O processo da ONU que inocentou Lula e condenou o Brasil a repará-lo

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Lula não só é inocente perante um Tribunal Internacional, como condenou o Brasil a reparar os danos causados a ele

Foto: Ricardo Stuckert

“Injustiça”, “condenação manifestamente arbitrária”, “erro”, “violação de direitos”, “prisão arbitrária”, “incompetência do tribunal”, “juiz parcial”, “ataques ilegais à honra e reputação e à eleição”, “ataque à presunção da inocência”. Com estas e mais descrições que o Comitê de Direitos Humanos da ONU condenou o Brasil pela prisão e processo judicial “ilegais” da Lava Jato contra o ex-presidente Lula.

A decisão da Corte internacional foi tomada no dia 17 de março deste ano, garantindo a inocência de Lula, acatando a todos os argumentos da defesa do ex-presidente e concluindo que ele foi alvo de uma sequência de ilegalidades da Justiça brasileira. Como conclusão do processo internacional, a punição do Brasil estabelecida pelo órgão era a reparação dos danos à Lula, o que até hoje não foi feito pelo país.

Decisão do Comitê da ONU é obrigatória

Desde dezembro de 2009, o Brasil assinou como um dos países membros do Pacto de Direitos Civis e Políticos, pelo Decreto nº 311, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, com as determinações entrarando em vigor em território nacional.

A partir daquele momento, as decisões que tomariam o Comitê relacionadas ao Brasil assumiram caráter vinculante, ou seja, de decisão jurídica obrigatória pelo país.

O primeiro pedido da defesa de Lula à Corte internacional foi ingressado em maio de 2018, logo após a prisão do ex-presidente.

À época, o Comitê considerou que as informações fornecidas até então não permitiam a conclusão de que Lula sofria danos irreparáveis. A Corte voltou a examinar o caso em agosto de 2018 e constatou a “existência de um eventual dano irreparável aos direitos” de Lula.

Naquele ano, o Comitê decidiu que o Brasil deveria garantir a Lula o direito de concorrer às eleições em 2018.

Brasil ignora decisão internacional de 2018

Determinou “ao Estado Parte que tome todas as medidas necessárias para assegurar que o autor goze e exerça seus direitos políticos enquanto estiver na prisão, como candidato às eleições presidenciais de 2018, incluindo o acesso adequado à imprensa e de membros de seu partido político; bem como não impedir o autor de se candidatar às eleições presidenciais de 2018, até que os pedidos pendentes de revisão de sua condenação tenham sido concluídos em processo judicial justo e a condenação tenha se tornado definitiva.”

A decisão foi ignorada pelo Brasil, sob então a Presidência de Michel Temer, e em setembro de 2019, o Comitê voltou a cobrar do Brasil as obrigações de cumprir a determinação.

Mas para além da decisão de garantir a Lula o direito de concorrer ao pleito presidencial em 2018, enquanto o julgamento não fosse concluído em trânsito em julgado e garantido o devido processo legal, o Comitê voltou a aprofundar o pedido de Lula sobre a inocência do ex-presidente, em julgamento de março deste ano.

O caso tramitou ao longo destes anos com o pedido inicial da defesa de Lula, representado pelo advogado Geoffrey Robertson e por Cristiano e Valeska Zanin, em julho de 2016. As respostas do governo brasileiro foram enviadas, novas considerações da defesa de Lula foram feitas, com adição de manifestações do governo brasileiro e, em seguida, da defesa de Lula.

Brasil infrigiu o Pacto internacional

Desta vez, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu que o Brasil infringiu diversos regramentos junto à Corte Internacional, entre elas a não garantia de que Lula continuasse na disputa eleitoral de 2018, considerado pelo Tribunal como uma “falha em suas obrigações” e “desrespeito das medidas provisórias demandadas pelo Comitê para evitar danos irreparáveis”.

“O Comitê considerou que o Estado-parte não conseguiu fundamentar como o pedido de medidas provisórias foi atendido, na medida em que o autor [Lula] não foi autorizado a fazer campanha, nem concorrer como candidato nas eleições presidenciais de 2018 nos termos solicitados pelo Comitê.”

Um dos questionamentos levantados pela Advocacia-Geral da União contra o pedido de Lula no Comitê da ONU era que o ex-presidente entrou com a medida judicial no âmbito internacional sem ter esgotado os recursos nas instâncias da Justiça brasileira.

A alegação, por si só, já admite a validade e legitimidade jurídica dos processos que tramitam no Comitê de Direitos Humanos da ONU dentro do Brasil. Mas, além disso, o Tribunal Internacional deu razão à Lula ao afirmar que “o autor fez todas as tentativas razoáveis ​​para remediar as supostas violações em nível interno”, sendo assim, injustiçado em seu país.

Lula não teve reparação, diz Comitê

O órgão internacional também afirmou que Lula obteve a anulação de suas sentenças pelo Supremo Tribunal Federal, mas “que tal decisão demorou muito para ser considerada efetiva; e que não forneceu [a Lula] nenhuma reparação ou qualquer forma de restituição”.

