O segundo turno de Bolsonaro: o discurso religioso como risco à democracia, por Camila Koenigstein

É importante atentar para o jogo ideológico que cada partido político faz e os apelos que utiliza para comover a sociedade a que pertence

Reprodução Redes Sociais

O segundo turno de Bolsonaro: o discurso religioso como risco à democracia

por Camila Koenigstein

O novo cenário desenhado com o encerramento do primeiro turno das eleições mostra a complexidade da sociedade brasileira após quatro anos de um governo que flerta com o fascismo, o colonialismo, o messianismo, o reacionarismo e inimigos imaginários, o que expõe características particulares que merecem uma atenção especial.

Geralmente quando ouvimos falar da ascensão da extrema direita, temos a impressão de se tratar de um bloco unificado, composto das mesmas características. No entanto, é importante atentar para o jogo ideológico que cada partido político faz e os apelos que utiliza para comover a sociedade a que pertence e assim conseguir um grupo coeso e fiel aos seus ideais.

Se em outros países como Suécia, Estados Unidos e Itália o nacionalismo, os valores conservadores e a xenofobia são os ingredientes dos partidos de extrema direita, no caso do Brasil, as fakes news, a religião e o conservadorismo conduziram 43,2% da população a apoiar a reeleição do atual presidente.

Uma das fake news compartilhadas nos perfis monitorados pela BBC News Brasil afirma que Lula editou um decreto para “banir a religião cristã” em 2010.

Trata-se de um vídeo que combina reportagens da Band e da TV Globo sobre o decreto conhecido pela sigla PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), de 2009.

Antes do vídeo, uma narração faz a seguinte pergunta: “Você sabia que em 2010 o presidente Lula assinou o decreto PNDH-3 para censurar a imprensa e banir a religião cristã e dar direito de posse da terra a invasores? Mas o projeto foi barrado pelo Congresso. Acha que se ganhar a eleição, ele não vai tentar novamente?”.

A alegação é falsa. O documento assinado por Lula não cita nenhum tipo de banimento da religião cristã. O decreto, que ainda está em vigor, propõe justamente o inverso: incentivar a liberdade religiosa e combater a discriminação.

Diante do mar de inverdades divulgadas nos últimos meses, prática amplamente utilizada pelos apoiadores do presidente Bolsonaro, encontramos um componente que sempre espreitou o âmbito político, mas neste momento ganhou contornos que podem definir os rumos do segundo turno: o fundamentalismo religioso, fenômeno complexo que vem crescendo vertiginosamente na sociedade brasileira.

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O campo do messianismo

São conhecidos há anos os vínculos estreitos entre Jair Messias e as inúmeras igrejas de vertentes evangélicas espalhadas pelo Brasil. Bolsonaro, que prega com veemência valores cristãos, ainda que atue de forma completamente contrária aos escritos bíblicos em que diz acreditar e os quais afirma seguir, criou ao longo do seu mandato um espaço no qual religião e política são basicamente faces da mesma moeda, ignorando a laicidade do Estado. Com isso, foi ocorrendo gradativamente no país um aumento da intolerância religiosa. Não surpreende o fato de que o neonazismo e a perseguição às religiões de matriz africana fazem parte dos noticiários de maneira constante, o que fomenta um ambiente de hostilidade até então pouco conhecido no Brasil.

No Distrito Federal, o número de denúncias pelo Disque 100 somou 18 em 2021. Os dados da Secretaria da Segurança Pública mostram que em 2021 foram registradas 22 ocorrências de discriminação religiosa em todo o DF. Em 2020, foram cinco ocorrências. Já em 2019, foram oito ocorrências e em 2018, 14 registros […] “Não se trata de intolerância apenas. Estamos falando de um racismo religioso. São ataques sistemáticos às nossas comunidades tradicionais, ao povo preto, aos terreiros”, aponta a mãe de santo Adna Santos, mais conhecida como Mãe Baiana de Oyá.

