O argumento do duplo grau de jurisdição no voto de Celso de Mello

Por Monier
 
Comentário ao post “A falta de lógica no discurso contra os embargos
 
Nesse ponto em que fala sobre o duplo grau de jurisdição o voto do Celso de Mello não foi bom. 
 
Até a parte em que firmou a tradição jurídica brasileira, e depois conseguiu explicar como encaixar a pirâmide do Kelsen (Constituição > Lei > Regulamento), pirâmide esta que é praticamente unânime no pensamento jurídico brasileiro de ponta, e que, portanto, une muitas pessoas qualificadas em um único sistema lógico-formal, o voto estava indo muito bem.
 
A parte mais brilhante veio ao assentar que a norma que define os embargos infringentes tem força de Lei em sentido material, exatamente porque a Constituição anterior havia delegado a competência ao tribunal para criar uma norma dessa natureza no seu regimento interno. Se a norma fosse criada um dia depois da vigência da CF/88, o argumento já não seria válido. 
 
Ao final, interessava saber qual a norma que dá validade para a previsão dos embargos infringentes, e isso foi bem explicado, com boa técnica.
 
Mas em relação ao duplo grau de jurisdição, um argumento que me parece acessório, servindo de mero reforço ao argumento anterior, a explicação não tem muito fôlego. 

 
O bê-a-bá das faculdades ensina que:
 
– a jurisdição é una. 
 
– que existem juízes de primeiro grau e de segundo grau (ao que me parece uma organização em diversos para o exercício da jurisdição una).
 
– que esses juízes são a primeira instância, os desembargadores dos tribunais a segunda instância. E os ministros do STF e STF a terceira instância.
 
Ou, ainda, aqueles que entendem que a cada recurso vem uma instância, e por isso o STF chegaria a ser uma quinta ou sexta instância (com o que não concordo).
 
Mas o que é exatamente o duplo “grau de jurisdição”?
 
Entendo que jurisdição é una e que esta é o poder do estado dizer o direito, ou seja, deduzir da norma geral qual vai ser o comando exercido no caso concreto, o que é exercido majoritariamente pelos juízes e tribunais.
 
E quando se fala em graus, parece óbvio que se está falando em acesso a órgãos diversos. Ainda que fosse de uma turma em número reduzido de julgadores para o pleno do mesmo tribunal, quando todos se reúnem. O exemplo mais óbvio é o juiz de primeiro grau, que tem sua sentença reformada pelos desembargadores do mesmo tribunal, atuando no segundo grau.
 
Mas o voto deixa subentendido que o acesso a outro grau de jurisdição ocorreria pela mera existência de recurso, pouco importando se ao mesmo órgão. Isto parece enfraquecer a idéia do Pacto de San José, que aparentemente é evitar um único juiz com poderes ilimitados, sem possibilidade de revisão. Por essa idéia os ineficazes embargos declaratórios resolveriam o grande problema de arbitrariedade que o Pacto quer evitar.
 
Não ficou bem explicado no voto do Celso de Mello o que ele entende por jurisdição, e o que seria grau (se órgão, ou mera reanálise da questão posta). O Dinamarco está vivo para explicar o conceito minuciosamente, o Arruda Alvim está aí para rebater, o Marcato também para acrescentar. Perdeu-se a oportunidade de um grande debate, apesar de o início do voto ter mencionado grandes juristas. Em um caso dessa importância o tribunal talvez devesse buscar outra organização.
 
O problema real, que vem sendo apontado desde o começo, é o STF agindo como primeira instância, sem que isso seja o cotidiano do tribunal. Criou-se um nó para o acatamento ao Pacto de San José, também para a instrução criminal, e também para o desafogamento do STF, que acabou de ganhar o instituto da repercussão geral e da súmula vinculante para isso. Felizmente o debate ganhou repercussão nacional. Infelizmente, debate pouco profundo, reduzido a juízos morais e políticos. Tragicamente, a solução está nas mãos da composição atual do Congresso Nacional, que precisaria designar o julgamento para uma das turmas do STF, ou melhor, para outro tribunal ou instância inferior.
 
Mas se o legislador no mundo é conhecido por ser pouco técnico, o legislador brasileiro é conhecido ainda por ser desinteressado e volúvel, alterando a lei como manchetes de jornal, antes que qualquer consenso possa ser firmado na jurisprudência. A certeza é que qualquer emenda vai ser pior que o soneto. E a multidão não tem conhecimento técnico para produzir um novo 13 de junho.
Redação

5 Comentários

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  1. O Pacto de San José

    Seria interessante voltarmos ao Pacto de San José (integra aqui).

    Não encontrei no pacto menção as palavras, “grau”, “jurisdição” (para o caso que discutimos), e “instância”. 

    Penso que são estes os que falam sobre os “recursos”:

    ……….Artigo 8º – Garantias judiciais

    …….h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

     

    ……….Artigo 25 – Proteção judicial

    1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

    2. Os Estados-partes comprometem-se:

    a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

    b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

     

    c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

  2. Caro Monier…Nobres

    Caro Monier…Nobres lutadores

    Já havia ressaltado em outro post, mas pela importância do assunto, que DEVE ANULAR o processo para grande parte dos réus (ou para todos), vou sintetizar: não caiam na armadilha do que parece ser uma interpretação implícita de Celso de Melo de que com os embargos teria sido respeitado O DUPLO GRAU DE JURIDIÇÃO. Um dos maiores especialistas no assunto deixou isso bem claro que NÃO FOI RESPEITADO O DUPLO GRAU – leiam e repassem: http://atualidadesdodireito.com.br/valeriomazzuoli/2013/07/26/possibilidade-de-condenacao-do-brasil-perante-a-corte-interamericana-de-dh/ . Em síntese:

