo paradoxal. Fruto dessas contradições, pode-se confundir a estrela de oito pontas que figura no alto do bloco A do edifício com o rebranding da insígnia dos velhos xerifes de faroeste. Não sei se chegou a tanto a imaginação de Niemeyer, mas penso que a grandiloquência da arquitetura que perde suas proporções humanas para simbolizar a majestade do poder é sempre um mau agouro.

Os traços leves e aparentemente simples da arquitetura de Niemeyer escondem a complexidade e o esforço das estruturas. Igualmente, as poucas linhas com que a Constituição da República de 1988 desenhou o Ministério Público escondem o alcance e o impacto de suas atribuições na jovem democracia brasileira. Enquanto era dia e os ventos traziam certo frescor, a instituição colocou-se como defensora dos direitos humanos, da dignidade das minorias, do meio ambiente, da educação, da saúde, da probidade administrativa. São causas que a civilização, com razão, envolveu em certa aura de sacralidade, que não se ousa atacar, senão com doses cavalares de despudor e malvadeza, que se tornaram comuns ultimamente, para nosso espanto.

No lusco-fusco da democracia, quando o sol forte enfraquecia no horizonte, emergiu no seio do Ministério Público a Operação Lava-Jato. Naquela hora do claro-escuro, os espelhos da fachada que antes escondiam os ocupantes do prédio, tornaram-se vitrines diante das quais as lentes da sociedade se posicionaram. Na atividade frenética, sem saber que somos observados, às vezes nos distraímos das solenidades da civilização. Ao agachar-se demais, revelam-se os fundos; ao elevar-se demais, lá estão os fundos de novo descobertos. A ginástica do trabalho, especialmente para elevadas autoridades, exige um figurino adequado e ensaio honesto, sob pena de a solene apresentação virar quermesse.

Pois veio a noite. Chegaram os ladrões e o guarda do panóptico, um tanto embevecido dos próprios sucessos, bastante convencido de suas elevadas qualidades, não desceu de sua torre de guarda. E para que seu sono não fosse revelado no fundo falso do espelho onde se escondia, resolveu apagar as luzes e observar com alguma dose de melancolia e preguiça o avanço rápido da escuridão.

Deixando de lado as metáforas, é preciso tentar compreender como o MPF canalizou anseios difusos de reforma social, articulando-se com movimentos sociais de tendência regressista, capazes de sacudir as estruturas de nossa vida democrática. Essa discussão precede o debate sobre o papel do MPF na reconstrução em curso, ou melhor, na construção de uma nova democracia no Brasil. A República de 1988, com poucas transformações no nível econômico, viu emergir um neoliberalismo semi-escravagista e semi-colonial, que avança sobre esferas de poder antes atribuídas ao estado e a suas instâncias subsidiárias, sinalizando que o novo ciclo democrático ou será o de uma democracia mais radical e profunda ou não será.

Antes de discutir as tarefas que podem caber ao Ministério Público nesse novo cenário histórico, precisamos tentar compreender até que ponto os últimos acontecimentos protagonizados pela instituição sinalizam tendências da história do Brasil, movimentos que vêm antes e que vão além da própria instituição.

OS NOVOS TENENTES

É uma cena repetida na História do Brasil o ingresso de jovens bem formados no aparato estatal, que passam a operar com certa autonomia dentro da burocracia, apresentando-se como porta-vozes de aspirações da classe média urbana. Sua primeira aparição ocorre provavelmente com a crescente influência do positivismo nas fileiras militares, após a Guerra do Paraguai (1864-1870), resultando anos depois na Proclamação da República pelo Exército brasileiro, em 1889. Após um curto governo de generais, a República da Espada, de 1889-1894, o movimento fortaleceu-se nas Forças Armadas, que conceberam para si mesmas a missão de salvar o país das forças retrógradas que comandavam a República Velha. O movimento materializou-se na insurreição de setores intermediários do Exército, os “tenentes”, que protagonizaram episódios verdadeiramente épicos ao longo da década de 1920. Muitos foram mortos, outros tantos presos. Após mais uma tentativa fracassada de rebelião, formaram uma impressionante coluna militar, que percorreu mais de vinte e cinco mil quilômetros pelo Brasil. Desfeita a coluna em 1927, sua maior liderança, Luiz Carlos Prestes, abraçou o comunismo, enquanto outras lideranças empurraram o Brasil para sucessivas crises militares, que desembocaram no golpe de 64.

Os membros do Ministério Público e da Justiça que fizeram a Operação Lava-jato são a reemergência desse veio persistente da história do Brasil. Novamente, funcionários públicos autoencarregados da reforma da sociedade lançam-se ao enfrentamento das forças políticas, representadas como símbolo do atraso e da corrupção sistêmica. Atuam com autonomia, sem vínculos com movimentos sociais ou partidos políticos, buscando captar, interpretar e conduzir anseios sociais difusos de reforma e moralização política em proveito de seu próprio ideário institucional.

