O centenário de Saramago e o memorial dos trabalhadores em tempos de avanço da precariedade politicamente induzida

Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um

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O centenário de Saramago e o memorial dos trabalhadores em tempos de avanço da precariedade politicamente induzida[1]

Por Kátia Barbosa[2]

No ano do centenário de José Saramago, gostaria de evocar um pequeno trecho de um romance do escritor português. Ainda é muito viva, em minha lembrança, a emoção sentida no primeiro contato com a obra de Saramago, que se deu com a leitura do belíssimo Memorial do Convento. Para não apagar os inúmeros que construíram o Convento de Mafra, foram escolhidos nomes que representassem cada letra do alfabeto. Assim, todos aqueles trabalhadores que lá estiveram se encontrariam, de alguma forma, homenageados. Trago aqui o registro da passagem mencionada neste momento de desmonte dos direitos trabalhistas, sobretudo, com a reforma de 2017, após o golpe espúrio contra a presidenta Dilma Roussef, que impôs um custo altíssimo para os trabalhadores no Brasil:

(…) tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por  tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão.[3]

Saramago, que passou a fazer parte das minhas afinidades eletivas, tanto do ponto de vista ético quanto estético, sempre se recusou a tratar os vencidos como simples abstrações, como querem as estatísticas, que lhes retiram o valor das vidas. Para a filósofa Judith Butler: “Sem a condição de ser enlutada, não há vida, ou, melhor dizendo, há algo que está vivo, mas que é diferente de uma vida.”[4] Observa ainda: “Em seu lugar, “há uma vida que nunca terá sido vivida,” que não é preservada por nenhuma consideração, por nenhum testemunho, e que não será enlutada quando perdida.”[5] Não ser preservada por nenhuma consideração, nenhum testemunho é o destino de uma vida não passível de luto.

Diante do avanço da precariedade politicamente induzida, que vai estendendo a uberização como um modelo para as relações de trabalho no Brasil[6], importa muito resgatar que, para Saramago, as vidas dos trabalhadores não podem ser perdidas, o que faz com que o valor destas seja indiscutível para ele.


[1] BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.

[2] Membra fundadora da Rede Trabalho em Cena. Doutoranda em Teoria Literária (UFRJ). Mestre em Teoria Literária (UFRJ). Graduada em Letras (UFRJ) e em Direito (UCAM).

[3] SARAMAGO, José. Memorial do convento. 13ª ed. RJ: Bertrand Brasil, 1994, p. 242.

[4] BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? 1ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2015, p. 33.

[5] Ibidem.

[6] BARBOSA, op. cit., p. 56.

Redação

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