O Estadão de 2004 frente ao jornalismo de tablóide

Já que a turma do PSDB/DEMO resolveu transformar os arquivos fiscais do alto tucanato no quiçá derradeiro factóide dessa esfarelante campanha oposicionista, vamos providenciar um refresco à memória nacional.

Em julho de 2004, quando a revista Isto É divulgou diversos dados fiscais e patrimoniais do Presidente e do Diretor de Política Monetária do Banco Central, o Estadão saiu em defesa de Henrique Meirelles com um contundente editorial, no qual chega mesmo a dar nome a um grande número de bois da imprensa e da oposição.

O curioso é que, num texto que hoje se revela premonitório em relação ao comportamento da oposição ao Governo Lula, não há qualquer traço de indignação em relação à quebra dos sigilos fiscais dos envolvidos. Trata-se como absolutamente normal o fato dessas informações terem chegado à imprensa, e passa-se a discutir o conteúdo e a consistência das acusações (os grifos no texto do editorial são meus). Ninguém sequer cogitou em solicitar à Receita Federal uma investigação sobre a origem dos vazamentos.

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Parceiros em um linchamento moral 

Editorial de  O Estado de S. Paulo em 07/08/2004

 Quando Luiz Inácio Lula da Silva se elegeu presidente, este jornal sustentou que a grande mudança previsível na política brasileira seria a do papel da oposição. Entre o pleito e a posse do candidato vitorioso, o espetáculo da mais civilizada transição administrativa a que o País poderia aspirar apenas fortaleceu o prognóstico de que o PSDB e o PFL não tratariam o governo do PT com o misto de truculência, primarismo e desdém pelo interesse público que marcou, inesquecivelmente, o comportamento do PT diante do governo da coligação PFL-PSDB. Hoje está claro que era ilusória a expectativa de que os costumes políticos nacionais passavam por uma bem-vinda metamorfose.

Assim como o governo Lula proporcionou aos brasileiros a grata surpresa de dar continuidade às diretrizes da gestão macroeconômica dos anos Fernando Henrique, a nova oposição surpreende, só que desalentadoramente, ao reproduzir o padrão deletério do então oposicionismo petista. Anteontem, nos Estados Unidos, em mais de uma das suas constrangedoras trapalhadas verbais, o presidente Bush disse que o seu governo jamais ‘parará de pensar em novas maneiras de prejudicar nosso país e nosso povo’. No Brasil, é o que tucanos e pefelistas parecem fazer – conscientemente – ao buscarem se aproveitar do noticiário que pretende incriminar o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles.

Mesmo que sejam dissidentes petistas os responsáveis pelo vazamento dos supostos delitos de Meirelles, a oposição se associou, com indesculpável leviandade, ao espalhafato produzido por um tipo de jornalismo que atira primeiro e pergunta (às vezes) depois. Equivalessem as acusações a Meirelles ao flagrante dos malfeitos de Waldomiro Diniz, o protegido do ministro José Dirceu, nem a imprensa nem os políticos sérios poderiam ter agora uma atitude diferente da que tiveram naquela ocasião. O Estado não hesitou em defender o afastamento do ministro até a apuração cabal dos atos de seu apadrinhado promovido a assessor da Casa Civil. E apoiou uma CPI para o caso.

Mas o escândalo de agora se caracteriza pela porosidade das denúncias apregoadas trefegamente por força da concorrência entre duas revistas. IstoÉ abriu o placar ‘denunciando’ – como se fosse crime – que o então superexecutivo do BankBoston, residente nos Estados Unidos, tinha domicílio fiscal naquele país e domicílio eleitoral em Goiás (onde viria a se eleger deputado em 2002 pelo PSDB). Veja empatou, uma semana depois, com a procuração a um primo para que vendesse um imóvel de sua propriedade e sendo o primo apanhado pela Polícia Federal com R$ 32 mil em dinheiro. A mesma Veja fez 2 x 1 com o envio de US$ 50 mil de uma conta nos EUA, não declarada à Receita, para uma conta cujos titulares seriam doleiros paulistas. Ontem, IstoÉ conseguiu empatar com a compra de um terreno de 34 mil metros quadrados registrado pelo valor simbólico de R$ 0,01.

As respostas de Meirelles têm sido convincentes. Enquanto viveu na América pagou ali os impostos devidos; de volta ao Brasil, foi tributado pelo Leão.

Os reais em poder de seu primo se referiam a uma transação com um terreno em Piracicaba. E os US$ 50 mil saíram de uma conta aberta em agosto de 2002 e encerrada no mês seguinte, por isso não aparecem na sua declaração de bens em 2003, e foram para a conta indicada por um prestador de serviços, quando preparava a sua mudança para o Brasil, sem que nada soubesse sobre os seus titulares. (Não havia resposta para a última denúncia quando redigimos este editorial.) A defesa mais robusta do presidente do BC é também a mais singela. ‘Sou um homem rico. Cheguei a ganhar US$ 5 milhões em um ano’, argumenta. ‘Por que iria dar mutretas de R$ 32 mil ou fazer remessas ilegais via doleiros?’

Confrontando o que se tem levantado contra ele com as suas explicações – e com a colossal diferença de escala entre a sua fortuna de origem conhecida e as nebulosas irregularidades que lhe atribuem -, ninguém de boa-fé dirá que Meirelles é um sonegador. À luz dos fatos conhecidos, nem é tecnicamente correto dizer que as acusações a Meirelles são ‘muito graves’ (Agripino Maia, líder do PFL no Senado) nem, ainda menos, que ‘a autoridade dele já está corroída’ (Artur Virgílio, líder do PSDB no Senado).

É da natureza do linchamento moral que a vítima sucumba não às acusações, mas ao seu barulho. ‘Vai ser uma denúncia por dia’, antecipa Meirelles. Se isso acontecer, será uma vitória do jornalismo de tablóide e de uma oposição que aposta no quanto pior, melhor.

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Ao reler esse texto seis anos depois, constato assombrado que quem mudou para muito pior nesses últimos anos foi o próprio Estadão, ao embarcar (ainda que mais timidamente que os concorrentes) nas canoas insensatas do “jornalismo de tablóide” e do “quanto pior, melhor”.

Redação

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