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Por uma outra agricultura: Carta aberta ao presidente Lula, por Denise Elias

Entendo que todos que de alguma forma possam contribuir para a reconstrução do país, direta ou indiretamente, devam fazê-lo.

Responsável por grande parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, a agricultura familiar responde por 77% do número total e 23% da área de estabelecimentos rurais no Brasil. Foto: Acervo FAO

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Por uma outra agricultura: Carta aberta ao presidente Lula

por Denise Elias

Excelentíssimo senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Antes de mais nada, parabéns pela sua eleição à presidência da República. Ela traz esperança a milhões de brasileiros. Mas é importante termos os pés no chão e sabermos que a situação presente é de crise de várias naturezas e magnitudes. A reconstrução é necessária e urgente, como o senhor bem sabe, e exigirá esforços complexos, especialmente considerando a demanda de transformações estruturais e que quatro anos passam muito rápido.

Entendo que todos que de alguma forma possam contribuir para a reconstrução do país, direta ou indiretamente, devam fazê-lo. E é com tal objetivo que lhe escrevo essa carta aberta. Trato aqui um pouco sobre meu principal tema de pesquisa enquanto cientista da área de Geografia Humana, qual seja, o agronegócio brasileiro. Este é, sem dúvida nenhuma, um dos aspectos que necessita das tais transformações estruturais, ou seja, o modelo de agropecuária hoje reinante no país necessita de metamorfoses.

O tema é difícil e requer ser pensado de forma abrangente, abarcando seus aspectos econômicos, políticos, sociais e territoriais, lembrando que o método científico permite, a partir da análise de uma totalidade, realizar esforços de síntese e pensar em proposições para transformação.

A produção do agronegócio como fábula

Sei que talvez a conjuntura para enfrentar esse tema não seja favorável, até mesmo porque alguns que o apoiaram pertencem ou representam ramos desse segmento. Ainda mais difícil considerando que há décadas os agentes do agronegócio trabalham com o objetivo de produzir um imaginário social totalmente favorável ao setor, criando inúmeros mitos a ele associados e produzindo o agronegócio brasileiro como fábula (ELIAS, 2021)*.

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Não nos esqueçamos que a alienação é um dos pilares do modo de produção dominante. Como nos ensinou a filósofa Marilena Chauí (1981)**, a ideologia é um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação e, por intermédio dela, tomamos o falso pelo verdadeiro, o injusto pelo justo. Assim, para a expansão do agronegócio é imprescindível uma ideologia que o sustente e essa vem sendo construída há décadas.

Não são poucos os agentes da indústria cultural brasileira atuantes para tal objetivo. Mas, sem dúvida, poucos tiveram o alcance e atingiram tanto sucesso como a gigantesca operação publicitária veiculada pela Rede Globo de Televisão, principal canal aberto do Brasil. Intitulada o Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é tudo, a campanha foi lançada em meados de 2016 e está vigente até o momento. A oração que dá nome à mesma é repetida exaustivamente inúmeras vezes ao dia para milhões de brasileiros nos intervalos comerciais da emissora.

Desde então, a sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003)*** e a criação de mitos associados ao agronegócio fazem parte de nossas vidas e nossos corações, criando o agronegócio como um “produto” que vem sendo consumido por grande parte da população brasileira. Poderíamos mesmo dizer, adaptando noção do geógrafo Milton Santos (2007) para outros temas, que foi produzido um consumidor mais-que-perfeito para o agronegócio brasileiro.

Isso reforça a necessidade de discutir o que inferimos como alguns dos principais mitos nos quais se escora o agronegócio, visando possibilitar uma visão crítica sobre o mesmo, única forma de promover transformações, ou seja, ações contra-hegemônicas para reconstruir e transformar os processos hoje dominantes associados ao agronegócio. Só assim será possível trilhar os caminhos para uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

Entre os muitos mitos criados e difundidos inerentes ao agronegócio, abarcaremos aqui alguns deles, quais sejam o mito de que o agronegócio alimenta o mundo e de que acabaria com a fome no Brasil; o de que o agronegócio é ambientalmente sustentável e, por último, o de que os agrotóxicos não fazem mal à saúde do homem e do meio ambiente.  Para tal escolha, considerei a magnitude dos impactos negativos a eles associados e, dessa forma, a necessidade de que tais mitos possam ser desconstruídos.

O mito de que o agronegócio acabaria com a fome no Brasil

Para entender como se desenvolveu o agronegócio, é necessário nos remetermos aos anos 1960, quando o Brasil passou a viver metamorfoses radicais de sua atividade agropecuária. Naturalmente, não é possível aqui esmiuçar todos os agentes envolvidos e processos ocorridos desde então, mas, em síntese podemos dizer que, nesse ínterim, a agropecuária brasileira passou por uma muito forte reestruturação produtiva, por transformações neoliberais e pelo avanço do capital financeiro no setor. Como resultado tivemos uma significativa mudança das forças produtivas do setor, das relações sociais de produção e das formas de uso e ocupação do espaço agrário, caracterizando uma produção intensiva, realizada em grandes extensões de terras, tendo grandes empresas e corporações transnacionais à frente do segmento (ELIAS, 2018)****.

