O patrimonialismo de armas, por Gláucio Guimarães Medeiros

Uma análise crítica sobre a mobilidade unilateral das Forças Armadas na Administração Pública

O patrimonialismo de armas

por Gláucio Guimarães Medeiros¹

“Remember, remember, the fifth of november, the gunpowder, treason and plot;
i know of no reason, why the gunpowder treason should ever be forgot.”.
Ditado popular Inglês2

Resumo: Em vias de uma nova reforma constitucional sobre a estrutura orgânica da Administração Pública brasileira, resquícios históricos nos mostram que uma relação institucionalmente enviesada perdura desde a proclamação da República, na qual podemos presenciar uma simbiose autossuficiente e silenciosa, que imbrica indevidamente os conceitos científicos de Estado e governo, significantes tão caros à ciência política. Desde a guerra do Paraguai (1864-1870), o exército brasileiro alçou verdadeiro status de pureza patriótica, seja pela hegemonia armamentista alcançada no continente ou mesmo pela crescente eleição de militares de altas patentes junto ao Senado Federal, aliado a isso, ainda contaríamos com a influência positivista europeia sobre as forças armadas, que se tornaram a fonte política da República vindoura. Com sua proclamação, o Brasil experimentou algumas evoluções em seus sistemas administrativos, pelos quais citamos o forte patrimonialismo da primeira república, a ab-rupta burocracia de Vargas ou mesmo o seu aprimoramento de cunho gerencialista anglo-americano que perdura até hoje de forma fragmentada. Com esse breve histórico, as Forças Armadas sempre gravitaram em torno do sistema governamental brasileiro, sendo atores destacados do munus público administrativo, usufruindo da estrutura de órgãos, cargos e funções, o que o faz portador unilateral da espada de Dâmocles, gerando assim um patrimonialismo paracivil, pelo qual se comprova que o ocasional desgosto das armas, deságua irrefreavelmente num momento de desestabilização republicana.

Palavras-chave: Administração Pública, sistemas administrativos, patrimonialismo, militarismo.

Abstract: In the course of a new constitutional reform on the organic structure of the Brazilian Public Administration, historical remnants show us that an institutionally biased relationship has persisted since the proclamation of the Republic, in which we can witness a self-sufficient and silent symbiosis that unduly overlaps scientific concepts of State and government, signifiers so dear to political science. Since the Paraguayan War (1864-1870), the Brazilian army has achieved a true status of patriotic purity, whether through the Arms hegemony achieved on the continent or even through the growing election of high-ranking military personnel in the Federal Senate, allied to this, we would still count on the positivista European influence on the armed forces, which became the political source of the coming Republic. With its proclamation, Brazil underwent some evolutions in its administrative systems, for which we cite the strong patrimonialism of the first republic, the abrupt bureaucracy of Vargas or even its improvement of the Anglo-American managerial nature that persists until today in a fragmented way. With this brief history, the Armed Forces have always gravitated towards the Brazilian government system, being prominent actors in the public administrative munus, enjoying the structure of organs, positions and functions, which makes them the unilateral bearer of the sword of Damocles, thus generating patrimonialismo paracivil, by which it is proven that the occasional dislike of weapons, it flows unstoppably at a time of republican destabilization

Keywords: Public Administration, administrative systems, patrimonialism, militarism.

Sumário: 1. Introdução – 2. O movimento constitucional de mão única – 3. Do postulado da equivalência funcional – 4. Da inexistência de regime jurídico próprio aos cargos em comissão – 5. Do patrimonialismo de armas como prática endoestruturalista – 6. Conclusão.

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1. Introdução

Toda história tem uma estrutura, uma forma de ser contada, um início com a apresentação de seus personagens, um enredo homérico caracterizado pelas intempéries de uma longa e cansativa jornada; mas acima de tudo, uma história tem a grande e única finalidade de tentar capturar o coração dos leitores mais desavisados, pois uma boa história, antes de qualquer coisa, necessita de quem lhe dê atenção e acredite fidedignamente em sua narrativa, mesmo que mais tarde tudo não tenha passado de uma grande fabulação, de um belo canto de Calipso.

Nossa história terá como personagem de partida o polímata Rui Barbosa de Oliveira, baiano de nascimento, preponderantemente jornalista, advogado e político, foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e republicano por toda vida, também patrocinou a causa abolicionista, chegando a ser convidado para o cargo de juiz no Tribunal Mundial da Liga das Nações. Rui Barbosa foi o grande mentor jurídico da primeira república, sustentou normativamente o golpe militar de 1889 (e dizem as más-línguas que ele, em 14 de dezembro de 1890, queimou toda a documentação pública relativa aos contratos escravagistas, o que permitiu aos grandes fazendeiros iniciar um movimento indenizatório em decorrência da abolição).

O celebre baiano gozava de tamanho prestígio junto aos militares, que em companhia de Prudente de Morais, redige praticamente toda a Constituição de 1891 e ainda se torna o 1º Ministro da Fazenda da história do país. O que o Águia de Haia não sabia é que pouco tempo depois da proclamação da República, sua política monetária, permitindo a impressão de papel-moeda pelo próprio sistema bancário (evento posteriormente conhecido por encilhamento), mancharia seu ilibado currículo e o afastaria de vez da Presidência, cargo para o qual concorreu duas vezes. Em 1892 já se encontrava em séria birra com os militares, principalmente com Floriano Peixoto, que já era acusado de praticar o militarismo no Brasil, movimento ideológico de apropriação governamental, que impunha uma dependência unilateral da política e da Administração Pública ao sistema e propósitos militares (FAORO)3.

Após a proclamação da República, foram quebradas todas as relações entre os militares e os civilistas, e com isso, as três primeiras décadas do século XX no Brasil foram caracterizadas pela influência bipolarizada em torno dessas duas ideias políticas centrais, o militarismo de um lado, com o brasão da espada e da bainha de Hermes e do outro, a lei e a pena civilista de Rui4.

Tal luta civilista deu-se basicamente contra a aliança firmada entre os militares e os latifundiários dispersos nos rincões de todo o território brasileiro, institucionalizando-se daí, quiçá o maior vício social de nosso país: o patrimonialismo, onde o patriarcalismo burguês agrário passaria a perpetuar a figura do “coroné”, comandando toda a formatação política local e tendo como braço de viabilidade pública a militarização da segurança pública nos estados (força de reserva até hoje). No Brasil do início do século passado, antes mesmo do servidor burocrata, já tínhamos o funcionário patrimonial (HOLANDA)5, de maneira que o patrimonialismo era um negócio de família e militares.