O que chama a atenção, no entanto, não é só a defesa intransigente a uma fé como universal, e sim o que hoje denominamos bolsonarismo, uma espécie de “seita”, que mescla elementos religiosos, discurso violento e hostil, e uma ode à liberdade, esta entendida como fator democrático, que consiste basicamente no direito de dizer qualquer atrocidade sem nenhuma consequência. O bolsonarismo não é um fenômeno propriamente político, e assim como o nazismo tem componentes místicos/religiosos, seletividade quanto ao tipo de conteúdo cristão que vai utilizar, além da criação de um imaginário próprio sobre o que seria um homem temente a Deus.

  No manifesto do nacional-socialismo, Hitler não só chega a defender uma espécie de ecumenismo de Estado – “para o futuro do mundo, não importa que os católicos vençam os protestantes, ou os protestantes, os católicos […]. Quem tem sentimentos nacionais tem o dever sagrado, cada um segundo o seu próprio credo, de fazer com que não se fale apenas da vontade de Deus, mas que ela seja colocada em prática e não se deixe profanar a obra de Deus” –, mas também chegou a se dirigir, “em fervorosa oração: Deus onipotente, abençoe um dia as nossas armas; seja justo como sempre foste; julga agora se merecemos a liberdade; Senhor, abençoe a nossa luta!”.

A defesa de Deus e das armas, que escutamos com constância, não é advento de um homem sem referências, ao contrário, Bolsonaro bebe de fontes que tiveram êxito no passado recente.

O fenômeno religioso no 2º turno

Neste início de segundo turno está clara a intencionalidade de Bolsonaro em levar o mote da campanha para o âmbito religioso, justamente por ser um terreno bastante escorregadio, repleto de subjetividades e alheio à materialidade. Um espaço cômodo para o atual presidente, que rege a nação por meio do medo.   

Nos últimos dias, o ex-presidente Lula teve que declarar sua religião, além de afirmar sua não relação com o que denominam diabo. Possivelmente em outros países laicos isso seria visto como absurdo, uma vez que o papel do Estado é garantir a liberdade de culto religioso – algo que Lula já havia feito via decreto em 2010 –, no entanto, com uma população majoritariamente cristã, torna-se imprescindível o posicionamento do ex-presidente sobre sua fé, o que por si só é bastante preocupante, ampliando a necessidade de debates sobre o atual cenário.

Há o risco de que esse seja o grande tema do segundo turno e o desvio do debate sobre os assuntos verdadeiramente relevantes. Ainda estamos caminhando por um país marcado pela pandemia e uma crise profunda onde temas como economia, saúde, educação, habitação e meio ambiente se fazem cada vez mais necessários. Pouco ou nada sabe a população sobre os rumos da sociedade brasileira caso o atual presidente vença as eleições, no entanto, com cada vez mais força vemos os debates acalorados nos grupos religiosos e a ausência de discussões sobre projetos políticos.

É fundamental que Lula se posicione como um ferrenho defensor dos valores democráticos, valores estes que incluem o direito à liberdade de culto religioso. A retomada do discurso político e a exposição das contradições e inúmeras falhas que ocorreram durante os últimos quatro anos de gestão bolsonarista dão ao ex-presidente a oportunidade para mostrar à população brasileira que é possível um novo reordenamento social via democracia plena. No entanto, abraçar essa pauta e se afastar da materialidade social pode levar a uma queda no poço do obscurantismo religioso, afundando o país em um caos econômico e social sem precedentes, e abrindo uma era que se assemelha mais a uma teocracia do que a um Estado democrático de Direito.

Bibliografia

https://www.brasildefatodf.com.br/2022/01/21/no-brasil-racismo-segue-sendo-o-motor-da-intolerancia-religiosa

https://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/559252-quando-os-nazistas-disseram-deus-esta-conosco

https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62985337

Camila Koenigstein – Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Colaboradora da Agência latino América de información e do Jornal Resumen latinoamericano. Colunista do Jornal GGN, portal de notícias Pragmatismo Político.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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