Chacina no Guarujá há 13 anos matou 22 por retaliação a PM morto

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Denúncias à ouvidoria indicam que 19 mortos no Guarujá nos últimos dias foram retaliação por policial morto. História se repete?

Operação Escudo, razão da recente onda de violência e mortes no Guarujá, não foi suspensa. | Foto: Reprodução Redes Sociais

No dia 18 de abril de 2010, o policial militar da Força Tática Paulo Raphael Ferreira Pires foi morto por criminosos na Vila Baiana, no Guarujá, litoral paulista. Nos oito dias seguintes, uma onda de violência em represália foi imposta às comunidades carentes com 22 execuções no município e uma terceira em Santos, cidade vizinha.

Este episódio faz com que a atual onda de violência no Guarujá, com possíveis 19 execuções, e iniciada com a Operação Escudo e o assassinato do PM Patrick Bastos Reis, no qual se soma o atentado registrado em Santos nesta terça-feira (1), terminando com uma policial baleada, desloque a fala das autoridades paulistas para a naturalização da chacina.

Nos últimos dias, envolvente à Operação Escudo, da qual o policial morto fazia parte, foram registradas mortes em diversas localidades periféricas do Guarujá: na mesma Vila Baiana de 13 anos atrás, mas também na Prainha, na Conceiçãozinha e na Vila Júlia, onde o policial foi morto.

“A polícia vem sitiando as comunidades, está tudo sitiado. Entre ontem e hoje foram mais três mortos pela polícia na Prainha”, disse uma fonte residente no Guarujá ao GGN, que não identificaremos para preservar a sua integridade física. Ela acredita que o número de mortos tende a subir porque a polícia segue com a operação.

Um “Ato em Repúdio à Chacina na Baixada Santista” ocorrerá nesta quarta-feira (2) na Praça 14 Bis, em Vicente de Carvalho, Guarujá, às 14 horas. A Defensoria Pública também disponibilizou na cidade atendimento às vítimas e testemunhas da violência policial, de segunda à sexta, das 10h às 17 horas.  

Governador está “extremamente satisfeito”

O governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que lamenta as mortes, mas chamou denúncias de tortura de “narrativas” e considerou que na ação da PM “não houve excesso” e está compatível às agressões perpetradas contra a corporação, declarando estar “extremamente satisfeito” com a operação policial.

Uma liturgia assim não tão nova. Atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin se gabou ao jornal A Tribuna, em maio de 2010, durante visita a Santos como pré-candidato ao governo de São Paulo, que as 564 mortes, 505 só de civis, em maio de 2006, os chamados Crimes de Maio, não levaram ao indiciamento de sequer um policial.

O pré-candidato viria a ser governador, mas em 2006 havia saído do governo, herdado do falecido Mario Covas, para disputar a Presidência na reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Em seu lugar assumiu o vice, Cláudio Lembo, que ao lidar com os ataques do PCC culpou a “minoria branca” pela violência.

Para Lembo, a violência só iria acabar quando a “minoria branca” mudasse a sua mentalidade que considerou “má” e “muito perversa”. A fala foi duramente criticada pela imprensa à época, que induziu a intenção de Lembro de afastar a responsabilidade do governo.

Mas Lembo defendeu a polícia, dizendo que ela estava agindo dentro da lei. Meses depois de sua declaração, o macabro número de 505 civis mortos com marcas de execução se consolidou. A Polícia Militar dizia ser obra do narcotráfico, que aproveitou o momento para eliminar rivais. Nada disso se confirmou.

Estudos dos laudos cadavéricos implicaram ainda mais os grupos de extermínio na matança. A edição de 2010 do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos premiou reportagem do jornal A Tribuna. Nela, policiais e ex-policiais confirmam a existência de grupos de extermínio e da ação deles em maio de 2006 como retaliação aos ataques do PCC, que vitimou 59 policiais.  

Chacina institucionalizada      

A recente onda de violência em Guarujá volta como uma tempestade previsível assim como a postura de quem ocupa o Palácio dos Bandeirantes, mas desta vez Tarcísio Freitas defende a polícia como a instituição da chacina, condutora da Operação Escudo – diferente de antes, quando os governadores buscavam diferenciar o mau policial agindo por conta própria da corporação policial.

Há 13 anos, 23 policiais foram presos e mais de 40 foram investigados por envolvimento em grupos de extermínio compostos por policiais agindo “na touca”.

Os policias presos ficaram conhecidos como os Ninjas da PM, alusão às tocas que testemunhas relataram terem visto os executores usar no ato das chacinas. Em junho de 2010, mais 18 ninjas foram detidos pela Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A maioria do 21o Batalhão da PM no Guarujá.

No caso atual, não há indícios de que os policiais agiram na touca. Ao contrário, todas as mortes estão na conta da Operação Escudo. “Mas os grupos de extermínio nunca deixaram de atuar. Tem os ninjas e as próprias ações da polícia, que parecem estar na legalidade porque dizem combater a criminalidade”, disse a fonte ao GGN.  

