Kabuki em São Paulo, por Walnice Nogueira Galvão

Kabuki em São Paulo, por Walnice Nogueira Galvão

Fujima Kanjuro, grão-mestre do Kabuki, apresentou-se pela primeira vez no Brasil, no Sesc Pinheiros. Trouxe um espetáculo variado, perfeito e afinado até o último grau – como costuma ser o Kabuki, gênero exigente.

Era difícil decidir o que mais admirar. A orquestra de onze músicos cobertos de preto encaminhava a ação, com diferentes vozes e percussão de diversos instrumentos.  Permanecendo o tempo todo à vista no palco, é ela que vai narrando o enredo numa mistura de canto e recitativo, que se materializa dramaticamente na coreografia dos personagens.

O cenário minimalista e gráfico mostrava uma escada de largos degraus, toda preta. A notar o  “covil da Aranha” do número principal: um entrançado de gravetos, folhas secas e coisas indistintas, tendo ao fundo do ninho um recorte brilhante em verde e vermelho.

Deslumbrantes os figurinos do conjunto de sete atores, com  destaque para o fausto e o brilho dos cetins lavrados, dos brocados, dos damascos, com cores ou berrantes ou sutis. Um quimono transformava a portadora em borboleta de asas cor de laranja. As roupas masculinas tendiam a  cores mais sóbrias, fazendo contraste. Mas nem por isso eram menos luxuosas. O número principal, o da “Aranha da Montanha” – monstro meio animal, meio espírito com poderes mágicos – trazia o protagonista num suntuoso quimono dourado, estampado ton-sur-ton. Não faltaram danças do leque, tanto femininas quanto masculinas.

Os homens, sempre na performance japonesa, um tanto truculentos e em poses frontais, de pernas abertas bem plantadas no chão. As mulheres, em silhuetas sinuosas, apresentando o corpo de perfil e o rosto de frente, desenhando no ar um S.

Envoltos em preto e com o rosto coberto por uma máscara preta, os contraregras ajudavam a deslocar os praticáveis daqui para ali, enquando assessoravam a mudança de roupa dos personagens em cena aberta. Complementava-os um personagem caricato com movimentos mecânicos de robô, mas vestido de quimono e maquiado, que fazia as vezes de mestre-de-cerimônias.

Fez grande sucesso o lançamento, pela Aranha, de uma teia de filamentos brancos longuíssimos que eram atirados sobre outros personagens, mas atingiam a plateia, e que a certa altura atapetavam o palco.

Esse que ora nos visitou com tão belo espetáculo é Fujima Kanjuro VIII (nome ganho como título), oitavo de uma dinastia de grão-mestres do Kabuki, com nome que passa de professor para discípulo na linhagem. Embora tenha menos de 40 anos, é o diretor de uma escola de Kabuki em Tóquio.

As personagens femininas eram encarnadas por mulheres mesmo, o que é surpreendente, porque o Kabuki mais ortodoxo, pelo menos até há pouco, só admitia homens no palco, tal como o teatro de Shakespeare. Desempenhar papel de mulher exigia uma tal especialização que se alçava praticamente a obra de toda uma vida.

Em tempo: o espectador sente falta de uma tradução do entrecho que está sendo cantado e declamado pela orquestra. Bem que podiam copiar o exemplo das óperas, que trazem um letreiro eletrônico desfilando lá no alto sem atrapalhar a movimentação em cena. Os atores propriamente ditos raramente falam.

Brecht declarava-se fascinado pelo teatro japonês, que lhe forneceu não poucos elementos para sua teoria e prática do teatro épico. Pois a função narrativa da orquestra torna épico esse teatro: ela está ali para contar a história, interpondo-se àquilo que os atores dramatizam. Por isso o Kabuki é anti-ilusionista, virtude cara a Brecht, instaurando o distanciamento épico e ostentando honestamente sua ficção, sem querer passar por real. Concorrem para isso as intervenções dos contraregras em cena, movendo objetos do cenário e vestindo ou desvestindo os atores, quebrando a ilusão dramática.

Em suma: uma arte milenar, em que mímica e expressão corporal se fundem num ideal de perfeição visando à beleza, em que tudo é ritualizado e hierático, com rígidos protocolos de comportamento.

E o Kabuki dá o que promete: ka de cantar, bu de dançar, ki de representar.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP.

 

Walnice Nogueira Galvão

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