Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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A sociedade do consumo e a vida do espírito, por Michel Aires de Souza Dias

O que se evidencia hoje em nossa sociedade, é  que os homens não se encontram mais rodeados por outros homens, mas por objetos.

A sociedade do consumo e a vida do espírito

por Michel Aires de Souza Dias

A sociedade do consumo é a personificação da ilha de Ogígia, mencionada na Odisseia de Homero,  onde Ulisses ficou sete anos preso pela ninfa Calipso (aquela que  encobre). Ela  vivia em uma gruta, na encosta de uma montanha. A ninfa  prometia a Ulisses, se ele ficasse com ela,  eterna juventude e prazeres eternos.  A ilha é conhecida na cultura grega como “Campos Elíseos”. É o destino dos heróis após à morte, concebido como um paraíso, onde os homens virtuosos descansam. É um lugar florido, arborizante, de lindas paisagens,  onde os homens se divertem e vivem de prazeres eternos.  Ali seria encontrado o  rio Lethe, cujo significado grego é “esquecimento”, “ocultação”. Todo aquele que bebesse desse rio esqueceria sua vida passada. 

A sociedade do consumo é o modo de produção e reprodução, material e espiritual, que expande e transforma o consumo de mercadorias  no principal fator das relações e das práticas sociais.  Tal como a Ilha de Ogígia, a sociedade de consumo  propicia uma fauna e uma flora de objetos e prazeres inimagináveis, mas  também  produz  o esquecimento e a alienação sobre a própria existência dos indivíduos.  Nesta Ogígia dos tempos modernos,  as pessoas vivem  vidas que não escolheram, apegam-se a valores, crenças e formas de comportamento sem nunca refletirem sobre suas escolhas. Os indivíduos não sabem o que querem e não sabem o que sentem.  Eles se comportam de forma irrefletida, apenas vivem para consumir, sem pensar no que consideram ser seu projeto de vida ou o que acreditam ser os meios corretos de alcançá-lo. Eles ignoram o que realmente buscam,  o que desejam, o que é relevante ou irrelevante para suas vidas. Viver na sociedade do consumo é viver num mundo atemporal e do esquecimento.

Em seu ensaio, O que significa elaborar o passado,   o filósofo alemão Theodor Adorno  argumentou que a sociedade burguesa está subordinada de um modo universal à  lei da troca. Esta por sua própria natureza é atemporal, assim como o cálculo, as mercadorias e a produção industrial. Não existe tempo nas relações de troca, tal como não existe tempo na racionalidade técnica. Elas são determinadas por ciclos contínuos e pulsantes.  Com isso,   “a memória, o tempo e a lembrança são liquidados pela própria sociedade burguesa em seu desenvolvimento, como se fossem uma espécie de resto irracional (…)” (ADORNO, 1995, p.33).  O filósofo avalia que  a perda da memória e da  lembrança colaboram para a reprodução da sociedade capitalista,  uma vez que tem a função de adaptar os indivíduos as formas de domínio social prevalecentes: “Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação do existente, nisto reflete-se uma lei objetiva do desenvolvimento” (ADORNO, 1995, p.33).

O que se evidencia hoje em nossa sociedade, é  que os homens não se encontram mais rodeados por outros homens, mas por objetos. Baudrillard (1970),  em seu livro Sociedade do Consumo, argumentou que o conjunto das relações sociais já não é tanto com seus semelhantes, mas com as coisas. Segundo ele, “vivemos o tempo dos objetos (…) existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente” (BAUDRLLARD, 1970, p.18). Em consequência disso, vivemos o “não-tempo”.  Em sua própria natureza os objetos são  atemporais. O computador,  o celular, a televisão, o videogame e os aparelhos eletrônicos só reforçam cada vez mais o  individualismo e a solidão dos indivíduos.  É a superioridade das coisas em detrimento dos homens.  As relações humanas se reificaram, banindo as relações afetivas. Os objetos invadem, conquistam e colonizam nossa vida espiritual. Kant, no século XVIII, afirmou que o tempo é uma forma a priori de nossa sensibilidade. Se essa asserção é válida, se o tempo é uma característica do pensar humano, então o mundo dos objetos está fora do domínio temporal. Por esta razão, na sociedade do consumo vivemos na intemporalidade. A nossa vida é uma sucessão de presentes, desprovida de passado e futuro.  