O Brasil hoje ocupa uma parte muito grande de seus milhões de terras agricultáveis para produzir algumas poucas culturas, especialmente commodities (soja, milho, algodão, café, carnes processadas, entre outras), voltadas não para alimentar sua população, mas para a exportação para poucos países. A prioridade dada à produção de commodities agrícolas e não à produção de alimentos da cesta básica dos brasileiros (como arroz, feijão, mandioca, entre outros) é um dos pilares explicativos para a vergonhosa quantidade de pessoas que passam fome no país.

Nos últimos anos, enquanto o agronegócio ostenta repetidos recordes de produção, produtividade e volume de exportações, cresceu sobremaneira o número de pessoas sem acesso à alimentação, recolocando o Brasil no Mapa da Fome da ONU, do qual havia saído em 2014, depois de mais de uma década de políticas públicas com tal objetivo, muitas delas iniciadas ou incrementadas em seus governos anteriores.

Sólida pesquisa científica realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Rede Penssan (2022)***** mostrou que são 33 milhões de pessoas nessa situação, sendo que mais da metade do total da população brasileira tem dificuldade de realizar as três refeições do dia. Já podemos aqui, então, desfazer um dos mais difundidos mitos inerentes ao agronegócio, qual seja, o de que ele alimenta o mundo e que acabaria com a fome no Brasil, quando a verdade é que ele não alimenta nem a própria população do país.

Comecei por esse mito pois entendo que desfazê-lo é primordial para alcançar um dos objetivos de seu futuro governo, tão destacado durante sua campanha eleitoral, como o de acabar com a fome. Como o senhor bem sabe Presidente, se não fosse a produção da agricultura familiar, a situação da fome seria ainda pior. E isso apesar de todos os ataques que o segmento vem sofrendo desde o golpe parlamentar da Presidenta Dilma Roussef, em 2016.

Desde então, assistimos a um verdadeiro desmonte de um conjunto de políticas públicas voltadas ao segmento, muitas criadas ou incrementadas em seus governos, tais como: a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; o estrangulamento dos recursos do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), doPrograma Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), da construção de cisternas, entre tantas outras. É essencial e urgente que tudo isso seja reconstruído.

O mito de que o agronegócio é ambientalmente sustentável

Outro mito bastante difundido sobre o agronegócio é o de que ele é ambientalmente sustentável. Bom, mais do que um mito, considero mesmo que isso é praticamente uma piada de mal gosto, tal qual como o mito anterior! Como sabemos o agronegócio é uma produção que se dá ocupando vastas extensões de terra com monocultivos e pecuária intensiva de animais (especialmente bovinos, galinhas e porcos), que há décadas promove tanto a substituição de culturas em áreas antes ocupadas com a produção de alimentos, quanto com a expansão para novas áreas. Muitas delas correspondem a matas e florestas naturais em todos os biomas brasileiros, que são devastados, sendo o caso do Cerrado um dos mais emblemáticos (vide os estados de Mato Grosso, o sul do Maranhão, o sul do Piauí e o oeste da Bahia).

Percentual significativo dos riquíssimos biomas do país hoje já se encontra destruído, levando à diminuição de uma das mais importantes biodiversidades do planeta e a um devastador processo de erosão genética e, naturalmente, de extinção de inúmeros saberes e fazeres construídos ao longo de séculos pelos povos originários, ribeirinhos, quebradeiras de coco, coletores de carnaúba e babaçu, pescadores artesanais, entre tantos outros. Junto aos recordes de exportações de commodities desde 2019, tivemos também crescimento do número de queimadas e desmatamentos batendo todos os recordes e consumido parte significativa do Pantanal e da Amazônia, especialmente.

Assim sendo Presidente, o mito de que o agronegócio é ambientalmente sustentável é outro que precisa ser desfeito para que o senhor possa atingir alguns de seus outros compromissos de campanha, tais como o de acabar com o desmatamento no país e de respeitar os povos originários. Imagino que tais questões estarão no âmago das pautas de suas reuniões durante a Cop27 no Egito, na presente semana.

O mito de que os agrotóxicos não fazem mal à saúde do homem e do meio ambiente

Pegando o gancho desse tema polissêmico e polêmico, o da sustentabilidade, aproveito para tratar de outra questão crucial que necessita de sua atenção: o uso quase que indiscriminado de agrotóxicos. Como sabemos, o agronegócio é um modelo de produção que se dá com o uso intensivo de insumos químicos e biotecnológicos como parte de suas forças produtivas, tais como, sementes transgênicas e agrotóxicos. Dada a gravidade da atual situação, considerando seja a quantidade já em uso, seja o grande número de novas liberações em andamento, destaco aqui os agrotóxicos.