“O Comitê observa que, exceto pelas alegações sobre o direito a um tribunal imparcial, as decisões do Supremo Tribunal Federal não se pronunciaram diretamente sobre as alegadas violações dos direitos do autor previstos no Pacto. Além disso, o Comitê observa que o Estado Parte não demonstrou como essas decisões foram eficazes para evitar todas as violações (…) ou que já tenha prestado reparação integral ao autor, proporcional a todas as violações alegadas.”

Ainda, o Comitê de Direitos Humanos ressaltou que não foram sanadas, dentro da Justiça brasileira, as violações praticadas pela Lava Jato contra Lula, incluindo “a condução coercitiva, a interceptação telefônicas e divulgação de conversas, a ausência de um tribunal imparcial, a presunção de inocência e ao direito votar e de ser eleito.”

Todos estes pontos anteriores foram expostos já, de antemão, para somente justificar que havia motivos para se julgar o processo de Lula na Corte Internacional.

A condução coercitiva foi ilegal

Especificamente sobre o julgamento, o Comitê de Direitos Humanos da ONU decretou que “ninguém pode ser privado da liberdade excepto por motivos e de acordo com o procedimento estabelecido pela lei”. E que Lula foi privado da sua liberdade já na condução coercitiva, em março de 2016.

O ato foi considerado pelo Comitê como ilegal, ressaltando, ainda, que posteriormente o juiz Sergio Moro foi considerado imparcial pelo STF no Brasil.

“Ao decidir sobre a falta de imparcialidade do juiz de instrução [Sergio Moro], o Supremo Tribunal Federal considerou prematura a expedição da condução coercitiva porque o autor não havia sido previamente intimado a comparecer em juízo, conforme determina o referido artigo. 260 (parágrafo 4.4). O Comitê, portanto, considera que a condução coercitiva não foi emitida de acordo com o procedimento estabelecido pela legislação interna do Estado Parte e declara que violou o direito do autor à liberdade nos termos do artigo 9 (1) do Pacto.”

Interceptação telefônica e vazamento ilegais

Com relação às interceptações telefônicas vazadas propositalmente por Moro, entre Lula e Dilma Rousseff e os advogados do ex-presidente, o Comitê considerou qeu foram “ilegais e arbitrárias” e uma violação ao artigo 17 do Pacto.

“Em relação às divulgações, o Comitê toma nota do argumento do autor de que a divulgação de diversas interceptações telefônicas entre ele, sua família, sua advogada e a ex-presidente Dilma Rousseff foi realizada em desacordo com os artigos 8º e 10 da Lei 9.296/96, sem interesse público concebível, e para humilhá-lo e intimidá-lo publicamente (parágrafo 3.3 Processo Inicial).”

“O Comitê observa que tanto a interceptação quanto a divulgação de conversas telefônicas constituem interferências no direito à privacidade, e que isso não é contestado pelo Estado Parte”, observou.

Acrescentou que no caso específico de Lula, o sigilo das conversas foi levantado após decisão judicial de Sergio Moro, então juiz competente do caso, o que justificaria a medida, mas que o diálogo com a ex-presidente Dilma foi “interceptado ilegalmente” e, claramente, a divulgação dessa conversa também foi ilegal.

Também completou que até a Suprema Corte brasileira “caracterizou todas as divulgações (incluindo aquelas envolvendo familiares do autor e seu advogado) como ‘manipulavelmente selecionadas’, e considerou que a escuta dos telefones do escritório de advocacia e do Sr. Teixeira objetivava ‘monitorar e antecipar as estratégias de defesa’ em ‘flagrante violação do direito constitucional [do autor] à plena defesa’.”

“O Comitê, portanto, considera que o momento e a forma de interceptação dos telefones do advogado e do escritório de advocacia e todas as divulgações revelam segundas intenções ‘não autorizadas pela lei’ nos termos do artigo 10 da Lei 9.296 e, portanto, arbitrárias. O Comitê, portanto, considera que as referidas interceptações e divulgações foram ilegais e arbitrárias, e as declara violações do artigo 17 do Pacto.”

Sergio Moro e “580 dias de prisão injusta

“Ser julgado por um tribunal independente e imparcial é um direito absoluto que não pode sofrer exceção”, introduziu o Tribunal sobre o juiz Sergio Moro. “No caso do autor, o Comitê observa que o Supremo Tribunal Federal apurou sete fatos que demonstraram que o juiz Moro era subjetivamente parcial.”

O Comitê lembra que se fosse cumprida a determinação do mesmo órgão emitida ainda em 2018 para o governo brasileiro de garantir um juizo imparcial, Lula não teria sido preso e impedido de disputar as eleições naquele ano.

“Para um observador razoável, os fatos ocorridos antes mesmo da primeira condenação do autor em 2017 mostraram que o elemento objetivo do requisito de imparcialidade não foi atendido. O Comitê observa que uma decisão oportuna sobre o assunto teria evitado o dano causado ao autor, que incluiu uma condenação, a confirmação da condenação, a proibição de concorrer à Presidência e 580 dias de prisão injusta.”

