Não é que somos todos Gaza. Na verdade, Gaza somos todos nós. Por Adriana Coelho Saraiva

O mito da ‘única democracia do oriente’ desabou: Israel mostrou sua face mais sangrenta, racista, cruel, e fomentada desde a educação primária

Não é que somos todos Gaza. Na verdade, Gaza somos todos nós.

Por Adriana Coelho Saraiva

Quando o Hamas perpetrou o ataque do dia 07/11, não suspeitávamos o quanto esse evento transformaria nossas vidas, por todo mundo. Falo aqui, é claro, das pessoas que se conectam ao que ocorre no mundo como habitantes desse planeta e que conseguem se colocar com um mínimo de autenticidade na pele do outro. Mas falo também do planeta, de modo amplo, das relações geopolíticas que nele se estabelecem, bem como das relações entre Estado e sociedade, entre poderes que são e poderes que podem vir a ser. 

Falo, sobretudo, do desmacaramento. Nesses quase sessenta dias em que mergulhamos na consciência desesperadora de que testemunhamos mais um genocídio com as características mais duras de crueldade de que o ser o ser humano é capaz, muitas máscaras se puseram simultaneamente ao chão. Uma delas, certamente, é o mito da democracia ocidental, supostamente fundada na defesa de direitos humanos e na liberdade de expressão. O contraste entre as alegações humanitárias utilizadas pelo Ocidente para acusar a Rússia na Ucrânia (onde a magnitude da mortalidade realizada em suas operações de guerra está longe de se comparar ao assassinato em massa de crianças, mulheres e idosos perpetrados por Israel) e as parcas declarações destinadas ao estado israelense, descortina com aspereza a absoluta disparidade com que são tratadas as forças ocidentais (Estados Unidos, Europa e Israel) e os demais integrantes do globo terrestre. Assim como o bloqueio total da mídia corporativa à perspectiva de Gaza no massacre também denuncia o vazio contido na expressão ‘liberdade de expressão”.

Por outro lado, caiu também ao chão o papel desempenhado por organizações multilaterais como a ONU ou a Cruz Vermelha. Nenhuma dessas organizações consegue de fato deter a fúria ensandecida do estado de Israel, uma vez que este conta com o apoio incondicional do ainda império norte-americano.  

Muitos foram os mitos que caíram por terra, mas chama a atenção o mito da excelência do exército israelense, que gozava até então de fama estupenda pelo mundo. Seu despreparo se revelou por entres as ruas destroçadas de Gaza, mesmo contando com uma superioridade numérica e bélica inquestionável.  A proteção garantida à imprensa em cobertura de guerra foi outra farsa derrubada. Até o momento, cerca de 70 jornalistas foram assassinados pelas forças israelenses. Da mesma forma, a regra básica humanitária que considera hospitais como locais a serem preservados de bombardeios. Ou seja, os valores civilizatórios mais básicos, considerados conquistas da contemporaneidade do pós grandes guerras, foram todos derrubados de uma só vez por Israel em sua insana e suposta busca pelos integrantes do Hamas e nenhuma lei ou instancia internacional foi/é capaz de o deter.

O mito da ‘única democracia do oriente’ também desabou: Israel mostrou sua face mais sangrenta, racista, cruel, e fomentada, pasmem, desde a educação primária, em suas escolas e demais instituições. E o escandaloso apartheid que se dissimulava pelas mentiras e esquecimento da mídia empresarial emergiu com a força de uma realidade pétrea que não pode mais ser ignorada. De ‘vitima’ Israel passou a ser visto por significativos segmentos da sociedade como estado genocida.

Mas há coisas boas e surpreendentes a constatar em meio aos escombros de Gaza. Gaza nos fez lembrar o poder da resistência a despeito da tremenda disparidade de forças; o poder da dignidade de um povo em luta por sua própria existência. Que exemplo emocionante esse povo nos traz! Esse exemplo ilumina e se junta às resistências históricas dos indígenas, do povo negro, das mulheres e de todos que desejam  ainda lutam por um mundo mais justo.