Para aclarar a importância do debate proposto por esse estudo, O Supremo Tribunal Federal, em sua Constituição anotada, possui apenas 24 ocorrências jurisprudenciais relativas aos 10 (dez) incisos do art. 142 da Constituição Federal, e em nenhum desses julgados presenciamos a discussão atinente ao mérito dos incisos II e III, que permitem a movimentação constitucional de mão única através dos cargos temporários e permanentes.

Percebe-se que no meio acadêmico há uma nítida timidez em se tratar aprofundadamente acerca do regime jurídico dos militares, salvo a discussão acerca do acúmulo de cargos permitida antes da publicação da EC n.º 20/98 (PONTE)6.

Neste artigo portanto, abordaremos os aspectos que nos parecem mais caros ao tema, aqueles que sustentam e promovem o patrimonialismo de armas, devidamente constituído por 3 (três) eixos viabilizadores, sendo eles a) o movimento constitucional de mão única; b) o postulado de equivalência funcional; e c) a inexistência de regime jurídico próprio aos cargos em comissão. Desta forma, poderemos conceituar o patrimonialismo de armas como método de poder culturalmente estruturado por agentes públicos do próprio Estado, e entenderemos o porquê da urgência em limitarmos essa prática autofágica surgida desde a proclamação da República.

2. O movimento constitucional de mão única

Nessa toada política até agora demonstrada, qual seja, o surgimento (guerra do Paraguai), ascensão (golpe de Estado) e manutenção de poder (repúdio do movimento civil do comando político), os militares precisariam participar das decisões sobre o destino do país de forma permanente, e para isso normatizou o que chamamos de “movimento constitucional de mão única”, no qual apenas os militares poderiam transitar livremente pelos quadros públicos (civis e militares), afastando tal direito de mobilidade aos civis. Para confirmar tal posicionamento, exporemos abaixo uma tabela comparativa com essa dinâmica constitucional no percorrer do tempo, vejamos:

Através desta tabela demonstrativa, podemos perceber que os militares sempre transitaram unilateralmente entre as esferas civis e militares, seja para a ocupação de cargos permanentes, seja para os ditos cargos temporários (comissão e funções de confiança), entretanto, tal movimentação, em última conta, fragiliza o próprio Estado, pois contamina figuras estatais que deveriam permanecer equidistante da política, da barganha, das negociações, das ideologias, da parcialidade inata ao plexo político partidário.

Nessa dinâmica de mão única, agentes públicos estatais, em contraposição aos agentes públicos governamentais, passam a transitar dentro da estrutura da Administração Pública, acumulando cargos indevidos, confundindo regimes jurídicos inconciliáveis e introduzindo inadvertidamente a hierarquia militar, com todas as suas prerrogativas originárias, e isso, para uma máquina pública que adota a hierarquia com outras formas de sustentação jurídica, como os princípios constitucionais da legalidade e eficiência.

Considerando que cargo permanente é aquele cuja ocupação requer prévia aprovação em concurso público (efetivo) e que cargo temporário deve ser entendido como aquele ocupado através de um cargo em comissão (de livre nomeação e exoneração), devemos destacar que ambos constituem meios de movimentação constitucional de mão única, entretanto, essa indevida mobilidade funcional beneficia apenas uma categoria laboral (militares) em prejuízo de outra (civis).

Para o melhor entendimento sobre o tema, devemos fortalecer as cores das linhas limítrofes que separam dois institutos por demais importantes para a ciência política, quais sejam, Estado e governo, de modo a ratificar a (i)legitimidade da movimentação constitucional de mão única, realizadas unilateralmente pelos militares.

Com base nessa movimentação histórica de mão única, o movimento político das Forças Armadas (militarismo), notadamente praticado pelo exército, manteve pujante entre as gerações dos oficiais, através de um ego institucional retroalimentado, que a libertação dos males governamentais passaria prioritariamente pela chancela militar, tal qual uma benção imperial, um verdadeiro atestado de pureza pública.

Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau, Marx e muitos outros filósofos abraçaram o desafio de conceituar a entidade Estatal, mas talvez, só talvez, a definição sociologicamente mais direta e crua fora dada por Weber, pela qual Estado é uma relação de homens dominando homens, uma relação mantida por meio da violência legítima8. Contudo, independente do conceito adotado, o Estado necessita da instrumentalidade harmônica de seus elementos basilares (povo, território e governo), pelos quais devem ser normativamente limitados dentro dos contornos de sua Constituição vigente.

Nesse exato ponto, podemos tranquilamente afirmar que a Constituição nada mais seria que a própria corporificação do Estado, sua carne, seus músculos, membros e mentalizações, de modo que, numa interpretação cabível e específica, a Constituição viabiliza as prospecções sociais de um povo, sua historicidade cultural, e assim, podemos ainda dizer que a Constituição está para o Estado, como uma imagem refletida está para um indivíduo.

Com isso, a Constituição passa a ser o fiel da balança, ou mesmo a luz do farol que evitará naufrágios, os quais são historicamente proporcionados por fundamentalismo religioso ou por militarismos golpistas (ACKERMAN)9.

Tais variantes de condução estatal, seja pela instituição da força unilateral ou pela substituição da constituição por um livro sagrado, ou quando não, pela reunião infeliz de ambas, verteu-se em experiências esquecíveis, para dizer o mínimo, como no caso emblemático de Jean-Claude Duvalier, o baby Doc, que liderou uma das ditaduras mais sangrentas das Américas (Haiti), e recorde-se, estamos falando do filho que sucedeu seu pai, também ditador, o Papa Doc, ambos acusados de 15 mil desaparecimentos e cerca de 30.000 mortos10. De modo que, fora do constitucionalismo democrático, com regras do jogo bem definidas, não há viabilidade estatal, ou isso, ou o unipartidarismo (China), o militarismo ou o fundamentalismo (Irã), a escolha não é farta (BARROSO)11.

O militarismo, entendido como desvirtuamento das Forças Armadas, ou mesmo como uma permissividade ilegítima de subjetivismos desvirtuados dentro dos quartéis, confunde indevidamente os conceitos e limites do que seja Estado e de seus governos internos, e isso, por um motivo basilar, qual seja, a possibilidade de cultivar a política e veios ideológicos no seio da caserna, aquebrantando os dois pilares fundamentais das Forças Armadas, a hierarquia e a disciplina. Tanto assim, que a CF/88 não permite a filiação partidária e o sindicalismo para a classe militar (art. 142, §3º, IV e V) ou qualquer forma de manifestação coletiva de cunho político e reivindicatório (art. 45 do Estatuto dos Militares).