Poderíamos dizer, em suma, que o lavajatismo assumiu o papel de porta-voz das aspirações das camadas médias urbanas, que, por sua dependência estrutural das oligarquias dominantes, foi incapaz de organizar um partido político que expressasse seus interesses e que efetivamente contestasse a dominação oligárquica. Esse papel foi preenchido por um setor da burocracia estatal, que embora formado por integrantes da camadas médias urbanas, possuíam uma autonomia própria advinda de suas funções no aparelho estatal. A representação de interesses imediatos de uma camada social através de um segmento do aparelho de Estado, que enquanto tal é relativamente autônomo das forças sociais em conflito na sociedade civil, marcou de ambiguidades esse movimento político: o lavajatismo é liberal-democrata, mas manifesta tendências autoritárias; busca apoio popular, mas é incapaz de organizar o povo; pretende ampliar a representatividade do Estado, mas mantém uma perspectiva elitista; representa os interesses imediatos das camadas médias urbanas, mas se vê como representante dos interesses gerais da nacionalidade brasileira.

O trecho acima, grifado em itálico, foi extraído de Tenentismo e Política, de Maria Cecília Spina Forjaz, editado em 1987. Onde constava a expressão tenentismo, troquei por lavatismo para expressar a semelhança estrutural na interpretação que proponho entre a Lava-Jato e o movimento tenentista. Os novos tenentes trocaram a baioneta por ternos estilosos. As táticas de enfrentamento militar foram substituídas por estratégias midiáticas e jurídicas complexas. Embora as mudanças expressem certo avanço civilizatório, sentimos o mesmo ar embolorado da inspiração salvacionista dos militares brasileiros, o que ficou mais ou menos explícito na adesão entusiasmada de seus expoentes ao bolsonarismo. É a história repetindo-se como farsa.

O VELHO MPF ESTÁ MORRENDO. UM NOVO MPF PRECISA NASCER

A morte de Sepúlveda Pertence em 02 de julho demonstra que o templo implacável caminha para encerrar a geração de luminares que fizeram o Ministério Público de 1988. Pertence foi sagaz o bastante para perceber precocemente os problemas da criatura para cujo nascimento contribuiu. “Criei um monstro”, teria dito ao então presidente José Sarney, nos idos de 1989. Tendo a achar que o monstro é o próprio Estado, que vez ou outra, por susto, acidente ou engano, morde o calcanhar de seu dono. A novidade do Ministério Público de 1988 é que sua atuação como parte do aparelho punitivo crescia nutrida pela legitimidade social obtida pela “tutela coletiva”.

A conhecida brutalidade do aparato persecutório ganhou um verniz democrático e moderno e o Ministério Público ameaçou ombrear com os Poderes constituídos, insinuando-se como “quarto poder”. Instituições são obras sempre inacabadas, em constante refazimento. E na ciência política, como na arquitetura, as assimetrias estruturais da obra podem fazer ruir a construção. Ou melhor, construções assimétricas devem crescer apenas até certo ponto, sob pena de os desequilíbrios romperem a solidez projetada das estruturas.

A “tutela coletiva” traduzia um jeito de o Ministério Público existir, expressava a sua feição mais democrática e progressista. Após uma política consistente de cotas e a emergência de uma potente advocacia popular, a construção, contudo, parece envelhecida. A sociedade como um todo e, de forma especial, os seus segmentos mais vulneráveis amadureceram o suficiente para dispensar a
tutela estatal proposta pelo Ministério Público. Na terceira década do século XXI, no exercício da “tutela coletiva”, somos chamados a servir à sociedade em um regime honesto de cooperação com as demais instituições de Estado, sem privilégios, rompantes de protagonismo ou veleidades bacharelescas.

Nesse contexto, diante sobretudo da magnitude dos problemas a serem enfrentados na área socioambiental, parece claro que a PGR é um ativo a ser resgatado após a política de terra arrasada que o governo anterior legou às instituições. Para tanto, é necessário sinalizar com as mudanças necessárias, aptas a demonstrar o realinhamento da instituição com o projeto de fortalecimento da democracia brasileira, sob pena de condenar o Ministério Público definitivamente à caducidade precoce e à insignificância. Não há dúvida de que o Ministério Público é uma estrutura a ser mobilizada em prol do avanço das transformações sociais necessárias a um novo vigoroso ciclo democrático.

Todo o exposto acima é uma reflexão – quiçá, uma contribuição – sobre o momento importante em que se prepara a indicação de novo nome para a Procuradoria-Geral da República. Pela premência do calendário, o debate tende a concentrar-se na escolha de nomes que, por seu histórico de vida e trabalho, tendem a sinalizar os novos rumos que se pretende tomar. O presidente da República não poderá dispensar-se da tarefa de descer a uma análise mais profunda das complexidades da instituição, tendo em vista que, na escolha da PGR, como em outras decisões de governo, Lula dá sua contribuição para o futuro da República e da democracia no Brasil. A governabilidade para a qual a PGR deve contribuir é sobretudo aquela da plena vigência dos direitos e garantias fundamentais, da promoção dos grupos sociais mais vulneráveis, da proteção do meio ambiente e da rearticulação dos movimentos sociais em prol do avanço na implementação de direitos.

Por isso, deve a Procuradoria-Geral da República, do alto de seu panóptico envidraçado, ser capaz de enxergar a vastidão do Cerrado, da Amazônia e de seus povos originários. Do Planalto Central, deve ser capaz de ver o Atlântico e as Áfricas que existem além e aquém de nossas fronteiras. Deve ser capaz de ver e tocar as periferias racializadas e seu anseios de vida e de libertação. Uma PGR para a humanidade, que mantenha a compostura republicana e não se enlameie na sabujice bajuladora de quem persegue apenas prestígio e poder.

Wilson Rocha Fernandes Assis, procurador da República

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