do Coletivo Transforma MP
Ministério Público: de salvador a pesadelo?
por Daniela Campos de Abreu Serra
Ao ser questionada sobre qual sua opinião sobre a atuação do Ministério Público junto aos movimentos sociais, Carmen Silva Ferreira, uma das principais lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), co-fundadora da Ocupação 9 de Julho em São Paulo/SP, convidada do Coletivo Transforma MP para o diálogo com os movimentos sociais no último encontro anual do Movimento por um Ministério Público Transformador, realizado no início de maio de 2023, na ENFF (Escola Nacional Florestan Fernandes) em Guararema/SP, não titubeou ao responder: “há 15 anos atrás o MP era visto como nosso salvador e hoje é nosso pesadelo”.
A frase dita por aquela mulher negra, cuja história revela não somente a violência doméstica que a fez migrar da Bahia para São Paulo, mas também a violência institucional sofrida ao ver seus filhos presos e ela mesma ser privada da liberdade provisoriamente a pedido do MPSP por suposto envolvimento com o crime organizado (tese que não se comprovou e não houve condenação). Agrava a situação saber que antes de ser presa, Dona Carmen noticiou ao PGJ na presença de outros integrantes do MPSP, que estava enfrentando problemas com integrantes que se identificavam como faccionados ao PCC na organização da Ocupação 9 de julho.
O fato exemplificado não é isolado no Ministério Público brasileiro e nas ocasiões que nos dispomos a ouvir a sociedade civil é recorrente a decepção externada por essa importante liderança social e nos leva a refletir sobre a atuação nos diversos ramos do Ministério Público brasileiro, que mais preocupados com si mesmos e com a política corporativista para garantir a manutenção do pagamento de valores vultuosos nos seus contracheques, atuam com foco na atividade repressiva de determinados temas, como o tráfico de drogas, crime organizado ou crimes tributários, que geram manchetes nas mídias e redes sociais por suas “operações” com os nomes mais pitorescos possíveis (de preferência que faça referência a uma figura mítica romana ou grega) esquecendo-se da missão constitucional de ombudsman da sociedade que também foi atribuída ao Ministério Público pela Constituição de 88, em especial, seu compromisso com a concretização dos objetivos fundamentais da República expressos no Artigo 3º da CF.
Aprendi isso com uma autoridade reconhecida nacionalmente quando o assunto é Ministério Público, o recém aposentado Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, a quem aproveito o ensejo para render minhas mais sinceras homenagens por tanto que contribuiu com a nossa instituição para além das montanhas mineiras, Gregório Assagra de Almeida, que me ensinou: “no Brasil, o Ministério Público tornou-se umas das grandes instituições constitucionais de promoção social, de forma que a sua atuação funcional está atrelada aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos expressamente no art. 3º da CF/88, tais como a criação de uma sociedade justa, livre e solidária; a erradicação da pobreza, a diminuição das desigualdades sociais etc.” (Disponível em https://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistajuridicafafibe/sumario/5/14042010170607.pdf).
A partir dessa premissa, julguei ser muito simbólica a resposta da Dona Carmen, pois, passados 35 anos da promulgação do texto constitucional e da nova configuração do Ministério Público brasileiro, não é possível identificar que a instituição tenha conseguido se transformar para atender aos anseios do constituinte, sendo essa inclusive uma das razões de ser pela qual muitos e muitas de nós resolvemos nos associar ao Coletivo TRANSFORMA MP, o que não amenizou a dor e tristeza ao ouvir o relato daquela mulher.
Interessante que enquanto aquelas palavras, “salvador” e “pesadelo”, ecoavam no meu cérebro para agora serem exteriorizadas nessas reflexões, quis o destino que morresse aquele que é identificado como responsável pelo tamanho que o Ministério Público tem hoje, Sepúlveda Pertence.