A Constituição Federal, quando de sua publicação, não previu nenhuma cláusula de barreira para as movimentações de mão única, seja para cargos permanentes ou temporários, no entanto, a Emenda Constitucional n.º 18 de fevereiro de 1998, em suas razões iniciais, afirma que a condição institucional especial dos militares, nacional e permanente, vincula primordialmente as Forças Armadas ao Estado e transcende o plano público, que por sua vez, está mais vinculado e identificado com as atividades e os serviços prestados pela Administração Pública.

A PEC ainda arremata a diferença qualitativa entre servidores civis em relação aos militares ao afirma que a Constituição não qualifica o serviço militar como serviço público.

Ao denominá-lo Serviço Militar, a emenda reforça o argumento de que a atividade militar transcende o serviço público12. Com essa Emenda Constitucional, a movimentação de mão única manteve-se, mesmo que por um caminho mais estreito, com regras limitativas claras acerca da ocupação de cargos civis por militares.

Com essa atual realidade, mesmo que restrita, continuar a permitir a presença de militares na seara governamental, contaminando o agente castrista a ideologias, práticas e entendimentos políticos inexistentes em seu labor de origem, significa misturar indevidamente a arquitetura do Estado brasileiro. Com a manutenção do estamento militar no campo político e governamental, tem-se constatado uma perversão léxica das funções que cabem as corporações de armas, principalmente em Estados com históricos de golpes antidemocráticos e autoritários (BONAVIDES)13.

Dito isso, e retornando a tabela com a historicidade constitucional que avalia a mobilidade dos militares entre o seu locus e os cargos, permanente e temporários da esfera civil, podemos perceber que as Constituições de 1824, 1891 e 1937 não regulavam a cláusula de barreira para os cargos temporários, e esse fato possui uma explicação, senão vejamos, para a Constituição monárquica de 1824, as Forças Armadas sempre estiveram sob a rédea curta da família real, motivo mais que destacado para nutrir mágoas progressivas pelo decorrer do império.

Sobre a Constituição de 1891, por mais estranho que possa parecer, já que essa Carta foi fruto do próprio movimento militar ao proclamar a República, tem uma clara explicação, pois, como dito no início do texto, a sua elaboração deu-se pelas mãos de Rui Barbosa, eminente positivista e amante do sistema de freios e contrapesos republicano, ou seja, ele sabia da necessidade de separação entre as forças de Estado em relação à máquina administrativa e governamental. E ainda temos a Constituição de 1937, a famigerada polaca, suprassumo da ditadura de Vargas, pela qual o Presidente pretendia isolar as forças militares paulistas, que já tinha pressionado Vargas a publicar a democrática CF/34.

Pois bem, para finalizarmos o pensamento acerca da movimentação constitucional de mão única que prestigia exclusivamente os militares, demonstraremos abaixo uma nova tabela, pela qual se poderá vislumbrar o que acarretou essa permissividade indevida, vejamos:

Em continuidade expansiva desta tabela, em abril de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgaria o HC n.º 152.752, pelo se qual discutia a prisão em segundo grau, e consequentemente a execução provisória da pena, o que afetaria diretamente a prisão do ex-presidente Lula. Ocorre que no dia 3 de abril, o General Eduardo Villas Boas, em seu twitter disse: “asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Em decorrência direta e progressiva deste fato, o Brasil vive hoje sob a batuta de uma Presidência que conta com a bagatela de 6.76514 (seis mil, setecentos e sessenta e cinco mil) militares no Governo Federal, sendo mais do que o dobro do Governo Temer, que já “surfava na onda militarista” e que já contava com 2.765 (dois mil, setecentos e sessenta e cinco mil) militares.

Com isso, o Brasil experimenta não apenas uma movimentação constitucional de mão única, mas uma completa e inconstitucional confusão entre as figuras do Estado e do Governo (Administração Pública), situação que proporcionará as nossas próximas digressões, mas agora no âmbito específico do Direito Administrativo.

Mesmo considerando que os atuais textos do art. 142, II e III da CF/88 possam fazer as vezes de cláusulas de barreiras e com isso, diminuir a livre movimentação de militares entre as esferas civis e administrativas, devemos recordar, numa concepção pós-positivista, que o Princípio da Legalidade exige uma densidade normativa mínima, pela qual siga pautada num ordenamento jurídico superior como um todo (ARAGÃO)15, ou seja, essas cláusulas de barreiras mantidas em todas as constituições, acabam por servir de sustentação para a mobilidade militar, de maneira que, sem tais previsões, a movimentação de mão única não poderiam acontecer. O pretenso remédio de controle, por fim, era placebo.

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3. Do postulado da equivalência funcional

Por tudo que já foi demonstrado, podemos afirmar com relativa segurança, que as carreiras de Estado (militares) não se confundem com as carreiras civis de governo (Administração Pública), ou pelo menos, não deveria, considerando a permanência da movimentação constitucional de mão única que privilegia exclusivamente as Forças Armadas, passamos ao segundo eixo viabilizador do patrimonialismo de armas, que reside paradoxalmente na autonomia entre os dois maiores regimes jurídicos do país, e.g., é o que vemos na Lei Federal n.º 8.112/1990 que rege o regime jurídico único dos servidores públicos da Administração direta e indireta da União (e aqui devemos incluir as leis congêneres dos demais entes federados), e a Lei Federal n.º 6.880/1980, que dispõe sobre o estatuto dos militares.

Independente da natureza jurídica da relação estatutária, civil ou militar, é de suma importância que tenhamos em mente a existência de um pressuposto normativo, pelo qual, cada servidor responderá pelo seu respectivo estamento funcional, e para tanto, parafraseamos a expressão one man, one vote, assim, podemos afirmar que para cada agente público, um regime juridico, senão vejamos, se a Lei 8.112/1990 está para o servidor civil federal, a Lei 6.880/1980 está para o militar, restando impossibilitada qualquer forma combinação de normas, sob pena de benefício próprio.

