A Venezuela e a democracia, por Regis Primo da Silva e Gustavo Costa

Se vamos falar dos problemas da Venezuela, não podemos ignorar o absurdo déficit de democracia real nos países que se dizem democráticos

do Coletivo Transforma MP

A Venezuela e a democracia

por Regis Richael Primo da Silva e Gustavo Roberto Costa

A recepção ao presidente Nicolás Maduro em Brasília mostrou ao mundo como se faz política externa e como se respeitam os princípios do direito internacional. Mas é óbvio que a coragem e a coerência da diplomacia brasileira não serviram para mudar a imagem distorcida a partir da qual boa parte dos brasileiros enxerga a Venezuela do século XXI. A demonização de Maduro, pela imprensa brasileira era, aliás, esperada. Assim como era esperada a reação contrária a Maduro por parte de uma esquerda herdeira das desilusões dos anos 90 com o socialismo real, e que enxerga Maduro pelas mesmas lentes enviesadas com que a mídia mainstream mundial o apresenta: um ditador, chefe de um regime que oprime as liberdades individuais e a imprensa.

O que causa perplexidade é que essa esquerda ainda não tenha colocado ao menos uma dose de ceticismo nessa “narrativa” (para usar a mesma expressão usada por Lula), divulgada pela imprensa mundial como parte da propaganda da política externa neocolonialista estadunidense, cujo pretexto é a defesa dos direitos humanos, da democracia, da probidade e das liberdades.

Ora, passados mais de 30 anos da dissolução da URSS, todos deveríamos saber que esse pretexto é a nova tática (já não tão nova) neocolonialista usada pelos EUA. Para desestabilizar e invadir países, os EUA especializaram-se em promover golpes travestidos de revolução colorida, impeachment ou processos judiciais. Não nos enganemos. Em suas modernas cruzadas libertárias, a intenção dos EUA é a mesma de sempre: enfraquecer ou destruir países cujos governos (de diferentes matizes ideológicos) apenas tentavam e tentam governar fora da cartilha imperialista estadunidense. Assim aconteceu (de diferentes maneiras) com a Iugoslávia, com o Iraque, com o Afeganistão, com a Líbia, com a Síria, com a Ucrânia, com o Brasil, com o Paraguai, com a Argentina, e com o Equador, entre outros países. Aconteceu e continua acontecendo, pois não há trégua na luta dos EUA para tentar desestabilizar e dar golpes na China, na Rússia, no Irã, na Nicarágua e na Venezuela. Mostrar a Venezuela como uma ditadura é, pois, fundamental aos objetivos dos EUA.

Um olhar mais profundo e menos simplista e ideológico sobre a Venezuela pode mostrar, porém, detalhes que a imprensa mainstream nunca mostra. Um exemplo: a imprensa corporativa nunca debateu honestamente a legitimidade das eleições na Venezuela. Ela simplesmente usa a tática de que são eleições corruptas (mesmo sem apresentar provas), desqualificando a maioria do povo pobre da Venezuela que votou seguidas vezes em Chávez e que hoje vota e apoia Maduro (apesar da imensa crise provocada pelo bloqueio econômico que a Venezuela sofre). Mas isso não importa para os EUA e para a mídia que os representa: eleições legítimas são aquelas em que seus aliados vencem.

Outro exemplo: a mídia corporativa diz que não há imprensa livre na Venezuela. Mas o contrário é a verdade. Há lá uma imprensa livre que apoia as oligarquias que sangraram a Venezuela durante décadas, e é exatamente por isso que parte da sociedade venezuelana, cega ao papel do bloqueio criminoso feito pelos EUA e doutrinada por essa imprensa de direita, acha que a crise pela qual a Venezuela passa é culpa exclusiva de Maduro. Essa outra parte da sociedade venezuelana (ricos, classe média e pobres de direita) apoia as mesmas oligarquias que saquearam a Venezuela antes de Chávez.

Muito se fala sobre um suposto déficit democrático no país sul-americano. Mas se vamos falar dos problemas democráticos da Venezuela, não podemos ignorar o absurdo déficit de democracia real nos países que se dizem democráticos. Hoje, um dos temas mais discutidos pelos cientistas políticos é a “crise da democracia liberal”. Embora não haja consenso entre eles sobre as causas dessa crise, o que parece ser unanimidade é o diagnóstico comum de que os governos eleitos nos EUA e na Europa (sejam de centro-direita, sejam de centro-esquerda) adotaram, nos últimos 30 anos, o padrão neoliberal de governança, que favorece o 1% mais rico e deixa à margem os 99%, isto é, a massa da classe trabalhadora. Justamente por isso, não poucos estudiosos da política entendem que esse é o principal motivo do crescimento, no eleitorado, dos partidos da direita populista, que unem valores conservadores na cultura e ideias de soberania e economia antineoliberais.

Afora isso, a questão “democrática” não é exatamente o “forte” da América Latina. Se houve uma eleição presidencial comprovadamente fraudada no continente, foi no Brasil em 2018, na qual o principal candidato foi impedido de participar por estar preso em razão de uma farsa judicial. No Chile, do pseudo-esquerdista Boric, durante as manifestações de 2019, carabineiros atiraram no rosto de centenas de estudantes, cegando muitos deles. Até hoje, muitos manifestantes ainda se encontram presos, sem que o governo atual tenha conseguido alterar o quadro de forma convincente.

Na Bolívia, durante a crise que se seguiu ao golpe de 2019, em que o presidente eleito teve que fugir do país para não ser morto, houve brutal repressão policial aos camponeses e indígenas que se levantaram contra o golpe, causando dezenas de mortes. Ainda sobre golpe, mais um deles ocorreu no Peru há poucos meses, e na presidência do país encontra-se alguém não eleito, gerando revoltas populares gigantescas. No Equador, Rafael Correa, talvez o preferido do povo equatoriano, está exilado do país, em razão de um típico caso de lawfare, e não pode participar das eleições. 

A Venezuela, como testemunhamos diariamente, apesar das suas muitas consultas populares, plebiscitos e eleições, continua mal vista pelas ditas “democracias liberais” ocidentais, o que, a nosso ver, traz, no mínimo, um preconceito contra o povo pobre venezuelano que vota e tem apoiado Chávez e Maduro. Se há problemas sérios de democracia na Venezuela, ao menos as mudanças dos últimos 20 anos foram feitas para favorecer os mais pobres, ao contrário do que tem acontecido nos mesmos 20 anos, na Europa, nos EUA e nos países latino-americanos que seguiram o ideário do Consenso de Washington.

Naturalmente, um olhar menos maniqueísta sobre a Venezuela de Chávez e Maduro é muito difícil, diante da máquina gigantesca de propaganda contra a Venezuela, e diante da dificuldade natural de cada um de nós se debruçar sobre a história da Venezuela e da geopolítica dos últimos dois séculos. Mas quem apenas ousar desconfiar, por um segundo, do que vê e lê nos jornais do ocidente capitalista, pode começar, se tiver boa vontade, a fazer uma investigação menos enviesada sobre a Venezuela da Revolução Bolivariana. Literatura séria não falta.


Regis Richael Primo da Silva – Membro do Ministério Público Federal no Ceará e membro do Coletivo Transforma MP

Gustavo Roberto Costa – Promotor de Justiça em São Paulo e membro fundador do Coletivo Transforma MP

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Coletivo Transforma MP

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