 Na sociedade do consumo o indivíduo é determinado por uma rotina ininterrupta. Os mesmos gestos, as mesmas atividades, as mesmas diversões.  Acordar sempre no mesmo horário, pegar o mesmo transporte, realizar as mesmas atividades no trabalho, ver os mesmos rostos,  voltar  para casa seguindo o mesmo trajeto. O tempo parece não existir. Zigmunt Bauman, em seu livro Vida para o consumo (Consuming life),  compreendeu a passagem do tempo na sociedade do consumo como um tempo pontilhista (pontuado), como uma sucessão de presentes.  Para ele,  o tempo não é mais linear e cíclico, como costumava ser para os antigos. O tempo se fragmentou  numa multiplicidade de “instantes eternos”. Citando  Mafessoli: “a vida, seja individual ou social, não passa de uma sucessão de presentes, uma coleção de instantes experimentados com intensidades variadas” (MAFESSOLI apud BAUMAN, 2008, p. 46).  Bauman também cita o termo cunhado por Stephen Bertman,  “cultura agorista” ou “cultura apressada”, para denotar a maneira  como vivemos na sociedade do consumo.   Nesta sociedade o consumo é instantâneo e a remoção é também instantânea de seus objetos. Novos objetos e necessidades surgem a todo momento, sendo consumidos ininterruptamente. É uma profusão de instantes que se repetem através das mesmas ações e atividades que se equivalem. Com a perda da noção de tempo, o indivíduo encontra-se alienado em relação a sua própria vida e a sua interioridade. Os homens vivem apenas para o trabalho e para o consumo.

Esse vácuo interior, essa falta de sentido da vida tem uma consequência para a vida espiritual do indivíduo:  as drogas, as compulsões e as doenças psíquicas.  Não é  à toa que nossa época é conhecida como a era dos antidepressivos. A onda de ansiedade e depressão tornou-se um fato comum no mundo contemporâneo. Para a Organização Mundial da Saúde 280 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão, sendo um problema de saúde grave em todos os países. Mais de 700.000 morrem por suicídio todos os anos. O suicídio é a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Embora existam tratamentos conhecidos e eficazes para transtornos mentais, mais de 75% das pessoas em países de baixa e média renda não recebem tratamento (WHO, 2021).

A sociedade burguesa tornou o consumo o fundamento  compulsivo da civilização. Vivemos na era das compulsões: compulsão por comida, compulsão sexual, compulsão por drogas, compulsão por compras. Numa sociedade onde as relações humanas tornaram-se reificadas, onde a vida dos homens é sem sentido e fragmentada, o resultado são as compulsões. Toda tensão, conflito, frustração gera uma grande carga emocional, que geralmente é descarregada num comportamento compulsivo.  Para os psicólogos e psicanalistas, toda compulsão  serve como uma forma de compensação de nossas frustrações e ansiedades. Entregamo-nos ao excesso para compensar.  Vivemos como na ilha de Ogígia, no reino do esquecimento, buscando prazeres contínuos e ininterruptos. Estamos sempre rodeados por infinitas possibilidades de satisfação, sempre à procura de novos prazeres e objetos que nos satisfaçam.     

Comprar tornou-se uma necessidade orgânica. Fazer compras nos propicia um grande prazer e nos faz esquecer.  O consumo é um momento de  catarse. É a purificação do espírito através da identificação com o objeto.  É o momento supremo de  descarga emocional. Quando consumimos nos sentimos aliviados de qualquer tensão emocional acumulada. Um dia estressante de trabalho,  uma discussão com o chefe, o engarrafamento do trânsito ou o mal humor do conjugue desaparecem da consciência, como num passe de mágica. Esquecemo-nos de nossos problemas, de nossas frustrações e do nosso cotidiano regular e  monótono. O consumo é um momento lúdico e atemporal de grande descarga afetiva.