    1) O duplo grau prevê recurso para UM OUTRO TRIBUNAL. O julgamento pelo próprio STF NÃO RESPEITA O DUPLO GRAU;

    2) O duplo grau INDEPENDE DO RESULTADO DO JULGAMENTO – ou seja – muito diferente dos infringentes, que se limitará apenas a quem perdeu por 4 votos ou mais e, ainda, limitado apenas a esses pontos. Por exemplo, se um réu perdeu por 8 x 3 no crime A e 7 x 4 no B, só terá direito a revisar o crime B. Não é isso que prevê o Pacto de San Jose da Costa Rica;

    3) TODOS que não tem foro privilegiado (como, ALIÁS, foi feito com os réus do PSDB no “Mensalão Mineiro”) teriam direito a ser julgados no PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO, e não pelo STF – por isso suas condenações devem ser ANULADAS;

    4) COMO O PACTO DE SAN JOSE NÃO FAZ EXCEÇÕES, QUEM FOI JULGADO PELO STF  mesmo com prerrogativa de função TAMBÉM TÊM DIREITO A UM DUPLO GRAU, com juízes diferentes, com reapreciação de TODOS OS CRIMES E TODAS AS PENAS. Se isso não ocorrer a decisão do STF deve ser ANULADA!  

    Façam uma grande corrente, pois a fonte que citei é EXATAMENTE QUEM CELSO DE MELO CITOU NO JULGAMENTO (embora tenha cometido um pequeno “equívoco”, trocando o Pacto de San Jose da Costa Rica (que nada excepciona) pelo Europeu (apenas este permitiria uma exceção quando o julgamento é originário de Corte Superior)).

    A IMPORTÂNCIA DESSE PACTO É TÃO GRANDE QUE FOI COM BASE NELE QUE NÃO TEMOS MAIS A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL. E, ressalto: no caso do depositário, sua prisão era prevista inclusive na CONSTITUIÇÃO, e não pode mais ser aceita por causa da existência desse documento internacional. No caso do duplo grau é mais grave, pois nada há na Constituição (expressamente) que o impeça, como existia em relação à prisão do depositário, que era prevista expressamente na Constituição e, mesmo assim, caiu. 

    Abraços! 

  3. O voto do Min. Celso de Melo.

    Mais do que um voto discordante, que deixou de seguir a manada, o voto legalista do Ministro Celso de Melo, foi um tapa na cara dos juízes políticos do STF, e uma amostra de que é possível sim, discordar-se do Joaquinzão, e não sair defenestrado, do tribunal, e que num próximo julgamento, este precedente pode ser seguido, por alguns que inicialmente votaram com a maioria, mesmo pensando diferentemente, das múmias que dominavam o STF.

  4. Duplo grau é simples de

    Duplo grau é simples de entender. Uma revisão do julgamento. Pouco importa se a decisão judicial é um acórdão de um órgão colegiado (como tribunal) ou de uma sentença de um juiz singular. É isso, o direito a recorrer, a se insurgir da decisão.

    E em matéria de Direitos Fundamentais (ou Direitos Humanos) a pirâmide de Kelsen não se sustenta, pois por ser o ser humano hipossuficiente em relação ao Estado a lei, o regulamento, a norma internacional reconhecida no ordenamento interno, prevalece em face a Constituição Federal do Brasil. Assim a normas juridicas ficam no mesmo plano. Um exemplinho básico é o caso da prisão civil no Brasil, prevista como exceção na Constituição Federal, inciso LXVII do art. 5º, seja do depositário infiel, seja do devedor de alimentos. O Pacto de San Jose da Costa Rica, tratado de Direitos Humanos, disse que não pode haver prisão civil do depositário infiel. O que houve então. O STF declarou a prevalência da norma convencional internacional, do tratado de Direitos Humanos (por força do art. 5, parágrafo 2º), sobre a norma constitucional, que está escrita, mais não pode ser aplicada no Brasil.

    Logo, se o legislador do Brasil não previu uma norma que possibilitasse ao menos um recurso para o réu, é falha a legislação brasileira. Assim, o uníco recurso que resta é o dos embargos infringentes (para quatro, três, dois um ou nenhum voto divergente), que assim podem “salvar” o julgamento do mensalão do PT perante a Corte Interamericana de DIreitos Humanos (até pelo fato de muito cidadãos comuns – publicitários e mequetrefes – terem sido erroneamente julgados pelo STF, que não desmembrou o processo – como o STF decidiu desmembrar no mensalão do PSDB). Corte Internacional a que o Estado brasileiro está submetido e pode ser condenado por isso. Mas será uma condenação moral para o Brasil, em nada modificando o status dos réus.

  5. ” a norma que define os

    ” a norma que define os embargos infringentes tem força de Lei … porque a Constituição anterior havia delegado a competência ao tribunal para criar uma norma dessa natureza no seu regimento interno. Se a norma fosse criada um dia depois da vigência da CF/88, o argumento já não seria válido”

    Este argumento é que não tem fôlego. Toda Constituição instala uma nova ordem jurídica, e nada que não for “recepcionado” nela tem valor após sua promulgação. É o caso dos infringentes nos tribunais superiores.

    FHC tentou extinguir infringentes por lei porque os tribunais superiores não o tinham invalidado 9 anos depois. Mesmo não passando essa lei, os tribunais superiores passaram a extinguir este remédio legal, o que o STF como remanescente deveria ter feito.

    Quanto ao grau de jurisdição, está correto, primeiro a turma, depois o plenário, simulariam o duplo grau.

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