Argentina: o cidadão das teorias da conspiração e a propaganda antidemocrática, por Afonso Junior

Milei pode contar com uma massa de jovens que nunca viram a inflação controlada e uma classe média que herdou o ódio à igualdade.

Argentina: o cidadão das teorias da conspiração e a propaganda antidemocrática

por Afonso Junior Ferreira de Lima

Parece que Javier Milei foi muito mal no último debate (12 de nov. 2023). Demonstrou total despreparo quanto à máquina pública, atacou o Brasil, chegou a passar a especialistas a ideia de que não deseja ser presidente. A Argentina pode ser mais racional que o Brasil (80% do sistema universitário argentino é financiado por dinheiro público), mas o que significa um debate hoje?

Houve uma ótima reação desde o primeiro turno dos grupos mais ligados à agenda progressista: redes de comunicação (C5N, Televisão Pública), políticos regionais, sindicatos, organizações estudantis, etc. Foram colocadas em imagens e dados suas frases bombásticas, o improviso demonstrado, o medo (coerente) instalado.

Em 8 de novembro, na pesquisa do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica, Massa teria 46,7%, e Milei, 45,3%. 

Uma campanha publicitária de emergência denuncia Milei como um perigo para as crianças, já que defende que tudo se torne mercado, até mesmo os órgãos humanos.

As frases de Javier Milei ajudam: “Somos superiores, estética e moralmente” – no programa de Viviana Canosa. Suas imagens, como “Enquanto eles olham para a senhora na internet, eu estou no meio dos lençóis dela”, lembram irados incels. Uma das mais terríveis foi quando comparou o Estado a um pedófilo no jardim-de-infância com “crianças presas e vaselinadas”. Parece loucura, e é: “São os políticos que dirigem o Estado. Então, nossos verdadeiros inimigos são os políticos.” (El Ciudadano – 18 de outubro de 2023)

A única coisa com que Milei pode contar é uma massa de jovens que nunca viram a inflação controlada (com menos de dois dígitos ao mês) e uma classe média portenha que só precisa de segurança, porque herdou o ódio à igualdade.

A teoria do esforço: “Os colonos não esperavam nada de graça”, diz o escritor “liberal” Marcos Aguinis (participante de eventos do Freedom Foundation organizados por Mario Vargas Llosa) criticando os “conquistadores, caudilhos e líderes sindicais” que teriam se apropriado do Estado, sem colocar a imaginação à serviço da produção de riquezas. (AGUINIS, 2002, p. 193).

Em 1937, 15 mil foram ao evento do partido nazista argentino no ginásio Luna Park. E o grande capital, que fomenta o antikirchnerismo, criando um nojo insuperável: “114 mil argentinos têm mais de um milhão de USD e subordinam internamente a mais de 40 milhões.” (Bruno Beaklini, Brasil de Fato, 26 de Julho de 2022).

Eu tomo um Uber no Brasil.

O motorista pergunta minha profissão:

– Ah, educação. Era bom, agora é só ideologia. Os professores são os que têm menor QI.

Isso me leva a duas reflexões: o capitalismo (hoje, a acumulação improdutiva do financismo) produziu uma massa não apenas com incapacidade de pensar (como via a Hannah Arendt), mas a propaganda antidemocrática reforça a incapacidade de aprender.

O que não podemos esquecer é que Milei representa também um novo momento dos negócios, e os empresários já imaginam como vão lucrar no momento que acabarem os serviços públicos (Macri e seus amigos já o apoiam, com seus 24% da candidata Patricia Bullrich). “Nós vamos controlar o leão”, parecem pensar – e já vimos tudo isso.

Åsne Seierstad, genial jornalista norueguesa, escritora de O Livreiro de Cabul (2002), está na República Federal da Jugoslávia (1992 -2003) conversando com o camponês Deda Bora. Ouve com condescendência ele dizer:

– O padeiro Zane votou no Partido Democrata. Eu disse a ele que estão querendo vender a Sérvia à América, mas ele respondeu que quer mudanças.