O Brasil é um dos países no mundo que mais consome agrotóxicos em sua agropecuária e isso está em grande parte associado à produção do agronegócio, uma vez que as culturas da soja, milho, cana-de-açúcar e algodão estão entre as que mais utilizam tais venenos, respondendo por percentual significativo do total consumido no país. Isso vem representando um verdadeiro desastre para a saúde de todos os brasileiros, da mesma forma que para a saúde do meio ambiente, com a contaminação do solo, do ar, das águas e dos alimentos.

Essa realidade foi ainda mais agravada desde que se iniciou o atual desgoverno em janeiro de 2019, dado o número de novas liberações de agrotóxicos para uso em lavouras, que alcançou uma soma nunca antes conhecida para um mesmo intervalo de tempo. Desde então, foi autorizado um conjunto de produtos já proibidos em outros países por representar sérios riscos à saúde da população e ao meio ambiente. Em 2020, 1/3 dos agrotóxicos comercializados no Brasil tinha recebido registro durante os dois primeiros anos de governo Bolsonaro.

Da mesma forma, houve uma aceleração da tramitação do projeto de Lei 6.299/2002 – conhecido como “PL do Veneno”, que flexibiliza as regras de utilização de agrotóxicos. Além da regulamentação para o uso de novos venenos, está prevista até mesmo a mudança do termo agrotóxico, presente na legislação desde 1989, para defensivos fitossanitários ou pesticidas.

Várias instituições já se manifestaram contrárias às mudanças, devido os já comprovados e devastadores danos à saúde. Podemos aqui citar alguns deles, tais como as intoxicações agudas e as intoxicações crônicas. As primeiras afetam principalmente os trabalhadores agrícolas, expostos diretamente em seus locais de trabalho, e podem se manifestar como irritação da pele e dos olhos, vômitos, diarreias, dificuldades respiratórias, convulsões e, em última instância até em morte. Já as crônicas são de mais difícil detecção, até porque, por vezes, aparecem muito tempo após o período de exposição ao veneno. De maneira geral, afetam um número bem maior de pessoas, já que são decorrentes da presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos e no ambiente, mesmo que em doses baixas.

Os efeitos associados à exposição crônica incluem, por exemplo, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e alguns tipos de câncer. Pesquisas realizadas em lavouras do estado de Mato Grosso, entre os maiores consumidores de agrotóxicos no país, detectaram a presença de agrotóxicos até mesmo no leite materno de mães em fase de amamentação.

Para encerrar, faço só mais um destaque, considerando o recente aumento de casos de Covid-19, provocados pela nova variante em circulação no Brasil. Para além da diminuição da produção de alimentos; da perda da biodiversidade; assim como da contaminação do solo, do ar, dos alimentos e das águas, precisamos privilegiar um outro modelo de agricultura que não o do agronegócio. Afinal, já está provado que a monocultura e a pecuária intensivas são gatilhos de epidemias e pandemias, ou seja, sistemas promotores de doenças infecciosas (WALLACE, 2020)******.

As mudanças das formas de uso e ocupação do espaço em locais como o Cerrado e a Amazônia, onde as matas e florestas naturais estão sendo substituídas pela soja, por palmeiras para produção de óleo de palma, para a criação intensiva de animais para abate, entre outros, são verdadeiras fábricas de vírus. Portanto, não é delírio falarmos sobre a possibilidade de novas pandemias, em um futuro próximo, caso continuemos a insistir no modelo do agronegócio.

Enfim Presidente Lula, é necessário enfrentar esses e vários outros mitos inerentes ao agronegócio brasileiro, mas como seu tempo é curto e sua tarefa muito complexa, por ora ficarei com os supracitados.

Desejo coragem e muito sucesso em seu novo mandato.

Denise Elias – Geógrafa e Doutora em Geografia Humana. Líder do Grupo de Pesquisa Globalização, Agricultura e Urbanização (GLOBAU). Vice-líder da Rede de Pesquisadores sobre Regiões Agrícolas (REAGRI). Pesquisadora da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe). Colaboradora do BrCidades

*ELIAS, Denise. Mitos e nós do agronegócio no Brasil. Geousp,

v. 25, n. 2, e-182640, ago. 2021. ISSN 2179-0892. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/182640

**CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

***DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 2003. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf.

****ELIAS, Denise. Globalização e Agricultura. São Paulo: EDUSP, 2018 (reimpressão).

***** Dados da pesquisa realizada pela Rede Penssan (2022) disponíveis em: https://olheparaafome.com.br/

******WALLACE, R. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Elefante & Igra Kniga, 2020 (tradução de Allan Rodrigo de Campos Silva).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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