O caso de 2010: vingança

O irmão do PM da Força Tática morto, que trabalhava em Guarujá integrando o 21o Batalhão, arregimentou outros colegas, de batalhões de Cubatão, Diadema e São Bernardo do Campo, para colocar adiante um plano de vingança na Vila Baiana, em Vicente de Carvalho.

A Vila Baiana não foi escolhida aleatoriamente. O PM Paulo Raphael Ferreira, considerado linha dura, ou seja, um policial com práticas violentas, realizou incursões nessa comunidade, pouco antes de ser morto, à procura do cadáver do irmão de um PM da capital paulista morto pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

De acordo com apuração junto a policiais civis à época, o PCC matou o irmão do PM porque ele havia cometido estupros e sido identificado pelas vítimas. Como é possível imaginar, a busca pelo corpo aconteceu sem mandados ou qualquer amparo legal: tocas ninjas e carros com placas adulteradas assumem o lugar da farda e das viaturas.

Um outro irmão entra na história, desta vez o de um traficante da Vila Baiana conhecido como Eduardinho. O PM Paulo Raphael e seus comparsas, em busca do cadáver, espancaram o irmão de Eduardinho. Fontes da Polícia Civil relataram que por isso Eduardinho decidiu pela morte do PM e ordenou a execução.

O caso de 2023: nova vingança?

A Ouvidoria da Polícia afirma que “não param de chegar denúncias de mortes” durante a operação da Polícia Militar que começou na última sexta-feira (28) com 600 agentes e deixou, até esta terça (1), 12 mortos, segundo a Segurança Pública do Estado de São Paulo.

“Nós percebemos que os boletins de ocorrência estão muito mal redigidos, gerando realmente espaço para dúvidas em relação aos números de vítimas”, declarou o ouvidor Claudio Aparecido. As mortes emergem no contexto de uma ação policial que travestiu uma iniciativa de vingança.

A ação, chamada de “Escudo”, que segue em curso, se deu após o soldado Patrick Bastos Reis, que atuava nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), na capital paulista, ser morto com um tiro no tórax enquanto fazia patrulhamento em uma comunidade. O tiro partiu de um suposto bunker usado por integrantes do PCC.

O suspeito Erickson David da Silva, apontado como responsável pelo disparo que matou Patrick, foi preso em São Paulo no domingo (30), após se entregar de maneira voluntária. Reconhecido por testemunhas, ele alega ser inocente e, segundo seu advogado, afirmou em depoimento estar no local para comprar drogas e fugiu no momento em que ouviu os disparos.

A Secretaria da Segurança afirma que 32 pessoas já foram presas e 11 armas foram apreendidas na investigação sobre a morte do soldado da Rota. Ainda não há prisões relativas às mortes na comunidade, atribuídas pelo governo estadual, até este momento, a uma reação da PM a suposto enfrentamento imposto às autoridades.  

A Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo apura a ocorrência de 19 mortes no total no Guarujá, ainda sem confirmação. O governador de São Paulo e o seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, disseram que não houve “excesso” da força policial na operação da PM.

ONU cobra ações       

O Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos cobrou nesta terça-feira (1) ação das autoridades brasileiras para investigar as mortes registradas no Guarujá nos últimos dias. A entidade ainda insiste que os responsáveis pelas execuções precisam ser levados à Justiça e punidos.

“Estamos preocupados com as mortes e pedimos uma investigação imediata, completa e imparcial, de acordo com os padrões internacionais relevantes – particularmente o Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilegais – e que os responsáveis sejam responsabilizados”, diz a ONU.

Ainda de acordo com o informe da ONU, é fundamental que a situação não permaneça sem uma resposta e que os padrões internacionais, estabelecidos no Protocolo de Minnesota, sejam respeitados. Chacinas e ações paramilitares de integrantes da Polícia Militar são bastante comuns no Brasil.  

O jornalista Jamil Chade, quem primeiro trouxe a notícia do comunicado da ONU, lembrou em sua coluna no UOL que, nos últimos anos, a violência policial tem sido um constante tema das queixas das Nações Unidas ao governo brasileiro, inclusive no que se refere à morte de jovens negros nas periferias das grandes cidades do país.

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

2 Comentários

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  1. Algumas observacoes e perguntas, sobre a cobertura da imprensa:
    – todas as fotos parecem ser fornecidas pela assessoria de imprensa da policia. Todas bem comportadas, mostram o rosto de policiais(!) mas nunca mostram se algum usa a camera corporal. A PM possui camera mans para “documentar” sua versao.
    – Entendo que nao ha jornalistas presentes nos locais. Estao impedidos ?
    – A populacao, como era a intencao, deve estar mesmo apavorada com esta operacao de guerra, e tambem nao divulga nada. Se quiserem divulgar, fora das redes sociais ( vigiadas), como fariam ? ( faz falta o Assange..)
    – Ficaremos a merce de uma futura apuracao oficial, que ja mostraram a conclusao antecipada.

    https://jornalggn.com.br/seguranca-publica/chacina-no-guaruja-ha-13-anos-matou-23-por-retaliacao-a-pm-morto/

  2. Há um intrigante “entendimento” de parte da sociedade de que “se os criminosos podem cometer crimes”, por que nós “do bem” não podemos?
    Não conseguem perceber que nem eles nem nós podemos…

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