E a Desaceleração Global Chegou, por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari

O neoliberalismo não é sempre sinônimo de menos Estado, mas, sim, de um Estado controlado e direcionado para as necessidades dos ricos.

E a Desaceleração Global Chegou

por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari

Sinais Dissonantes

Nos últimos quinze anos, a economia mundial experimentou duas recessões, vale dizer, contrações da renda por habitante em seu conjunto. Em 2009, sua origem foi a disseminação de desequilíbrios financeiros derivados dos problemas no mercado imobiliário estadunidense. A assim-chamada “crise financeira global” constituiu-se no episódio mais disruptivo dos mercados financeiros desde a crise de 1929. A emergência de uma nova grande depressão só não se concretizou em função das intensas políticas anticíclicas, especialmente nas economias de alta renda. Em 2020, a pandemia da Covid-19 gerou outra recessão. Uma vez mais, a artilharia monetária e fiscal foi acionada, agora em uma escala ainda maior.

Conforme demonstramos em nosso livro “A pandemia e a ordem global: ensaios sobre geopolítica e economia”, no período em tela ficaram ainda mais evidentes as contradições, desequilíbrios e limites do padrão de governança e de integração das economias. A globalização sob o manto da ideologia neoliberal reconcentrou renda, riqueza e poder político nas mãos das elites das nações mais poderosas, cujos Estados Nacionais atuaram sempre no sentido de reforçar e de proteger as suas posições relativas. Ficou patente que o neoliberalismo não é sempre sinônimo de menos Estados, mas, sim, de um Estado controlado e direcionado para as necessidades dos ricos. Quando foi preciso expandir gastos e crédito para a defesa do establishment, as restrições impostas ao ativismo estatal foram facilmente rompidas. Porém, quando o objeto desta mesma ação se direcionava às áreas sociais, os mantras libertários eram entoados por políticos, acadêmicos e mídias especializadas em finanças.

Para os oráculos libertários, os excessos intervencionistas seriam punidos com novas recessões. Por isso mesmo, até o começo de 2023, os temores de uma nova recessão global estavam em alta. Todavia, os sinais mais recentes sugerem uma trajetória distinta. A agência europeia de estatísticas, Eurostat, acaba de publicar os dados revisados para o produto interno bruto (PIB) da área do Euro no primeiro trimestre do corrente ano. Ao invés de uma pequena alta frente ao último trimestre de 2022, verificou-se uma contração de -0,1%. Com isso, a região cuja economia possui um tamanho equivalente ao da China, entrou em “recessão técnica”, vale dizer, dois trimestres consecutivos de queda na renda. Porém, nas variações anualizadas, o que se apresenta é uma forte desaceleração, onde a variação do PIB passou de +1,8% a.a., no final de 2022, para +1,0 a.a.% no primeiro trimestre de 2023. Nos mesmos períodos e horizontes temporais, a economia estadunidense apresentou variações positivas no PIB, também com trajetória de perda de dinamismo: o ano passado encerrou com taxas anualizadas de variação de +2,6% e iniciou 2023 com +1,3% a.a. Na China, os números do primeiro trimestre vieram acima do esperado: incremento do PIB de +4,5% a.a. Já os dados mensais mais recentes sinalizam para a perda de fôlego nas exportações e na demanda doméstica, desemprego elevado entre os jovens e dificuldades no mercado imobiliário.

Se a possibilidade de uma nova recessão global está em baixa, o quadro de preocupante “desaceleração” ganha força. No “Global Economic Prospects”, publicado no começo de junho, o Banco Mundial (BM) estabeleceu suas novas estimativas do produto da economia global para 2023 e 2024, agora em +2,1% e + 2,4%, respectivamente. Para se colocar em perspectiva, em 2022, o crescimento foi de +3,1%. Na média do período 2010-2019, este parâmetro foi de +3,2% a.a. Dentre as economias avançadas (EAs) a perda de dinamismo é generalizada no biênio em curso, particularmente nos Estados Unidos (+1,1% e +0,8%), área do Euro (+0,4% e +1,3%) e Japão (+0,8% e +0,7%). Depois de um crescimento de +2,6%, em 2022, projeta-se variação do PIB de +0,7% e +1,2% em 2023 e 2024 nas EAs. Taís níveis seguem bem abaixo da média 2010-2019 (+2,1% a.a.).

Já para os países emergentes e em desenvolvimento (PEEDs), o BM projeta um patamar de expansão ao redor de +4% a.a., equivalente ao de 2022, mas inferior ao registrado entre 2010 e 2019: +5,3% a.a. As maiores desacelerações estimadas são nos países da América Latina, que cresceram +3,7%, em 2022, e têm projeções de +1,5% e +2,0% no biênio em tela; e do Norte da África e Oriente Médio. Como a heterogeneidade dos PEEDs é muito grande, cabe ressaltar os seguintes grupos analíticos com menor dinamismo: o conjunto de emergentes e em desenvolvimento, excluindo a China, com estimativas de +2,9% e +3,4%; e os países exportadores de commodities, com +1,9% e 2,8%.

