É ingênuo temer o pior, por Bernardo Carvalho

Enviado por Sergio Saraiva

A ironia é uma das minhas amantes mais caras. Muitas vezes, não é sem esforço pagar-lhe o preço. Pago-o com gosto. Assim, é também com gosto que compartilho este texto de fina ironia de Bernardo Carvalho, na Folha de 12 de junho de 2016.

Por Bernardo Carvalho

Ingenuidade

Na Folha de S. Paulo

É ingênuo pensar que toda brasileira, nem que seja apenas por ser mulher, devesse se revoltar e se sentir representada pela adolescente estuprada por um grupo de homens no Rio de Janeiro. É ingênuo pensar que bastaria se unirem na luta por seus direitos para que as brasileiras, que representam mais da metade do país, pudessem eleger afinal um governo que as representasse. É ingênuo pensar que toda brasileira devesse lutar por seus direitos, em vez de deixar as decisões sobre sua vida, seu corpo e sua saúde a cargo de quem melhor entende do assunto, como pastores e políticos comprometidos com interesses de igrejas.

É ingênuo achar que um governo cujo líder na Câmara é, não por acaso, um dos autores (ao lado de Eduardo Cunha) do projeto de lei que dificulta o acesso ao aborto a mulheres vítimas de estupro tenha algo contra as mulheres. É ingênuo achar que elas não estejam em boas mãos.

É ingênuo relacionar fatos tão díspares quanto o líder do governo na Câmara ser autor de um projeto de lei dessa ordem, um delegado pôr em dúvida a existência de crime no caso da adolescente estuprada por um grupo de homens (aproveitando para constranger a vítima sobre a veracidade de sua denúncia) e o país ser recordista absoluto em estupros (declarados, um a cada 11 minutos em 2014). Que é que essas coisas têm a ver umas com as outras se não a simples coincidência de terem ocorrido no mesmo país?

É ingênuo supor que, a julgar pelo comportamento desse delegado, haja algum risco de não produzir os efeitos desejados uma lei que exija o exame de corpo delito da vítima como condição para que ela tenha direito ao aborto.

É ingênuo acreditar em tudo o que dizem os jornais estrangeiros.

É ingênuo imaginar que, por ser gay, um gay devesse pensar duas vezes antes de aplaudir um governo abençoado, a portas fechadas, por Silas Malafaia e Marco Feliciano. É ingênuo imaginar que, por ser gay, todo brasileiro gay já devesse ter entendido que o governo Temer (e o que ele anuncia) não só não o representa mas representa uma séria ameaça aos seus direitos e ao seu futuro.

É ingênuo pensar que as gravações reveladas no último mês pudessem derrubar o governo. É ingênuo pensar que essas gravações, nas quais o então ministro do Planejamento e o presidente do Senado revelam que o impeachment era o que lhes restava para salvar a pele da sanha da Justiça, tenham alguma consequência, relevância ou significado.

É ingênuo pensar que o presidente interino nomearia ministros investigados e envolvidos em ações comprometedoras se achasse que havia algum risco de isso comprometer seu governo. É ingênuo considerar tropeço ou desvio de percurso a ideia de pôr um pastor no Ministério da Ciência ou uma mulher que já disse ser contra o aborto até em casos de estupro, além de ser suspeita de articulação criminosa, na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. É ingênuo achar que o presidente em exercício não saiba o que faz.

É ingênuo desconfiar de um governo só porque seus ministros dizem uma coisa um dia e o oposto no dia seguinte, para abafar o escândalo provocado pelo que realmente pensam.

É ingênuo imaginar que haja algo errado ou contraditório entre impor um arrocho econômico à população mais pobre, deixando a saúde e a educação à míngua sob o pretexto de salvar o país da falência, e aprovar um aumento para os salários do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, com custo bilionário para os cofres públicos.

É ingênuo temer que, por causa da irresponsabilidade de uma elite deseducada e suicida, disposta a tudo para não pagar nem mais um centavo de imposto, uma elite à qual o atual governo veio prestar contas, o Brasil não saia de crise nenhuma, mas só afunde numa crise ainda maior, pelo desbaratamento de pilares estruturais como a saúde e a educação públicas. É ingênuo achar que saúde e educação públicas são a condição de possibilidade da solvência do país a longo prazo. É ingênuo dizer que a elite brasileira pensa curto.