Para esse fenômeno jurídico, o qual chamamos de “postulado da equivalência funcional”, todo agente público, responderá obrigatoriamente e de forma exclusiva ao seu respectivo regime de origem pelos atos e omissões que cometer, de acordo com as respectivas previsões legais (deveres, direitos, obrigações, processos disciplinares, punições, licenças), sob pena de indesejada insegurança jurídica.

Devemos deixar claro que as técnicas de integração normativa por subsidiariedade, pela qual uma norma é buscada para a manutenção da integridade do sistema jurídico, somente ocorreria dentro de seu espectro estamental, ou seja, normas civis para servidores civis e normas militares para servidores militares, conforme, v.g., parecer da AGU16, CGU17 e Ministério da Defesa18.

Permitir possíveis contatos entre os regimes jurídicos próprios, seria vilipendiar o princípio da segurança jurídica, como bem pode ser visto nos novos termos da LINDB, quando impõe as autoridades públicas o dever de atuação para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.

Ademais, a segurança jurídica, numa interpretação doutrinaria contemporânea, deve ser vista e adotada como meio da garantir a ideia de continuidade, estabilidade e harmonia sobre o sistema jurídico, servindo como ponte para momentos de crise institucional (CABRAL)19, de modo que permitir a confusão entre regimes jurídicos poderá tudo, menos trazer estabilidade ao meio do Direito.

Essa equivalência funcional serve como cláusula de barreira publicizada entre tais regimes, seja no sentido axiológico (enaltecendo valores próprios e inconfundíveis), seja deontológico (realçando seus deveres característicos) ou mesmo praxiológico (destacando suas estruturas lógicas de construção de sistema), de maneira que, no caso em estudo, destacar as diferenças dos regimes, seria na verdade proteger e incentivar a aplicação do Princípio da Conformidade constitucional, onde as normas jurídicas devem se ater à sua devida funcionalidade, atribuindo harmonia a todo plexo normativo, constitucional e infraconstitucional, conforme pensamento do então Ministro Carlos Ayres Brito, ao citar Canotilho na ADC n.º 12/0520.

A ausência de uma cláusula de barreira entre os estamentos públicos, levando-se em consideração todo o histórico apresentado nesse estudo, proporciona conflitos desnecessários, porém, inevitáveis, principalmente num governo federal onde as Forças Armadas se tornaram uma eminência parda de cores muito fortes. Vejamos o recente caso da Associação Brasileira de Imprensa que ingressou na qualidade de amicus curiae em algumas ADPF’s (799 e 826), nas quais se discute a possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares, mediante a aplicação do Código Penal Militar.

Com a movimentação militar de mão única, o postulado da equivalência funcional acaba por se tornar, numa clara situação paradoxal, um veneno gravoso e prejudicial, quando deveria ser o remédio da enfermidade, pois a clivagem entre os regimes, civil e militar, por si só, deveria identificar e correlacionar o agente A (militar) ao respectivo regime X (militar) e correlacionar o agente B (civil) ao seu regime Y (civil), contudo, com a movimentação de mão única, o agente A passa a se correlacionar com os regimes X e Y de forma cumulativa e seletiva. Explicamos, cumulativa, pois passa a trafegar indiscriminadamente entre os regimes, e seletivamente, porque qualquer ato cometido pelo agente A, exclui automaticamente a incidência do regime Y.

Muito dessa mescla funcional indevida, foi herdado de regimes autoritários de outrora, dando continuidade a um sistema jurídico opressor, se não esquecível, pelo menos que seja irrepetível, posto que o art. 142 da CF/88 absorveu um regramento com baixo nível de controle externo civil e com a utilização de expressões semanticamente dúbias, como lei e ordem ou instituições nacionais e permanentes (COSTA)21.

A permissividade de trânsito concedida privativamente às Forças Armadas entre os regimes jurídicos, além de ferir frontalmente a equivalência funcional, acaba por gerar uma clara captura dos órgãos da Administração Pública pelos órgãos de Estado, desequilibrando as necessárias medidas dos freios e contrapesos constitucionais.

Sobre esta captura citada, na qualidade de ruptura da equidistância entre os regimes militar e civil, podemos citar a publicação da Lei n.º 13.491/2017 que acabou por alargar a competência da Justiça militar na seara criminal, no sentido de que o militar das Forças Armadas, nas operações de garantia da lei e da ordem (expressão vaga e imprecisa), cometer crime doloso contra a vida de civil será processado e julgado na Justiça Militar Federal, ao passo que o policial militar estadual continuará sobre a égide do Tribunal do júri.

De modo que a quebra do postulado da equivalência funcional já deixou de ser uma preocupação exclusiva dos administrativistas, passando agora ao bojo dos desafios doutrinários dos penalistas, já que a demora processual poderá sofrer com o corporativismo, o que atinge em cheio o nível de evolução democrática que já se atingiu (LOPES JR)22.

Retornando ao âmbito administrativista, o atual presidente da República acabou por editar o Decreto n.º 10.727/21, ampliando ainda mais a participação dos militares da ativa em órgãos civis, permitindo, entre outras situações, a militarização de setores como o Supremo Tribunal Federal e demais tribunais superiores, Ministérios e Advocacia-Geral da União. Acreditamos que tal medida fere diretamente a Constituição Federal, pois, em que pese o Presidente a iniciativa privativa para modificar e fixar o efetivo e o regime jurídico das Forças Armadas (art. 61, §1º, I e II, “f”), pertence ao Congresso Nacional a competência privativa para legislar sobre a Organização do Poder Judiciário (Art. 68, §1º, I).

A bem da verdade, não cabe ao Presidente da República, de forma individual e a revelia da CF/88, abrir confusão entre os cargos de Estado e os cargos da Administração Pública, fortalecendo ainda mais a movimentação de mão única (agora de maneira infralegal), através do desrespeito à equivalência dos regimes jurídicos. O Direito Administrativo pátrio já possui problemas existenciais aos montes para se preocupar, vide a eterna discussão acerca da unicidade do regime jurídico público e qual a medida da autonomia e heteronomia das fontes da disciplina da função pública (ADI n.º 2135-4) e sua consequente contratualização (NETTO)23.