O ciclo de alta nas taxas de juros e o aperto de crédito nas economias avançadas dificultam o acesso a financiamento internacional para os PEEDs. O protecionismo e a guerra na Ucrânia seguem comprometendo a expansão do comércio global de mercadorias, que atualmente equivale a 1/3 do ritmo pré-pandemia. Há importante deterioração fiscal em muitos países de baixa renda e níveis elevados de endividamento geral – público e privado – no conjunto dos PEEDs. A sequência de choques adversos – pandemia, guerra, desaceleração econômica e estresse financeiro – fez com que os PEEDs sigam com níveis de atividade abaixo do que se estimava ser possível antes da pandemia. Para o Banco Mundial, no final de 2024 a renda dos emergentes ainda estará 5% aquém do que se vislumbrava até meados de 2019. E, ademais, 1/3 dos países pobres terão renda per capita inferior ao nível de 2019. Neste cenário, permanecerão preocupantes os impactos do recrudescimento na pobreza extrema. Para Ayhan Kose, do BM: “Muitas economias em desenvolvimento estão lutando para lidar com crescimento fraco, inflação persistentemente alta e níveis recordes de dívida. No entanto, novos perigos – como a possibilidade de repercussões mais generalizadas do estresse financeiro renovado nas economias avançadas – podem tornar as coisas ainda piores …”.

A OCDE trouxe uma análise convergente em seu Panorama Econômico de junho, com projeções de expansão do PIB global em +2,7% e +2,9% em 2023 e 2024, respectivamente. Para 2023, trata-se do pior resultado dos últimos quinze anos, com exceção de 2020. Já no caso das economias da OCDE, as estimativas do biênio sugerem manutenção de padrões de crescimento abaixo da tendência pré-pandemia. A pressão inflacionária em 2022 gerou queda generalizada nos salários reais e na renda real disponível das famílias. Isso impactou negativamente a capacidade de gasto em 2023.

Riscos e Possibilidades

Se o desempenho dos primeiros meses do corrente ano foi melhor do que o esperado, dado o arrefecimento no preço da energia e combustíveis, as perspectivas de 2023 e 2024 dependem de dinâmicas que seguem em aberto. Há aspectos negativos e positivos no horizonte, sendo que os primeiros estão associados aos problemas da persistência inflacionária e dos desequilíbrios financeiros; e os segundos, da possibilidade de a China crescer acima do esperado, da desinflação ser mais rápida e disseminada nos países de alta renda e de haver resíduos de poupança gerados no período da pandemia e que poderiam ser direcionados para novos gastos.

A Focus Economics, que agrega previsões de economistas, indica haver um ambiente mais propício à “desaceleração”. In verbis: “A economia global desacelerará este ano devido ao aperto da política monetária. No entanto, a melhoria das cadeias de suprimentos globais, mercados de trabalho robustos e crescimento mais forte na China limitarão a desaceleração.” A Standard & Poors vê indícios de que o nível de atividades seguirá surpreendendo positivamente. Com base no J.P.Morgan Global Composite Output Index, calculado pela própria S&P, sugere-se uma expansão anualizada de 4% a.a. para o PIB global no segundo trimestre de 2023. Para o futuro, a dinâmica inflacionária determinaria a sequência do movimento em curso de maior dinamismo no segmento de serviços: “A expansão econômica global acelerou no início do segundo trimestre, impulsionada principalmente pelo crescimento mais rápido da atividade de serviços, enquanto o desempenho da indústria de transformação ficou para trás. Consequentemente, a dinâmica inflacionária também segue divergente, embora uma questão-chave para as perspectivas de inflação esteja associada ao ímpeto de recuperação em curso do setor de serviços.”. Ou seja, se os preços de bens industriais seguem comprimidos, a maior demanda por serviços pode gerar problemas de altas nestes segmentos, o que levaria os bancos centrais a manter as políticas de juros apertadas por mais tempo. 

Os analistas do Morgan Stanley também percebem um desempenho superior ao que era esperado no final de 2022, ainda que com perspectivas de baixo crescimento: “Em meados de 2023, a economia global está enfrentando uma série de ocorrências incomuns. O desemprego nos EUA está em seu ponto mais baixo desde 1968 e o núcleo da inflação é mais alto do que em 1983. O Federal Reserve e o Banco Central Europeu aumentaram as taxas em seu ritmo mais rápido em 40 e 30 anos, respectivamente, e, junto com o Banco do Japão, devem cortar seus balanços em um ritmo recorde. À medida que os bancos centrais continuam suas campanhas para diminuir a inflação, é provável que os EUA e a Europa evitem recessões, mas os economistas da Morgan Stanley Research acreditam que o crescimento do PIB global diminuirá para 2,9% em 2023. Isso está abaixo dos 3,5% em 2022, embora melhor do que o crescimento de 2,2% que os economistas previram no final do ano passado.”

Para Além da Conjuntura

As análises sobre a conjuntura enfatizam as dinâmicas de curto prazo das economias, com ênfase nas oscilações da renda, preços e emprego. Elas são importantes per se, mas não apreendem alguns aspectos relevantes, dentre os quais cabe destacar que a deterioração do potencial de crescimento de muitas economias expressa, no conjunto, as características e mudanças na estrutura da economia e da política na era da globalização neoliberal.

Assim, o baixo dinamismo na geração de renda e de emprego, a ampliação desequilíbrios de estoques e de fluxos financeiros, os problemas climáticos, a pobreza e a desigualdade são sintomas do padrão de crescimento, integração e distribuição das economias nacionais em escala global nos marcos onde predominaram as visões de mundo e as políticas econômicas derivadas do neoliberalismo e da hegemonia estadunidense. A crise em ambos se retroalimenta e contamina as perspectivas de um futuro melhor. Para se alcançar trajetórias de crescimento mais robustas, socialmente equilibradas e sustentáveis há que se constituir ambientes políticos capazes de minimizar os conflitos em curso e, mais importante, de renovar as distintas instituições que organizam a vida econômica e social.

André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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