É ingênuo pensar que um ministro da Educação que recebe conselhos de Alexandre Frota e de um integrante do grupo Revoltados On-Line não tenha excelentes planos para o futuro da educação no país.

É ingênuo temer pelas mulheres, pelos mais pobres, pelos gays, pelos ateus, pelos direitos individuais, pela ciência, pelas artes, pela inteligência e pelo bom senso. É ingênuo temer o pior. É ingênuo achar que não estejamos no caminho certo. É preciso ser muito ingênuo para ainda não ter entendido que esse é um governo de salvação nacional. 

***

PS.: a Oficina de Concertos Gerais e Poesia toma carona no texto de Bernardo Carvalho para passar para frente o seu peixe pobre: ”Das facas, amantes e ironia”.

Redação

11 Comentários

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  1. Quanta ingenuidade

    Quanta ingenuidade achar que conversando com alguns senadores haverá possibilidade de conter o impeachment no Senado;

    Quanta ingenuidade achar que contendo o impeachment no Senado haverá possibilidade de retorno da presidenta ao governo;

    Quanta ingenuidade achar que retornando a presidenta ao governo haverá possibilidade de governar o país;

    Quanta ingenuidade achar que governando o país haverá possibilidade de restabelecer a normalidade democrática;

    Quanta ingenuidade achar que restabelecendo a normalidade democrática haverá possibilidade de sairmos deste atoleiro;

    Quanta ingenuidade achar que saindo deste atoleiro pelas vias democráticas será possível.

  2. Genial! Muito obrigado!

    podemos acrescentar:

    “É ingenuo pensar que o editor da FSP e os jornalistas e estagiários que ali ingenuamente acham que trabalham, tenham entendido o texto.

    É ingenuo acreditar que os derradeiros leitores da FSP tenham entendido o texto.”

    1. Subestimar a inteligência dos

      Subestimar a inteligência dos outros não é ingenuidade, é algo mais comovente e às vezes inominável. Deveria ser o mais baixo estágio dos menos inteligentes.

  3. Ingênuo demais

    O artiiculista, muitas vezes brilhante, desta vez se prendeu tanto ao bordão ” É ingênuo…”, se condicionou a essa abetura de frase  que fez um texto ingênuo e confuso.  Esse resultado paradoxal deve-se também a ansia de querer abraçar muitos temas e situações de uma só vez. Ele foi ingênuo demais nessa pretensão.

  4. ingenuidade- minha contribuição

    É  ingênuo achar que os ingênuos ganham no final e os malvados se ferram.

    É ingênuo achar que um texto sobre ingenuidade pode mudar alguma coisa.

  5. Mais ingenuidades

    É ingênuo pensar que o Ministério Público, a Polícia Federal e ministros do Supremo são cúmplices do golpe.

    Aliás, é ingênuo pensar que existe um golpe em andamento.

     

     

  6. Mais ingenuidade

    Mais Bernardo de Carvalho:

    Neste domingo, completa-se um mês desde que Dilma Rousseff assinou a notificação do impeachment, deixou o Palácio do Planalto e se recolheu ao Alvorada. Na temporada de exílio, ela criticou o substituto e prometeu lutar para voltar à Presidência. Faltou responder a uma pergunta: voltar para que?

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    “…Na noite de quinta-feira, surgiu uma pista. Em entrevista à TV Brasil, ela indicou que convocaria um plebiscito sobre a realização de novas eleições.”

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    “A presidente foi afastada por 71,5% dos deputados e 67,9% dos senadores. No papel, ela só precisa virar cinco votos no Senado para enterrar o processo de impeachment. Na prática, teria que reconquistar mais de uma centena de parlamentares para reassumir com condições mínimas de tocar a máquina.”

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    “….Na noite de sexta, o ex-presidente Lula discursou para uma multidão na avenida Paulista, mas preferiu evitar o assunto. “

     

     

  7. Haja ingenuidade

    É ingênuo acreditar que quem realmente está comandando os fios que movem os fantoches brasileiros atualmente no governo  e Conresso são os US.

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