Para especificar ainda mais a movimentação constitucional de mão única, fator que desrespeita a equivalência funcional por beneficiar exclusivamente os militares e provocar a mescla indevida de regimes jurídicos, tomamos o exemplo comparativo entre os institutos do cargo e da função, notadamente no regime militar, senão vejamos o seguinte quadro comparativo:

Percebe-se com os dados legais acima citados, uma pequena, porém importante inversão lógica acerca dos institutos desnudados, senão vejamos, nota-se que os conceitos basilares de cargo e função militar encontram-se em sede infraconstitucional por Lei Ordinária, ao passo que os conceitos gravitacionais sobre ocupação em setores civis são localizados em sede constitucional, numa clara inversão de ordem e importância à carreira militar. Pode até parecer preciosismo de nossa parte, mas como afirma o provérbio alemão: “Der teufel lebt im detail”, em tradução livre: o diabo mora nos detalhes.

Portanto, o postulado da equivalência funcional deveria funcionar como uma cláusula de barreira natural, impedindo o livre trânsito de agentes públicos entre os mais diversos regimes jurídicos, no entanto, normas permissivas e excepcionais (art. 142, II e III) autorizam uma mão de via única em favor dos militares. Numa situação paradoxal, a existência dessas normas permissivas acabam por oficializar tal movimentação funcional, contrariando a lógica do princípio da Legalidade para a Administração, já que, bastava a Constituição não falar nada a respeito do tema, que inexistiria a possibilidade de movimentação funcional.

4. Da inexistência de regime jurídico próprio aos cargos em comissão

O terceiro eixo teórico que viabiliza o patrimonialismo de armas, encontra respaldo na figura do cargo em comissão, instituto previsto basicamente no art. 37, II da CF/88 e que garante ao seu ocupante a assunção em um cargo eminente temporário, passível de exoneração por simples decisão da autoridade nomeante, salvo excepcionais casos concretos, como na ocorrência da teoria dos motivos determinantes.

Grosso modo, o ocupante de cargo em comissão contribui na fonte com o pagamento do imposto de renda e com a respectiva contribuição previdenciária pelo regime geral, contudo, sem a limitação de idade para sua nomeação, conforme entendimento do STF no tema 763 da repercussão geral.

Devemos entender que o ocupante do cargo em comissão é aquele incumbido de função que não seja efetiva e de natureza transitória, com as extensões temporárias de quadros e de pessoal, entre tantos motivos, por necessidade de expansão da atividade administrativa (MIRANDA)24. Claro que tal conceito nascido no Estado Novo já se aperfeiçoou, no entanto, sua ideia espiritual se mantém até hoje, de maneira que o cargo em comissão, exonerável ad nutum, criado por lei e necessário aos postos de confiança lato sensu, continua atendendo as necessidades da máquina pública até hoje.

Não faz parte de nossa pesquisa aprofundar questões outras que não se relacionem diretamente com o patrimonialismo de armas, tais quais as relativas à previdência, horas extras, estabilidades especiais ou mesmo sobre o nepotismo que teima em não abandonar a cultura pública. Tentaremos portanto, destrinchar uma característica primordial para o estudo, que se concentra notadamente na ausência/falha de controle externo quanto às nomeações de não efetivos para os cargos em questão.

Antes de adentrarmos efetivamente na discussão proposta, acredito que devemos estabelecer um campo seguro para o estudo, e para isso, colacionamos as regras básicas sobre o tema, devidamente estipulado pelo STF25 na repercussão geral em recurso extraordinário, são eles: a) a criação de cargos em comissão é exceção à regra de ingresso no serviço público pela via do concurso público; b) a criação dos cargos em comissão não se presta ao desempenho de atividades burocráticas; c) que os cargos em comissão respeitem a proporcionalidade com a necessidade das funções de confiança e com os cargos efetivos; e d) que suas atribuições sejam descritas de forma clara, precisa e objetiva na lei que os estipula.

Com essa base normativa e considerando que o cargo em comissão é instituto jurídico com sede constitucional, garantindo aos servidores efetivos os percentuais mínimos previstos em lei (art. 37, V), nossa ótica de defesa parte do pressuposto que tal reserva de percentual aos cargos em comissão pertence exclusivamente aos cargos efetivos, ou seja, aos aprovados em concurso público, ou melhor, aos civis. Portanto, qualquer discussão sobre a ocupação de tais cargos temporários, deve partir da máxima que a eventual nomeação de militar a cargo em comissão da natureza civil restringe-se ao percentual ofertado à população em geral.

Com essa máxima de pressuposição lógica, devemos previamente realçar a existência desses dois grupos de nomeação para os cargos em comissão, o primeiro, que se restringe aos servidores de carreira e o segundo, de natureza residual que pertence ao campo discricionário da autoridade nomeante, que o permite escolher qualquer do povo. O agente público militar, quando possuidor das condições normativas que possibilitam à nomeação a um cargo em comissão, deve ser nomeado com um posto localizado obrigatoriamente no segundo grupo anteriormente exposto.

Com essas balizas de raciocínio, afirmamos com certa segurança que o patrimonialismo de armas retira da sociedade civil o direito constitucional de participação da vida política do país, descapitalizando a Administração pública ao impedi-la de nomear importantes nomes da sociedade civil oriundos da academia ou de setores privados. Em reportagem vinculada no Correio Brasiliense2627, os militares ocupam 20 cargos de alta gestão, logística e estratégia no Ministério da Saúde, e mesmo sem a obrigatoriedade do uso de farda militar, tornou-se corriqueiro o gesto hierárquico de bater continência no bloco G da Esplanada.

Quando afirmamos que a figura do cargo em comissão viabiliza o patrimonialismo de armas, queremos com isso dizer que o presente instituto carece urgentemente tanto de um efetivo controle interno e externo para o respeito aos percentuais de reserva existentes, quanto reduzir ao máximo a crise das omissões normativas acerca do tema, seja para estipular os índices mínimos do art. 37, V da CF/8828, seja para a realização do concurso público.

Vejamos o exemplo concreto da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas – ARSAL – criada pela Lei Estadual de n.º 6.267/2001, e que desde então ainda não realizou o devido concurso público para a ocupação de seus cargos efetivos, sendo composta completamente por nomeados em cargo em comissão, mediante informações arrecadas no sítio da transparência do Governo do Estado de Alagoas29.

É nesse cenário de omissões legislativas quanto a estipulação de percentuais dos cargos em comissão, que fez o STF afirmar diversas vezes acerca da competência privativa do Chefe do Executivo para tratar da matéria abordada indevidamente pelas câmaras e assembleias legislativas, como foi visto, v.g., na ADI de n.º 6.585/DF30 que decidiu pela inconstitucionalidade da expressão “pelo menos 50%”, por se tratar de matéria afeta a reserva de iniciativa do Poder Executivo.