Gaza nos trouxe à memória que é possível resistir mesmo quando não há mais comida, remédio ou água. Não há mais espaço para as crianças brincarem, tampouco lugar para os bebês sobreviverem, nem as mulheres parirem. Mesmo assim, Gaza nos fez sentir a força que é preciso ter para combater os que pretendem, com sangue, ódio e/ou indiferença, tirar a vida dos que incomodam. Gaza despertou na sociedade global (naqueles em que é possível despertar) a consciência de que é preciso se levantar contra o arbítrio, contra as supostas ‘razões de Estado’, que na verdade são razões de poder oligárquico e financeiro. Gaza fez multidões se levantarem contra seus governos, que os proibiu de manifestar, exigindo que cessem as bombas que caem sobre as cabeças palestinas. É preciso que as bombas parem de cair e que os palestinos tenham condições de vida digna e livre!, gritamos todos nas ruas. Gaza evidenciou o imenso abismo existente entre Estado, suas ‘razões’ e o povo, a sociedade. Gaza declarou o divórcio entre o povo e seus governos de plantão.

Há ainda algo que sobressai, nos destroços de nossa parca humanidade, quando miramos Gaza. Gaza explicita que o mundo em que vivemos não admite quem não se submete aos poderes que são. Que o destino daqueles que são considerados desnecessários a um sistema voltado exclusivamente para a acumulação e o lucro é se tornarem guetos, pessoas sem direitos de existir, cidadãos de terceira categoria, com acesso limitado aos recursos necessários à sobrevivência. Uma sociedade destinada aos ‘vencedores’, na qual aqueles que não se encaixam em seus padrões de extrema competição e escassez de oportunidades, devem se contentar com uma cidadania limitada e uma vida precária. 

Gaza nos mostra, por oposição, a nossa cara no espelho. O que seremos, o que já estamos sendo, talvez sem perceber, por deixarmos que essa lógica financista, acumuladora, desigual, individualista e destruidora se aproprie de todas as dimensões de nossas vidas. Gaza é o cenário que seremos após a destruição total do meio ambiente: sem água, sem comida, porque não haverá para todos e quem terá acesso serão os opressores, os usurpadores. É também o local em que as pessoas pobres vivem, nas mesmas condições de escassez, violência policial, arbitrariedade estatal e precariedade financeira. Gaza, além de modelo é o símbolo do que esse sistema ‘constrói’ em nosso planeta, na sociedade e dentro de nós mesmos.  

Gaza, portanto, somos todos nós, e, se ainda pensamos em preservar alguma dignidade nesse planeta, se ainda desejamos condições mínimas de equidade e bem viver para nós mesmos, nossos descendentes e para o mundo como um todo; se ainda consideramos que cada povo deve ter o seu lugar, a sua autonomia e o seu modo de vida; devemos buscar em sua luta sobranceira a inspiração para nos unirmos a ela e apoiá-la nessa batalha dantesca que trava por sua sobrevivência como povo. Gaza, sua luta é minha luta.

Não é só que Gaza somos todos nós:  na verdade, todos somos Gaza.

Adriana Coelho Saraiva – Doutora em Ciências Sociais pelo Departamento de Estudos Latinos Americanos – ELA- UnB

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Redação

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  1. Segundo noticiário da imprensa, Netanyhorror, declarou que que as forças invasos de Israel só cessará os ataques, quando cumprirem com seus objetivos. E quais são esses objetivos? Exterminar a maior parte dos Islamitas palestino, principalmente as crianças e as mulheres e os que consiguirem sobreviver, serem expulsos da faixa de Gaza e posteriormente da Cisjordania. Se não me falha a memória,a única resolução da ONU que Israel respeitou parcialmente, foi aquela torta e torpe que autorizou a partilha da Palestina dando aos invasores sionistas, 53% das terras pertencentes aos palestinos islamitas e que se tornaram cerca de 70% logo depois da guerra árabe israelense. Assim sendo, já que a ONU não dispõe de meios coercitivos para fazer Israel cumprir suas resoluções, ela deveria pelos menos, instalar na sua sede, um genocidiômetro para contabilizar as vítimas da agressão de Israel em Gaza e outras áreas da Palestina.

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