A catarse do consumo é equivalente a catarse religiosa. Nos ritos religiosos observamos uma grande quantidade de descarga emocional, o indivíduo chora, ri,  deslumbra-se, sente alegria, êxtase, contentamento.  Aristóteles foi o primeiro a perceber estes sentimentos no teatro grego, que surgiu como manifestação religiosa em homenagem aos deuses.  Ele usou o termo “catarse” para expressar o efeito peculiar exercido pela história dramática  sobre os seus espectadores. Na passagem da alegria para a desgraça do herói,  o espectador experimenta sentimentos de piedade, compaixão, terror, repugnância, raiva ou alegria.  Para o filósofo, o drama teria o objetivo de purificar os espectadores ao excitar esses afetos que agem como uma espécie de alivio ou descarga de suas próprias emoções.  Dessa forma,  a catarse se manifesta num duplo sentido,   como  prazer e como alívio.

A sociedade do consumo se caracteriza por ser uma sociedade do prazer e da satisfação. Se estivermos tristes, em depressão ou tediados basta ir ao shopping e comprar as marcas e os produtos que desejamos, para recuperarmos  o equilíbrio emocional. Para o homem contemporâneo, não há nada mais prazeroso do que fazer compras, não há nada mais feliz do que consumir. Consumir um produto significa sentir-se bem, alegre e feliz. Esse argumento não é especulativo, mas científico. Estudos da neurociência mostram que o consumo de um produto  estimula o “núcleo accumbens”, que pertence ao sistema límbico e funciona como o centro do prazer. Suas células nervosas são ativadas por um neurotransmissor, a dopamina, levando à liberação dos chamados opiáceos endógenos, produzidos pelo próprio organismo. Estas substâncias estão associadas à sensação de prazer e bem-estar. Dessa forma, o consumo além de suprir um desejo e uma necessidade, causa prazer e torna o indivíduo alegre e feliz.

A tese de Freud de que os indivíduos não poderiam viver sob o regime do princípio de prazer tornou-se uma falácia. No seu livro, O mal-estar na civilização, o pai da psicanálise argumentou que, o objetivo da civilização não é o prazer, mas a renúncia a ele.  A vida do indivíduo é a busca constante pela realização da satisfação do prazer, mas esta satisfação é impossível de realizar num mundo carente e escasso de recursos.  O mundo é hostil às necessidades humanas, para tudo o que é bom e prazeroso exigem-se trabalhos penosos e sofrimentos. O indivíduo deve trabalhar para poder sobreviver. Ele deve abandonar o princípio de prazer e se submeter ao princípio de realidade. O processo civilizatório é marcado pela renúncia e pelo sentimento de insatisfação que os homens experimentam vivendo em sociedade. O que Freud não conseguiu avaliar, é que a humanidade chegasse a um estágio de abundância e satisfação inimagináveis.  Ele não esperava que o desenvolvimento técnico e científico possibilitasse, aos seres humanos, uma grande quantidade de bens materiais e intelectuais, capaz de satisfazer todos os prazeres do homem.

O princípio de prazer e o princípio de realidades são os dois princípios que regem o funcionamento mental.  Na evolução da humanidade, o ser humano teve que substituir o princípio de prazer pelo princípio de realidade, uma vez que a o mundo externo é hostil à satisfação das necessidades humanas. Os processos mentais, descritos por Freud,  são regulados  num primeiro momento pelo princípio de prazer. A busca do prazer é uma luta pelo escoamento livre das quantidades de excitação, causada pelo impacto da realidade externa sobre o organismo. O alívio de estímulos seria a completa gratificação da excitação. Contudo, através do conflito do homem com o mundo externo surge um outro princípio, que deve proteger e reger o funcionamento mental: o princípio de realidade. Esse princípio aparece, secundariamente, como uma modificação do princípio de prazer, tornando-se a pedra angular dos processos mentais, em particular, dos processos conscientes (Ego). Foi através do princípio de realidade, no seu confronto com o princípio de prazer, que o organismo teve que construir defesas que o protegessem dos desprazeres causado pelo mundo externo.

