Karaí Popyguá e o manifesto contra a reintegração de posse da aldeia Itakupe

foto: Felipe Larozza/VICE

Contra a reintegração de posse da aldeia guarani Itakupé no Jaraguá, abril de 2015, São Paulo, SP

Por Davi Martim (Karaí Popyguá)

Dia 22 de abril de 2015, os índios da aldeia do Jaraguá foram intimados a comparecer no Batalhão da Polícia Militar em Pirituba, para tratar da reintegração de posse de uma das aldeias do Jaraguá, movida pelo ex-deputado Tito Costa (PMDB). Após a a reunião, os índios reuniram-se na Casa de Oração da aldeia para uma coletiva de imprensa. Leia a manifestação de Davi Martim (Karaí Popyguá), professor guarani na escola localizada na aldeia Tekoá Pyaú, no Jaraguá e liderança indígena. Ao final, linque para o vídeo.

Boa tarde, meu nome é Davi, sou da Aldeia do Jaraguá, terra indígena Jaraguá. Nós estamos no meio de uma luta pelo reconhecimento e garantia de um território para que a gente continue existindo, para que nossa cultura, para que nosso povo continue existindo, para que a gente não seja uma história do passado, mas que seja um futuro construído junto com a sociedade brasileira, seja o presente, um presente de respeito à cultura dos povos indígenas que ainda resistem há 514 anos, 515 anos.

Se tem uma situação que não é nem um pouco correta é dizer que os povos indígenas são invasores desse território. E por parte desse senhor, Antonio Tito Costa, a gente tem ouvido isso, ouvido declarações racistas que discriminam nossa comunidade, nossas crianças, xingando nossas crianças de sujas; falando que nossas mulheres são gordas, dançam o dia inteiro, não são índias; falando que a gente tem um acampamento aqui; falando que a gente não produz nada na terra. E esse senhor já foi deputado federal e representou essa nação um dia. E essa é a visão dos que representam a sociedade brasileira, uma visão etnocida, uma visão que não respeita a forma tradicional dos povos indígenas se organizar.

A terra indígena Jaraguá é a menor terra indígena do país. E é uma situação que não é difícil de resolver, é falta de interesse político, é dizer que o índio é pobre, que está dentro de uma classe social que não contribui para o desenvolvimento desse país. Essa visão que o governo tem da gente. Não consegue entender e reconhecer o direito originário de ser quem nós somos que está na Constituição Federal Brasileira, que garante a proteção e o desenvolvimento da comunidade de acordo com as suas práticas, de língua, de costume, de plantio, de forma própria de organização; isso não é respeitado. A Carta Magna desse país, que a gente lutou tanto, que as lideranças no passado — meus tios, meus avós — lutaram tanto para conseguir aprovar a Constituição.

Hoje o governo simplesmente pisa no Artigo 231 e diz que quem manda são eles e que nós temos que viver sob a injustiça e a omissão. Porque é a omissão que faz aumentar o conflito. É a omissão de não resolver a questão da demarcação das terras indígenas no país que foi prevista com a Constituição de 88 para que se resolvesse em 5 anos e já se arrastam 25 anos. Não são 25 anos! São muito mais do que simplesmente tempo, são vidas! São povos que vão sendo exterminados, que vão sendo extintos por essa política de desenvolvimento que não respeita os povos originários dessa terra.

É essa política que quer transformar o povo indígena em museu, em passado. É isso que a educação escolar ensina: que os povos indígenas ficaram lá em 1500; que Pedro Alvares Cabral veio para cá, dominou, massacrou e que hoje não existe mais povo indígena no sudeste. Nós estamos aqui na metrópole, não porque nós criamos a aldeia perto da cidade. É muito difícil a gente ter que responder sempre à mesma situação. E ouvir de um senhor que diz que tem um documento, um título, que desde a Coroa de Portugal aqui no Brasil, eles tiravam os povos indígenas e davam os títulos. Deram título de tudo quanto é terra. Hoje em terra indígena tem cinco proprietários da mesma terra. Cinco pessoas que têm documento do mesmo lugar. E por outro lado, o povo indígena — os pajés, os mais antigos — dizendo que aquilo é território tradicional, que aquilo depende o futuro das crianças, que aquilo depende o futuro da comunidade, da cultura. E é exatamente essa área do Itakupé, o pouco de mata que ainda existe em São Paulo, que querem lá fazer terraplanagem, que tem uma construtora que já tem um contrato lá, que arrendou aquelas terras para construir um condomínio.

