A poesia obscena de Laurindo Rabelo

do blog do IMS – 31/07/2012

o poeta Laurindo Rabelo

PRATA DA CASA – POESIA OBSCENA NO ACERVO TINHORÃO

Pouquíssimas pessoas já ouviram falar em Laurindo Rabelo, mas é provável que muitas conheçam os versos: “No cume da minha serra/ Eu plantei uma roseira,/ Quanto mais as rosas brotam/ Tanto mais o cume cheira.” Essa singela quadrinha abre o famoso poema escatológico “As rosas do cume”, que fez sucesso nos saraus literários do século XIX e foi atribuído ao poeta fluminense Laurindo José da Silva Rabelo (1826-1864). Falcão, rei da música brega contemporânea, gravou uma versão do poema no álbum Do penico à bomba atômica (2000), com o título “No cume”, cuja autoria é atribuída erroneamente ao próprio intérprete e a Plautus Cunha.

Personalidade polêmica, Laurindo se celebrizou com sua poesia de tendência ultrarromântica e com os desafetos que colecionou na sociedade da época. Os cronistas de sua vida dizem que foi expulso do Seminário São José e da Escola Militar, na Praia Vermelha; que foi detido na Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, por insubordinação, quando integrava as forças armadas como segundo cirurgião do corpo de saúde do exército; e que zombava de poderosos como Manuel Felizardo, ministro da Guerra, e como o Dr. Rego Macedo, chefe do Hospital Militar do Morro do Castelo. À parte as lendas biográficas, na maioria das vezes exageros de críticos impressionistas, Laurindo escreveu poemas com dicções variadas, desde o soneto metricamente perfeito – que levou o parnasiano Alberto de Oliveira a incluí-lo entre os autores d’Os cem melhores sonetos brasileiros – à trova escabrosa, de temática e linguagem obscenas.

“As rosas do cume” e outros poemas obscenos de Laurindo foram publicados em Poesias livres(1882), opúsculo de encadernação e papel baratos que se tornou raridade. Atualmente, conheço apenas quatro acervos que possuem exemplares desse livro: a Biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras (UFRJ); as coleções particulares de Antonio Carlos Secchin – poeta, professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) – e de Israel Souza Lima, biógrafo dos patronos da ABL; e o acervo José Ramos Tinhorão, do Instituto Moreira Salles.

Na verdade, não fossem os (des)caminhos que os livros também trilham, um quinto acervo teriaPoesias livres. Em 1931, Constâncio Alves doou um exemplar do livro à biblioteca acadêmica Lúcio de Mendonça (ABL). Apesar do gesto do fundador da cadeira 26, cujo patrono é Laurindo, a obra se extraviou das estantes e, hoje em dia, o que se encontra disponível para consulta é um fac-símile feito a partir do exemplar de Israel Souza Lima. Nos arquivos da ABL, não há informações que auxiliem a desvendar o misterioso sumiço. Sabe-se apenas que já em 1958 tinha desaparecido:

“Apesar da solenidade da entrega do volume que representa o ato da aceitação pela Academia das poesias cômicas e fesceninas de Laurindo Rabelo, hoje em dia não há a menor notícia da existência daquela preciosidade que Constâncio Alves desejou preservar do esquecimento e da clandestinidade”. (ASSUNÇÃO: 1958, 10)

Mas, não fosse a raridade bibliográfica, que importância teria esse livrinho de um poeta esquecido pela maioria dos estudiosos de literatura brasileira? Apesar de sérios problemas tipográficos e textuais, o que não convém aqui discutir, Poesias livres é um dos poucos testemunhos da poesia obscena do nosso oitocentos, ao lado das edições de Elixir do pajé e da Origem do mênstruo, do também romântico Bernardo Guimarães. E o que se vê nesses poemas obscenos de Laurindo, para além do gracejo com palavras de baixo calão e situações grotescas, é uma crítica em que o enfrentamento entre “eu poético” e sociedade assume a forma de zombaria e se põe em relevo o ridículo de convenções sociais e literárias.

Há, assim, a crítica ao falso moralismo da jovem que não permite o rapaz concluir a relação sexual, embora aceite as carícias preliminares e demonstre, inclusive, certa habilidade; a crítica ao convencionalismo literário, em que o “eu poético”, supervalorizado pelo Romantismo, debocha de si próprio, de sua fragilidade e impotência; e, enfim, a crítica política, na sátira “Ao rego”, talvez um dos poemas mais divertidos e, ao mesmo tempo, contundentes do livro.

Ainda sobre “As rosas do cume”, além de sua publicação em Poesias livres, há um histórico registro fonográfico do poema. Trata-se da gravação feita no início do século XX pelo ator e cançonetista português Franco d’Almeida, que a equipe da Coordenadoria de Música do IMS digitalizou a partir de um disco 76 rpm, pertencente também ao acervo José Ramos Tinhorão, disponível para audição aqui no blog do IMS. – para ouvir, clique aqui

* Fabio Frohwein de Salles Moniz é pesquisador na área de Literatura do Instituto Moreira Salles.


    As Rosas do Cume

No cume daquela serra
Eu plantei uma roseira.
Quanto mais as rosas brotam,
Tanto mais o cume cheira.
À tarde, quando o sol posto,
E o cume o vento adeja,
Vem travessa borboleta
E as rosas do cume beija.
No tempo das invernadas,
Que as plantas do cume lavam,
Quanto mais molhadas eram,
Tanto mais no cume davam.
Mas se as aguas vêm correntes,
E o sujo do cume limpam,
Os botões do cume abrem,
As rosas do cume brincam.
Tenho, pois, certeza agora
Que no tempo de tal rega,
Arbusto por mais mimoso
Plantado no cume, pega.
Vem porém o sol brilhante
E seca logo a catadupa;
O mesmo sol a terra abrasa
E as águas do cume chupa.

A rosa do cume fica
no mais alto da montanha
A rosa do cume pica
A rosa do cume arranha
As rosas do cume espreitam
entre as folhagens d’além
trazidos na fresca brisa
os cheiros do cume vêm.
No cume duma montanha
tem um olho d’água à beira.
É uma água tão cheirosa
que a multidão ansiosa
o olho do cume cheira.”

 Vídeo: No Cume por Falcão – álbum “Do Penico à Bomba Atômica”

Luis Nassif

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