Através dessas situações de fatos conexos (deficiência de controle, omissão legislativa e ausência de concursos públicos), o instituto do cargo em comissão torna-se terra passível de qualquer espécie de plantio, o que acaba por facilitar, entre outras situações, a colheita de todas as formas de patrimonialismo (filhotismo, autoritarismo, compadrio, nepotismo), destacadamente o patrimonialismo de armas.

O cargo em comissão portanto, considerando-o como componente dos três eixos possibilitadores do patrimonialismo de armas, juntamente à movimentação constitucional de mão única e com o postulado da equivalência funcional e considerando também todas as suas deficiências aqui abordadas, torna-se base receptiva para a manutenção de tal patrimonialismo, tornando-se porto seguro para sua permanência dentro da Administração Pública.

Quando afirmamos que a inexistência de regime jurídico sobre o instituto do cargo em comissão constitui-se como eixo viabilizador do patrimonialismo de armas, queremos dizer que tal instituto é construído casuisticamente por um ciclo dialógico entre jurisprudência e doutrina, permitindo-se assim um meio ambiente funcional fragmentado e disruptivo, campos situacionais favoráveis a empirismos funcionais, de modo que, a última coisa a ser cobrada e vista nessa situação é uma máquina pública preventa e eficiente.

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5. O patrimonialismo de armas como prática endoestruturalista

Sem sobras de dúvidas, um dos temas mais debatidos na seara administrativista reside na figura do patrimonialismo, prática social que implementa a ideia de posse da coisa pública a meros interesses egocêntricos em prejuízo à coletividade, de maneira a confundir o bem-estar público com meros interesses individuais. E na busca pormenorizada sobre o tema, percebe-se uma predominância de entendimento e de abordagem homogênea sobre a matéria, excluindo qualquer forma de aprofundamento classificatório, não desnudando com maior afinco as inúmeras matizes desta captura pública.

O conceito geral de patrimonialismo adotado pela doutrina brasileira, geralmente nasce de fontes extrajurídicas (sociológicas, históricas, literárias e antropológicas), através de autores recorrentemente citados, tais quais, Sérgio Buarque de Holanda31, Raymundo Faoro32 e Caio Prado Júnior33, Ledo Ivo34, Laurentino Gomes35, Jorge Amado36, Graciliano Ramos37 entre outros tantos. No âmbito jurídico portanto, o patrimonialismo é o poder exercido como propriedade pessoal do governante, extensão do seu domínio privado, sem realizar-se a distinção entre a esfera pública e a esfera privada (MODESTO)38.

Corriqueiramente é sabido que o patrimonialismo possui uma dinâmica alienígena, ou seja, estrutura-se de fora para dentro, no sentido de interiorização sobre a máquina pública, entretanto, acerca do patrimonialismo de armas, há uma especificação ainda mais detalhada sobre o fenômeno, pois esse vício social efetua sua dinâmica não de fora para dentro, mas de dentro para fora, ou melhor, inserido no âmago do próprio Estado, numa dinâmica endo estrutural, ou como já dito, num claro ato autofágico.

O patrimonialismo, na condição de fenômeno social, tem sido objeto de estudo por inúmeros acadêmicos, devidamente colocado em outras tantas classificações, como, a título de exemplo, um dos quatro componentes dos vícios da política insustentável, juntamente ao tráfico de influências, o omissivismo e com o mercenarismo. Nesse aspecto científico, o patrimonialismo polui a vontade e torna irrespirável a atmosfera de articulações coletivas, além de abusar do Estado Constitucional e da sociedade, desmatando assim a cena pública e a queima das melhores aspirações (FREITAS)39.

Independente do tipo de patrimonialismo visto, ele funciona com base numa razão inversamente proporcional em função da efetividade dos direitos fundamentais, já que a defesa de uma atuação administrativa que efetive direitos fundamentais assegura a proteção dos cidadãos brasileiros num contexto de forte influência dos assuntos privados e mercadológicos dentro da instância, inibindo as tradicionais práticas do patrimonialismo (BAPTISTA)40.

O patrimonialismo corrói a república, diminuindo sensivelmente e eficiência estatal e a aplicabilidade dos direitos fundamentais, principalmente aqueles que necessitam de considerável aporte financeiro, notadamente os direitos difusos e coletivos.

O patrimonialismo vive às sombras das engrenagens públicas, à revelia dos princípios constitucionais da Administração, destacadamente os relativos a publicidade e transparência, não à toa, novos sistemas públicos de Accontability vem proporcionando luz às velhas práticas de poder, representando tema fundamental para a construção e o aprimoramento do regime democrático, o qual envolve não apenas a responsabilização daqueles que exercem parcela do poder público, mas também transparência, prestação de contas, motivação de atos e decisões, acesso à informação e participação dos cidadãos na vida pública (COUTO)41.

Novas questões atinentes à publicidade e transparência dos atos e processos públicos ganham espaço na seara administrativista, não apenas referente a Accontability, mas também a compliance, ambos encarados como formas e princípios da nova governança pública, (planejamento, estratégia e controle, confiabilidade), devidamente destacado no Decreto federal de n.º 9.203/2017 que abrange toda a administração Pública Federal. Por esse bastião de melhor administração, podemos considerar que o patrimonialismo passa a ser mais controlável e combatido.

Notadamente, todas essas críticas e avaliações são construídas sobre a ideia basilar do patrimonialismo clássico e exoestrutural, então, realizado por forças sociais externas à Administração, tal qual a realizada pelos grandes oligopólios por intermédio da captação financeira. Desse modo, levando-se em conta que o patrimonialismo de armas atua num campo eminentemente endoestrutural, poderíamos afirmar, em grosseira analogia, que o patrimonialismo tradicional seria um vírus, ao passo que o patrimonialismo de armas aproximar-se-ia de uma doença autoimune.

Interessante imaginar que Getúlio Vargas tentou controlar o patrimonialismo da república velha, mediante a implementação do sistema burocrático de Weber, com a implementação de alguns institutos sociológicos, tais quais os de cargo, função, hierarquia, promoção, carreira, entre outros, no entanto, o que se percebeu mais tarde foi a absorção de boa parte da estrutura burocrática a sentimentos pessoais, que acabariam por prejudicar sensivelmente as normas de instrução profissional e as normas oficiais (BLAU)42.