Lula é inocente, frisa Comitê

A instituição da ONU tem em sua jurisprudência que “[é] um dever de todas as autoridades públicas abster-se de prejulgar o resultado de um julgamento, e.g. abstendo-se de fazer declarações públicas afirmando a culpa do acusado” e que “[a] imprensa deve evitar a cobertura de notícias minando a presunção de inocência”.

Foram violados de Lula todos esses direitos, aponta o órgão.

“O Supremo Tribunal Federal decidiu que as ações do juiz Moro criaram uma presunção de culpa e uma expectativa geral de que ele seria e deveria ser considerado culpado (parágrafo 4.4 supra). Entre essas ações, destacam-se a emissão de condução coercitiva antecipada em violação ao direito interno ‘que proporcionou uma exposição que atentava contra a dignidade do autor e a presunção de inocência’ (Ibid.), e a divulgação ‘manipulavelmente seletiva’ (Ibid.) das interceptações ao público, ações que ocorreram muito antes da condenação do autor. O Comitê considera que essas ações e seu resultado constituíram uma violação do direito do autor de ser presumidamente inocente, conforme protegido pelo artigo 14 (2) do Pacto.”

A organização ainda aponta que os procuradores da Lava Jato, “as autoridades do Ministério Público não demonstraram a contenção exigida pelo princípio da presunção de inocência e, portanto, violaram o direito de autor”.

Direito de disputar eleições foi negado

O órgão concluiu que, assim como a prisão de Lula, o seu impedimento de concorrer às eleições em 2018 caracterizaram-se “violações” a dezenas de artigos do Pacto de Direitos Humanos junto à ONU.

“O Pacto reconhece e protege o direito de todo cidadão de participar da condução dos negócios públicos, o direito de votar e ser eleito e o direito ter acesso ao serviço público. Qualquer que seja a forma de Constituição ou Governo em vigor, o exercício desses direitos pelos cidadãos não pode ser suspenso ou excluído, exceto por motivos estabelecidos pela lei e que sejam objetivos e razoáveis.”

O grupo julgou ser ainda mais grave o afastamento do direito de concorrer às eleições aquele que foi alvo de uma injustiça e condenação arbitrária, como foi o caso de Lula.

“A Comissão recorda ainda que quando esta condenação for manifestamente arbitrária ou constituir um erro manifesto ou denegação de justiça, ou o processo judicial que resulte na condenação violar um julgamento justo, tornará arbitrária a restrição dos direitos previstos no artigo 25º.”

Punição ao Brasil

Como conclusão, o Comitê julgou que o Brasil violou, ao menos, seis artigos do Pacto de Direitos Civis e Políticos, e determinou que o país “tem a obrigação” de oferecer reparação a Lula.

“De acordo com o artigo 2 (3) (a) do Pacto, o Estado Parte tem a obrigação de fornecer ao autor um recurso efetivo. Isso requer que a reparação total seja feita aos indivíduos cujos direitos do Pacto foram violados. Assim, o Estado Parte é obrigado, entre outras coisas, a assegurar que o processo penal contra o autor cumpra todas as garantias do devido processo previstas no artigo 14 do Pacto. O Estado Parte também tem a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para evitar que violações semelhantes ocorram no futuro.”

No fechamento do julgamento, o Comitê de Direitos Humanos da ONU lembrou que o Brasil, ao se tornar parte do Protocolo assinado em 2009, “reconheceu a competência do Comitê para determinar se houve violações” e comprometeu-se a garantir os direitos reconhecidos pelo órgão e “a fornecer um remédio efetivo e executável quando uma violação foi estabelecida”.

Diante destas constatações, o órgão da ONU determinou um prazo de 180 dias ao Brasil para entregar “informações detalhadas sobre as medidas adotadas para efetivar as considerações do Comitê”, ou seja, a reparação aos danos de Lula e impedir que novos atos assim ocorram com o ex-presidente. Por fim, determinou ao Brasil publicar este relatório da ONU “traduzido para a língua oficial do Estado Parte e divulgá-lo amplamente”.

Até o momento, o governo brasileiro não cumpriu com as determinações do órgão internacional.

Leia, abaixo, a íntegra do processo:

ONU-DH-LULA

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Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

3 Comentários

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  1. O ato foi considerado pelo Comitê como ilegal, ressaltando, ainda, que posteriormente o juiz Sergio Moro foi considerado imparcial pelo STF no Brasil” – Não teria havido um engano na redação da frase acima? Não deveria ter sido escrito “parcial” no lugar de “imparcial“?

  2. Muito mais que isto, nao se pode entender que houve um “errinho” da justica, ou um mais um mero capricho do Moro ( embora sempre houve erros da justica e muitos muitos caprichos de Moro). Houve mesmo conspiracao civico militar e apoio externo. A historia um dia tera de deixar isto tudo bem mais claro, pena que talvez so para nossos bisnetos, depois de enormes estragos.

  3. A melhor reparação que podemos fazer é eleger Lula presidente do Brasil no próximo dia 30/10/2022 (de preferência com mais de 6 milhões de votos de diferença)!

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