Em entrevista dada por ele em julho de 2016 (disponível em https://www.conjur.com.br/2016-jul-13/entrevista-sepulveda-pertence-ex-presidente-supremo), pouco antes do afastamento da Presidenta Dilma Rousseff do cargo no processo do impeachment, à época Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, contou que disse ao Presidente Sarney em 1989 ao se referir ao Ministério Público brasileiro: “criei um monstro”. Com a sua morte, revi essa entrevista e então eram três palavras ressoando e atormentando meus pensamentos: “salvador”, “pesadelo” e “monstro”. Será que a instituição à qual jurei cumprir a missão constitucional há dez anos quando tomei posse no cargo de Promotora de Justiça seria uma ilusão polianesca? Será que acreditar ser possível ser uma agente de transformação social bem remunerada pela alta relevância da função que exerce e pelo alto nível de exigência técnica com dedicação exclusiva é delírio? Será que a prioridade dada à “pequena política”, termo cunhado pelo Mestre Marcelo Pedroso Goulart ao se referir à preocupação prioritária das Chefias do Ministério Público com a política remuneratória de seus(uas) membros(as) e para tanto atender aos interesses midiáticos do momento, em prejuízo da visão institucional que modifique sua estrutura interna para ser capaz de atender ao novo papel constitucional? É possível que uma única instituição exerça a titularidade da ação penal e seja o ombudsman da sociedade ou essa formatação concentra poder e dificulta o controle?
Importante consignar que como integrante da carreira, quando vou lidar como sensível tema da remuneração, sempre ressalto que não pretendo fazer voto franciscano e defender a diminuição de subsídios porque tenho clareza que independente das respostas às inquietações aqui feitas, a opção do constituinte pelo perfil institucional do Ministério Público impõe que os(as) integrantes das carreiras tenham constante aprimoramento técnico, exerçam suas funções praticamente com exclusividade atuando em frentes exaustivas de trabalho, razões pelas quais o Estado deve remunerar como o mais alto escalão governamental, no entanto, não se pode aceitar que a contraprestação orçamentária envolvida na remuneração justa do trabalho desses servidores públicos se torne o objetivo em si da instituição Ministério Público, sob pena da perda de legitimidade social, como claramente se verificou na fala que iniciou essa breve reflexão.
Durante os debates no evento em que ouvi Dona Carmen, tive a oportunidade de elaborar uma pergunta a ela ressaltando um aspecto que considero importante. Até que ponto esse papel de “salvador” possa ter contribuído para a criação do “pesadelo” e fiz tal provocação porque defendo que parte da transformação do Ministério Público brasileiro na instituição capaz de entregar a missão constitucional e manter a legitimidade social, que inclusive justificam as altas remunerações, é compreender que para muito além do exercício da titularidade da ação penal, com todos os limites constitucionais impostos às ações estatais desenvolvidas pelos(as) integrantes da carreira no Estado Democrático de Direito, temos compromisso funcional atrelado “aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos expressamente no art. 3º da CF/88”, o que me impõe à conclusão de que a criminalização dos movimentos sociais constitui exercício inconstitucional da função de Promotor(a) de Justiça/Procurador(a) da República.
Para além das dúvidas existenciais às quais levo para as sessões de terapia, concluo e defendo que não existe “monstro” Ministério Público brasileiro, mas sim a disputa interna de forças sociais contraditórias e complexas que entre trancos, barrancos e construções dialéticas, diariamente são perpetradas um sem número de ações pelos diversos integrantes dos ramos do MP por todo o território nacional, que sem qualquer apelo midiático tem sido capaz de manter a legitimidade social da instituição na base social porque atuam em conjunto com os movimentos sociais, em perspectiva de rede, horizontal, sem nenhuma pretensão de que seja possível um “salvador”, mas porque compreenderam que a concretude do projeto de Brasil expresso pela Constituição Federal de 1988 se faz na caminhada utópica em busca do horizonte de Eduardo Galeano.
Daniela Campos de Abreu Serra, Promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Mestre em Serviço Social pela UNESP, integrante do Coletivo Transforma MP e do Movimento Nacional das Mulheres do Ministério Público, presidenta do Instituto Estudos MP.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Na seleção dos agraciados com poder fora de qualquer controle efetivo, e salários de cifras de vulto no mínimo questionável, sequer avaliam fatores tidos como objetivos como sanidade mental, o que dizer de empatia social, cultura humanistica e pertencimento nacional?
Não se passa sebo em venta de gato. É passar e o bichano vai lamber (sempre me ensinou a minha mãe). A ninguém deve ser dado poderes excessivos. As tentações – em se tratando de pessoas de bom caráter – em cometer excessos são inevitáveis. Nenhum poder se conserva dentro da razoabilidade sem outro que lhe policie com efetividade. Esse negócio de raposa tomando conta do galinheiro, definitivamente não dá certo. Como esses conselhos… todos acabam viciados. Máfias.