Mesmo, relativamente derrotado, podemos perceber, quanto à Vargas, uma tentativa única em nossa República em tentar minorar os efeitos do patrimonialismo, atingindo todas as suas formas, senão vejamos, a) aplicou o sistema burocrático weberiano para o patrimonialismo exoestrutural e b) e extinguiu a movimentação de mão única para cargos temporários na Constituição polaca de 1937. Portanto, em caso singular no nosso país, houve uma tentativa direta de minorar as duas formas de patrimonialismo (civil e militar), mesmo que viesse a durar pouco tempo.

O patrimonialismo, em suas duas acepções (endoestrutural e exoestrutural), repercute sobremaneira nas próprias relações sociais e na cultura popular, influenciando novos e perspicazes posicionamentos acadêmicos, como podemos ver no denominado patrimonialismo das relações horizontais, a ocorrer nas relações mais triviais da vida social, por intermédio de uma ausência de limites sobre a utilização do patrimônio social em meio a uma associação indevida entre o patrimônio e o poder (GRYNBERG)43. Tal ideia do professor nos leva ao místico símbolo de Ouroboros, condenados a viver eternamente mordendo a própria cauda, por não saber onde essa relação surgiu ou como terminará.

O patrimonialismo endoestrutural praticado pelas Forças Armadas confunde a arquitetura estatal, mescla indevidamente regimes jurídicos diversos, descapitaliza o Estado quando o impossibilita de captar bons profissionais no mercado privado e dificulta o controle interno e externo realizado pelos órgãos competentes. Se o patrimonialismo tradicional requer o embate de grupos de poder em busca de hegemonia, ou quando muito, o loteamento da máquina pública por tais feudos mandonistas, o patrimonialismo de armas traz consigo toda uma estrutura hegemônica predefinida pela hierarquia e ordem militar, pela qual não admite sequer uma luta de espaço contra outros feudos sociais.

Por tudo que já fora demonstrado e defendido nesse artigo, notadamente quando consideramos a somatória de todos os eixos viabilizadores do patrimonialismo de armas, não poderíamos deixar de abordar um instituto já experimentado pelo Direito Administrativo, como forma de controle desse patrimonialismo, estamos falando da quarentena. Tal instituto tem dado certa segurança jurídica as relações administrativistas, notadamente quando falamos de controle dos atos públicos, e para tanto, podemos citar o período de 6 (seis) meses elencados na Lei Federal de n.º 12.813/2013, que dispõe sobre o conflito de interesses no Poder Executivo Federal.

A quarentena serviria como mais uma cláusula de segurança, para evitar eventuais prejuízos a máquina Pública, dificultando a ocorrência de privilégios nascidos da confusão das pessoas físicas e jurídicas, proibindo que aquelas usufruam da coisa pública, trazendo maior transparência e publicidade, o que por si só, auxilia o controle externo. A quarentena também pode ser visto na Lei Federal n.º 9.986/200, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das agências reguladoras, fato este que denota a preocupação com um veio sensível da Administração Pública.

A militarização do plano civil, antes de tudo, se resume ao silêncio dos opositores, dissipando qualquer espaço de diálogo, de contradição, de política. Vivemos uma transição: de Atenas à Esparta.

6. Conclusão

Sabemos que o patrimonialismo encontra-se presente na História de nosso país desde sua colonização, entregue e praticado nos entrepostos comerciais extrativistas, com base na política clientelista dos reinados lusitanos, assentado no império brasileiro e assustadoramente desenvolvido durante a república. No entanto, nesse artigo, tentamos demonstrar que o patrimonialismo pode ser melhor abordado quando o expomos a uma classificação mais detalhada, subdividindo-o com base na sua origem e mesmo na sua dinâmica dentro sistema jurídico.

Ademais, também devemos realçar nossa dificuldade momentânea quanto à arrecadações de fontes bibliográficas junto às bibliotecas, notadamente devido a pandemia que ora enfrentamos, o que de certa monta prejudicou a amplitude doutrinária desse artigo, mas, nada que não possa ser posteriormente aprimorado.

Neste exato momento histórico, o Congresso Nacional discute uma nova reforma administrativa, que entre tantos temas, tenta acabar com a estabilidade do servidor público, aumentando o poder de nomeação ad nutum da autoridade pública, o que, além de inverter a preponderância da Impessoalidade, tornando-a exceção, expõe a Administração Pública a todo tipo de pessoalidade, principalmente as novas velhas tendências de militarização do serviço público. Por tudo que foi abordado nesse estudo podemos concentrar nossos posicionamentos conclusivos nas seguintes assertivas, são elas:

1) O patrimonialismo de armas pode ser conceituado como a politização institucional das Forças Armadas, mediante a comunicação funcional dos agentes públicos entre os órgãos de Estado e órgãos da Administração Pública, ao permitir uma mobilidade unidirecional indevida entre cargos militares e cargos civis, em prejuízo à participação da população civil na vida pública;

2) O patrimonialismo civil tende a ser praticado de forma exoestrutural (de fora para dentro da Administração Pública), ao passo que o patrimonialismo militar tende a ser praticado de forma endoestrutural (de dentro para fora da Administração);

3) O patrimonialismo de armas possui três eixos viabilizadores, quais sejam, a) a movimentação constitucional de mão única descrita nos incisos II e III do artigo 142 da Constituição Federal; b) o desrespeito ao postulado da equivalência funcional; e c) a ausência de um regime jurídico dos cargos em comissão.

4) Para o devido controle do patrimonialismo de armas, necessário se faz a proibição completa da movimentação constitucional para cargos provisórios, e a permissão condicional para os cargos permanentes, com a devida aprovação em concurso público, baixa da patente, proibição de uso da patente militar para assunção de privilégios não dados a outros servidores em igualdade de condições e o cumprimento de quarentena para tomar posse.

Por tudo que foi apresentado e defendido, chegamos à conclusão de que o patrimonialismo de armas pode ser um desafio de menor complexidade em comparação ao patrimonialismo clássico exoestrutural, necessitando notadamente de uma reorganização do sistema constitucional, ao proibir a movimentação de mão única dos agentes públicos militares sobre os cargos temporários de natureza civil, e a permissão para ocupar os cargos permanentes e eletivos com a devida constitutividade da situação de reserva sem as prerrogativas da patente e o endurecimento das regras atinentes à quarentena.