Para Freud, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade foi necessária na história da civilização. Seu argumento afirma que o homem para viver em sociedade não pode viver sob o regime do princípio do prazer:  “Este programa nem se quer é realizável, pois toda a ordem do universo se opõe a ele e, além disso, estaríamos por afirmar que no plano da criação não inclui o propósito do homem ser feliz”  (FREUD, 1974, p.3025). No atual estágio da civilização, a teoria da cultura freudiana tornou-se problemática. O princípio de prazer tomou o lugar do princípio de realidade. A nossa época mostrou, ao contrário do que pensava Freud, que a sociedade pode ser regida pelo princípio de prazer. O diagnóstico de Freud  falhou, pois ele universalizou a cultura de sua época para toda a história da civilização. Ele vivia  na época vitoriana, num período de valores éticos, como respeito, civilidade, polidez, considerados as mais elevadas virtudes sociais. Mas, também, era  uma época de preconceitos, repressão moral e hipocrisia. Apesar de viver num período de  desenvolvimento técnico e científico, de industrialização e de grandes empreendimentos, Freud nunca imaginou que pudesse existir uma sociedade do consumo, cujo princípio é o prazer e a satisfação.

A primeira característica do princípio de prazer é que ele busca  uma  satisfação constante.  Entre um prazer e outro nada melhor que um novo prazer. Este é o princípio compulsivo do aparelho mental. O objetivo do princípio de prazer é liberar as tensões acumuladas do aparelho neuronal.   Freud relaciona o prazer e o desprazer à quantidade de excitação existente neste aparelho.  Corresponde ao prazer a diminuição da quantidade de excitação e  ao desprazer o aumento dessa quantidade. A busca do prazer é uma luta do organismo para diminuir as quantidades de excitação, causado pelo impacto da realidade externa sob o organismo. Freud chamou esse mecanismo de aliviar as tensões de “princípio de constância”, ou seja, é a tendência do aparelho neuronal em manter a quantidade de excitação  baixa  ou mais constante possível.  Ele compreende este princípio como um conceito  econômico. Cada vez que a tensão aumenta no aparelho este princípio se encarrega de descarregá-la (FREUD, 1996).

O princípio de prazer é o fundamento psicológico da sociedade do consumo. Este princípio não é afetado pelo tempo, ignora valores bem e mal, moralidade, esforça-se simplesmente pela satisfação de suas necessidades instintivas.  Ele é compulsivo em sua própria essência. Daí a explicação para as compulsões e a descarga emocional que os produtos da sociedade do consumo propiciam.  O consumo propicia um grande prazer, aliviando as tensões do dia a dia, enfrentado por milhões de seres humanos.

A sociedade do consumo pode ser definida utilizando a terminologia de Herbert Marcuse (1967), como “unidimensional”. É unidimensional na medida em o aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao sistema social como um todo. As mercadorias, os produtos, e os entretenimentos trazem consigo atitudes, hábitos, emoções e formas de ser e pensar. Prendem, assim, os consumidores agradavelmente aos produtos e formas de bem-estar social. Os produtos desta sociedade invadiram a dimensão interior do homem submetendo-a as formas de domínio social prevalecentes O próprio indivíduo reproduz e perpetua os controles externos em sua consciência. Essa introjeção ocorre a partir de processos relativamente espontâneo, onde o “Eu” transfere o exterior para seu interior.  A produção, distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos idiotizados tomaram a vida espiritual do indivíduo.

Referências

ADORNO, Theodor. O que significa elaborar o passado. In: ADORNO, T. Educação e Emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995.

BAUDRILLARD, Jean.  La société de consommation: ses mythes, ses structures. Paris: Edition Danoël, 1970.

BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

FREUD, S. El Malestar en la cultura. Madri, Ed. Standard, Obras completas, Tomo VIII, Madri,  1974.

FREUD, S.  Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Obras completas, vol. XVIII.

Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. Rio de janeiro: Zahar, 1967.

WHO Depression. Geneva: World Health Organization, (Setember 2021). https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/depression


Michel Aires de Souza Dias – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

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Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

1 Comentário

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  1. Mais um excelente artigo do Michel Aires. Eu diria que Prazer e Realidade evocam a nós, na Era do Algoritmo (Entidade que perfilhou, e na verdade monopolizou, o Consumismo, filho dileto do Século XX), ideias, conceitos, visões, o que for, totalmente diferentes do que representavam, cognitiva e filosoficamente, ao Dr. Freud. É certo, por exemplo, que o Dr. Freud consideraria a leitura de um livro um grande prazer – e somente o enunciado dessa frase já seria anacrônico, hoje, quase um anátema. E a Revolução Russa, por exemplo, meramente uma “alteração arrasadora da Ordem”, tão violenta que carregaria, em si, escassas possibilidades de sucesso – por ir contra, violentamente, a estrutura assentada da Revolução Burguesa que a precedeu, que ao Dr. Freud aparecia, provavelmente, como o pináculo da vida social possível do homem, ao menos em suas linhas puramente sócioadministrativas. O resto – questões éticas, morais, humanitárias, não tem valor filosófico e muito menos de mercado; ninguém vai ao divã por tais ninharias. Afinal, a exploração do trabalho, apesar de não ser lá coisa muito ética, era uma questão menor e subalterna, para Adam Smith, uma coisa natural, para David Ricardo, e uma vontade de Deus, para Thomas Malthus – e Freud, certamente, não faria objeções mais sérias a esses eminentes intelectuais. Mas o Dr. Freud, nascido, criado e vivido em plena era da prosperidade das metrópoles – apesar (sic) das guerras, conflitos, e barbaridades colonialistas envolvidas, e embora dela pouco tenha desfrutado, em linhas gerais – certamente não conhecia, e muito menos era capaz de avaliar, o que acontecia do outro lado da fronteira – onde estava o mundo pobre, rico em recursos naturais e de mão-de-obra, e cuja existência possibilitava toda essa prosperidade, e que, como se sabe, não vinha ao caso.
    Mas essa é somente a casca do problema. Estamos, de fato, em uma era que pode ser considerada sob o Princípio do Prazer – e da satisfação desse prazer – mas somente porque o Princípio de Realidade possibilitou uma satisfação oblíqua do prazer – a Sociedade de Consumo, onde a satisfação dos prazeres é para quem pode, e não para todos, como é a neurose. A Realidade, aqui, não deu lugar a uma neurose – mas a uma obsessão de acumulação de Poder – via riqueza pecuniária e propriedade privada- que se transmuta em Prazer, via consumo. Aqui, o Dr. Freud em nada pode nos ajudar. Talvez o seu sobrinho, Edward Bernays. Mas esse sobrinho jamais estaria interessado em ajudar; ele foi um dos desenvolvedores dessa sociedade, em seus métodos e linhas de ação.
    E o problema, hoje, é ainda outro; o Prazer será totalmente virtual, e a Realidade também. Esqueçamos nossos Freuds e Adornos; o mundo deles passou. O Vale do Silício, o Google, Amazon, Elon Musks da vida estão aí, exercendo um poder de sedução incomparável sobre os corações e mentes das pessoas – e seus bolsos. Hitlers e Mussolinis virtuais, pandemias virtuais, vacinas virtuais, guerras e boicotes econômicos virtuais, de tudo se extrairá lucro para alimentar o Poder Virtual – o próximo passo da evolução. A única coisa imune à virtualidade será o lucro, espécie de alter-ego do Algoritmo, e aí sim, poderemos retornar ao Dr. Freud. Nem que seja para constatarmos que o Id – que poderia nos salvar desse abismo de vaidade, futilidade, e frivolidade que é a Sociedade de Consumo – também se juntou à multidão virtual de consumidores transformados em mercadorias de si mesmo. Vide os alegres protagonistas dos videozinhos de alguns segundos dos tiktoks e kwais da vida.

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