O presidente do Tribunal Regional falou para mim, ele falou assim: “morre índio, morre polícia, mas vocês vão sair de lá”. Ele não está preocupado com a vida das pessoas. É esse capitalismo, é esse modelo de desenvolvimento desse país que não se preocupa nem com um, nem com outro; só se preocupa com dinheiro. Só se preocupa em dominar, em acabar com tudo aquilo que é contrário a esse modelo de desenvolvimento desse país.

A gente foi expulso muitas vezes do nosso território e hoje a gente não vai aceitar! A gente vai resistir e vai permanecer! A gente não vai aceitar sair de Itakupé! Guarani vai resistir, vai continuar! Porque a nossa força é a nossa terra e a nossa união. Não queremos fazer guerra com a Polícia Militar! Não queremos fazer guerra com Tito Costa! Não queremos fazer guerra com ninguém! A gente só quer um dia ter a tranquilidade de receber vocês e falar: essa terra aqui é para nós e para vocês verem como que é a nossa cultura, como que a gente vive na terra, como que é a simplicidade das crianças não ter terra, muitas vezes não tem comida para comer porque não tem espaço para plantar e está sorrindo o dia inteiro. E o filho de jurua* se não tem o tênis de marca está chorando para o pai e para a mãe. Que direito é esse que as nossas crianças não tem? Uma pessoa todo ano quer trocar, quer ter um carro novo e se acha um coitado porque não consegue ter um carro novo todo ano.

E a gente vive aqui na aldeia. Andam descalças as crianças. O Tito Costa falou que nossas crianças são sujas. A sujeira para ele é a terra que ele diz que é dono, que é suja! Ele chama a terra de suja. A terra não é suja para a gente. A gente pisa descalço na terra, não tem problema, suja o pé. Vê se tem piso aqui nessa terra. Chama ele para pisar aqui nessa terra. Mostra nossas crianças para ele e fala o que é que é sujeira ali. A sujeira está na mente do branco que não respeita e não tem um pingo de interesse na preservação da cultura dos povos originários dessa terra.

A gente não vai desistir. Não vamos desistir. Então, assim como o juiz do TRF disse, do Tribunal Regional Federal, o presidente, ele falou “morre índio, morre branco”. A gente sabe que não morre branco. Porque já morreu índio! A Polícia dizendo que estava invadindo uma terra para fazer a desapropriação, reintegração, matou índio com quarenta tiros de borracha, a Polícia Federal. Se não a Polícia Federal vai a Marinha, vai o Exército, vai a Aeronáutica. Eles sempre têm um tipo de organização militar para desapropriar e acabar com o nosso direito. A gente não vai lutar contra a polícia mas a gente também não vai sair do nosso território. A gente não quer tirar a vida de ninguém. A gente quer que a a nossa vida seja preservada e a de todos.

A gente é colocado dentro de um sistema de classe social, que a gente é pobre. A gente não é pobre! Não é porque a gente está descalço, não é porque a gente anda de bermuda suja de terra que a gente é pobre. Não é porque a gente não tem dinheiro para comprar a carne mais cara do mercado que a gente é pobre. A gente não é pobre! A gente é povo originário! A gente é origem desse país! A gente é o início da história, da humanidade nesse continente! E hoje a gente é chamado de pobre, pobre-coitado. “Ah, os pobres índios, eles são pobres. Eles são miseráveis, dependem do governo”. Se dependesse do governo, o governo tinha reconhecido a demarcação das terras indígenas aqui no Jaraguá. A gente não depende do governo.

Muito pelo contrário, esse governo um dia já foi uma invasão. Essa invasão um dia dependeu de alimento porque eles não sabiam viver nessa mata. E como eles aprenderam a cultivar o milho? Hoje grandes indústrias, como a Monsanto, se diz dona do milho, da semente do milho. Como que eles aprenderam a cultivar isso? Foi com os povos originários dessa terra. Então a gente não é pobre, a gente é injustiçado. A gente é covardemente todo dia bombardeado pela mídia, pela grande mídia. Então era essa a mensagem que eu queria passar.

Eles marcaram uma reunião para o dia 5, às 15h, a gente vai estar lá. E a comunidade está pronta, a gente está aqui com a liderança de outras aldeias, todas as lideranças — a gente conversando com as aldeias guaranis de São Paulo, de outros Estados também — estão apoiando a gente. A gente não está sozinho. E não vamos deixar nossas terras. Porque se a gente deixar nossa terra mais uma vez só se for através da morte, porque foi assim que eles fizeram no passado. E é assim que vocês podem presenciar porque é isso que eles querem fazer, tirar a gente à força, proibir a gente de ser quem nós somos.

Areté!

 

* Os Guarani referem-se aos brancos como jurua.

leia também manifestação do programa Universidade Livre e Colaborativa aqui

 

Redação

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