Ela chama seu capítulo de “Curvados a Milosevic”, porque esses pobres habitantes do sul global parecem incapazes de entender uma ditadura

(SEIERSTAD, 2007, p. 43).

Mas o motivo da invasão de Belgrado em 1999 foi revelado pelo livro de John Norris, ex-diretor de comunicação do vice-secretário de Estado de Bill Clinton, Strobe Talbott, em 2005: “A resistência Iugoslava às tendências mais amplas de reformas econômica e política – e não o sufoco dos albaneses em Kosovo – é o que melhor explica a guerra da OTAN.” A liberdade das multinacionais globalizadas ganhava tons fascistas… (KLEIN, 2008, p. 390).

São Paulo viveu agora seus dias de Soweto, as vítimas do saque neoliberal. Em 2000, a Campanha contra o Neoliberalismo na África do Sul – reunindo ONGs, Partidos e movimentos populares – mobilizou 2 milhões de pessoas numa greve geral contra os efeitos nocivos do Consenso de Washington pactado com o partido do governo, o Congresso Nacional Africano (CNA). Falando em “forte desempenho de exportação” e “flexibilização do mercado de trabalho”, os planos deixaram dez milhões de pessoas sem água, dez milhões sem luz e mais dois milhões sem casa – por não poderem pagar as contas ou em função de despejos.

(KINGSNORTH, 2006, p. 103).

A angústia informe da pandemia, o delírio neoliberal do jornalismo, o sonho das multinacionais que se apropriam do Estado combinariam bem com um slogan como “não precisa haver Estado porque os pobres são criminosos”. É o fascismo capitalista, a racialidade neoliberal na qual, supostamente, a “casta esquerdista se une aos que vivem das tetas do Estado”.

Some-se a isso a redoma de cristal do algoritmo, que limita saberes produzidos por progressistas e as fortunas que patrocinam os conteúdos radicalizadores de direita na rede. A esquerda parece ter perdido contato com as massas, mesmo o governo Lula não parece perceber a doutrinação massiva, a criação de grupos fanáticos, as células de ódio se ampliando (e chegando ao Uber). Qual a informação que chega no Brasil radicalizado de Roraima, Mato Grosso, Goiás, de Santa Catarina?

Militantes têm sido ameaçados, como ocorreu com Agustín Rombolá, dirigente da Juventud Radical de Buenos Aires, que criticou a aliança Macri/Milei.

É a democracia alimentada pelo mundo paralelo da irracionalidade, o cidadão das teorias da conspiração. As seitas fanáticas que apostam na expulsão do diferente. Lembra as colagens macabras de Alfred Rosenberg, o principal teórico do nazismo, por exemplo quando disse para Sir Robert Vansittart e sua esposa em 1936: “Os negros representam a reserva comunista dos Estados Unidos. Os judeus pagarão algum dia por essa revolta negra comunista”. Ao que a Lady respondeu: “Você tem razão”. (HILMES, 2017, p. 109).

Houve um festivo alívio da imprensa progressista brasileira quando Massa ficou com 36,68% e Milei com 29,98% no primeiro turno. Mas análises superficiais não perceberão essas figuras que se movem nas sombras.

O neoliberalismo criou políticas que impediram o desenvolvimento do todo, a indústria de armas patrocina políticos para armar o cidadão que se sente superior (Milei defendeu a liberação da venda de armas de fogo). O discurso das grandes fortunas quer diminuir o número de “pessoas que importam”, como fazem os apartheids. A ideologia (da raça superior?) parasita os negócios, mas é mais que negócios. Nenhum lucro é melhor que o lucro colonial.

Afonso Junior Ferreira de Lima – historiador, Mestre em Filosofia (PUCRS), doutorando UNB.

AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: BEI, 2002.

HILMES, Oliver. Berlín, 1936. Barcelona: Tusquets Ed, 2017.

KINGSNORTH, Paul. Um não, muitos sins. Editora Record, 2006.

KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008).

SEIERSTAD, Asne. De costas para o Mundo – retratos da Sérvia, Rio de Janeiro: Record, 2007.

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