Ainda em tempo, cabe destacar que o Brasil vive o auge do patrimonialismo de armas, quiçá mais contundente que o vivido em plena República das Armas, no início do século XX, por isso, e pelo aumento de denúncias de ilícitos praticados por militares na Administração Pública, o Congresso Nacional discuti a PEC de n.º 21/2021, que defende em seu texto a possibilidade do militar ocupar cargo de natureza permanente, com a respectiva reserva, excluindo do seu texto qualquer remissão aos cargos provisórios, posição por nós adotada.

No mais, podemos aferir que o espírito de grupo denunciado por Merton como uma de suas disfuncionalidades burocráticas não seria capazes de prestar equivalência de força frente ao corporativismo militar, fundamentalmente alicerçado numa disciplina hierarquizada quase plena. Dito isto e por fim, para lembrarmos do perigo latente e progressivo que vive o Estado brasileiro, recordamos Aristides Lobo, quando ele denuncia o golpe de 1889: “por ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”. A história pode não se repetir em círculos, mas os erros cometidos não podem ser ignorados.

Notas

1 Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Especialista em Jurisdição Constitucional pela Universidade de Piza-IT, Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito de Alagoas – FDA/UFAL, autor do livro “Regime Jurídico Único dos Servidores do Estado de Alagoas comentado, publicado pela EDUFAL”.

2 Disponível e visto em 16/07/2021 em: https://outraspalavras.net/blog/lembrai-lembrai-o-cincode-novembro/

3 FAORO, Raymundo. (1958), Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, Editora Globo, pág. 653.

4 Visto em 17/06/2021 em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/11449/103206/1/ueocka_lg_dr_assis.pdf.

5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995. pág. 144.

6 PONTE, Luiz Eduardo de Paula. Breve ensaio acerca da posse em cargo, função ou emprego público civil efetivo por militar — Short essay about tenure in office, function or civilian public employment for effective military. Revista Controle – RTCE, ano 16, n. 12

7 A Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969, que revogou a CF/67, manteve o conteúdo sobre a matéria.

8 WEBER, Max. 1999. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UNB. Pág. 526.

9 Acessado em 19/06/2021 em: Ackerman, Bruce. “The Rise of World Constitutionalism.” Virginia Law Review, vol. 83, no. 4, 1997, pp. 771–797. JSTOR, www.jstor.org/stable/1073748.

10 Acessado em 19/06/2021 em: http://www.educacional.com.br/reportagens/haiti/parte-01.asp.

11 Acessado em 19/06/2021 em: http://www.constitutionnet.org/sites/default/files/Barroso, %20Luis%20R.%20%20Doze%20Anos%20da%20Constituticao%20Brasileira%20de %201988.pdf

12 Acessado em 19/06/2021 em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD10AGO1996.pdf#page=15

13 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004. pág. 356.

14 Acesso em 20/06/2021 em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonarotem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml

15 ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Debates em Direito Público – RDDP, ano 13, n. 13.

16 Acessado em 23/06/2021: https://www.justica.gov.br/coger/arquivos/manual_pad_mai-2019.pdf

17 Acessado em 23/06/21: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/64869/6/Manual_PAD_2021_1.pdf

18 Acessado em 23/06/2021: https://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-n-29/gm-md-de-17-desetembro-de-2019-*-217530494.

19 CABRAL, antônio do Passo. Segurança Jurídica e regras de transição nos processos judicial e administrativo: introdução ao art. 23 da LINDB – Salvado: Juspodium, 2020. pág. 43.

20 Acesso em 23/06/2021 em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp? docTP=AC&docID=606840.

21 COSTA, Leonardo Emrich Sá R. da. Entre o real e o simbólico: breve genealogia do artigo 142 da Constituição Federal. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 18, n. 71.

22 Acessado em 05/07/2021 em: https://www.conjur.com.br/2017-out-20/limite-penal-lei134912017-fez-retirar-militares-tribunal-juri.

23 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. A volta do regime jurídico único: algumas discussões inadiáveis sobre a função pública brasileira. Revista de Direito Administrativo e Constitucional – A&C, ano 24, n. 37

24 MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, n.º 8, v. 2, 1934. p. 464.

25 RE 1041210 RG, Ministro Dias Toffoli, julgado em 27/09/2018, DJE 107, com publicação em 22/05/2019.

26 Acessado em 08/07/2021 em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/05/23/interna-brasil,857604/quantidade-de-militares-no-ministerio-da-saude-aumenta-veja-a-lista.shtml

27 Em pesquisa mais recente, o jornal citado publicou outra pesquisa acerca do número de militares no Ministério da Saúde, chagando no mês de junho de 2020, a 25 militares em cargos da alta Administração.

28 RMS n.º 24.287, rel. min. Maurício Corrêa, j. 26-11-2002, 2ª T, DJ de 1º-8-2003.

29 Acessado em 08/07/2021 em: http://transparencia.al.gov.br/pessoal/servidores-ativos.

30 ADI n.º 6.585/DF, Relatora Ministra Cármen Lúcia, com publicação em 27/05/2021.

31 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

32 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10. ed. São Paulo: Globo, 2000.

33 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

34 IVO, Lêdo. Ninho de cobras. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2015.

35 1808: História do Brasil. Laurentino Gomes – 1956. – Planeta do Brasil, 2007. História do Brasil.

36 AMADO, Jorge. Terras do sem fim. 28ª Ed. Record: Rio de Janeiro. 1997.

37 RAMOS, Graciliano. Relatório ao Governador do Estado de Alagoas (1929). São Paulo: Record, 2007.

38 MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-administrativos. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 18, n. 41, abr./ jun. 2013.

39 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. 4.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2019. pág. 203.

40 BAPTISTA, Isabelle de. Efetivação dos direitos fundamentais pela Administração Pública: uma análise da proposta de lei de alteração do vigente Decreto-Lei nº 200/67. Fórum Administrativo – FA, ano 20, n. 109.

41 COUTO, Daniel Uchôa Costa. Premissas e desafios para o estabelecimento da accountability no contexto social brasileiro. Interesse Público – IP, ano 22, n. 80.

42 BLAU, Peter. O estudo comparativo das organizações. IN: Sociologia e burocracia, Rio de Janeiro. Ed. Zahar, 1966. pág. 129

43 GRYNBERG, Ciro. Um Rawls à brasileira: o patrimonialismo nas relações horizontais. In: BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos (Coord.). A República Que Ainda Não Foi: Trinta Anos da Constituição de 1988 na Visão da Escola de Direito Constitucional da Uerj. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

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