da ConJur
Afinal, como ficou o juiz das garantias na versão híbrida?
Por Aury Lopes Jr.* e Alexandre Morais da Rosa**
Este artigo, em continuidade à análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal quanto às ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (pacote anticrime — Lei nº 13.964/2019), inicia a abordagem do juiz das garantias que, conforme apontou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho na última coluna Criminal Player:
“No fundo, confirmou a introdução do instituto (sabidamente ligado ao sistema acusatório), mas glosou (por “interpretações conforme” e declarações de inconstitucionalidade) os preceitos da lei para manter o atual sistema inquisitorial.”
A ausência de compreensão quanto às características e suporte teórico da figura do juiz das garantias, transposta de boas práticas internacionais relacionadas às garantias de imparcialidade do órgão julgador, um dos pressupostos de existência do processo penal, conformou o resultado do julgamento, com a criação de modelo híbrido. A diretriz legislativa originária direcionava-se ao alinhamento do sistema de justiça criminal nacional às premissas do modelo acusatório por meio do estabelecimento de controles epistêmico quanto aos contornos, restrições e funções jurisdicionais nas duas etapas do Processo Penal: [1] Etapa de Investigação Criminal; e, [2] Etapa de Julgamento.
A figura do juiz das garantias não é invenção legislativa brasileira, nem se trata de um novo órgão jurisdicional, mas tão somente da cisão/divisão funcional do mesmo conjunto de atividades realizadas atualmente pelo mesmo órgão judicial. Também não se confunde com a figura do juiz instrutor. A função do juiz das garantias é a de controlar a eficácia dos direitos individuais, preservando a integridade e a conformidade dos eventos da etapa de investigação criminal, sem cumulação da função de instrução e julgamento da Hipótese Acusatória (HAc), atividade reservada ao Juiz de Julgamento. Nada mais, nada menos.
Em trabalho acadêmico defendido na UFPR (Universidade Federal do Paraná), a magistrada Danielle Nogueira Mota Comar, em profundo estudo sob o título “Imparcialidade e Juiz das Garantias”, após discorrer sobre as discussões preliminares, desenvolver os modelos existentes no mundo ocidental [França, Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, Chile, Uruguai e México], rebate todas as objeções deduzidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, concluindo:
“O juiz das garantias não é uma criação brasileira. Em verdade, por aqui chegou muito tardiamente. Por meio de estudo de legislação de outros sistemas processuais, cada qual com suas peculiaridades demonstrou-se que outros sistemas judiciais europeus e latino-americanos adotam juízes diversos ao longo de toda a persecução penal, que servem de inspiração para o modelo brasileiro. […] O estudo demonstrou que efetivamente outros sistemas processuais estão mais avançados no que concerne à real preocupação com a observância de um processo penal verdadeiramente assegurador da imparcialidade. […] A implantação do juiz das garantias pretende mitigar o risco de possíveis decisões injustas, propiciando uma destacada diferenciação entre a fase pré-processual e processual. Trata-se de uma nova hipótese de divisão funcional de competência: serão dois magistrados distintos, competindo ao juiz da fase de investigação o papel de zelar pelo controle da legalidade dos atos de investigação praticados e tutelar os direitos não só do investigado, mas também dos demais participantes dessa fase, além do juízo de admissibilidade da acusação, enquanto ao juiz do processo competirá a instrução e o julgamento, sem prejulgamentos oriundos de uma atuação prévia na primeira fase da persecução penal. Neste trabalho, respeitosamente refutou-se cada um dos eixos críticos e defendeu-se a constitucionalidade do juiz das garantias.”Imparcialidade e Juiz das Garantias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022, p. 605-606; 608-609).
Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, magistrado do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e há muito vinculado ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em tese de doutorado defendida na Universidade de Barcelona, esclarece:
“Por lo tanto, el ‘juez de garantías’ no es una figura que desciende (del) o sustituye al ‘juez de instrucción’. Representa y integra un órgano que tiene otra ‘estructura mental’ (Ferrajoli [2006: p. 48]). En verdad, uno y otro reflejan modelos de proceso denotados por preocupaciones bien definidas: por el primero, el juicio deja de ser una etapa constituida por actos dirigidos a la mera reproducción de hechos ya producidos y formalizados en conformidad con un protocolo judicial (el del instructor), para ser una fase en la que la oralidad y la inmediación puedan, realmente, reforzar el sentido del contradictorio y del debate dialéctico como métodos por medio de los cuales la esencia y el alcance de las pruebas tendrán otro y mejor significado. Así, en todos los sentidos, se trata de valorar un procedimiento de (re)construcción de la verdad conforme una identidad más cercana a la constatación de la auténtica realidad del conflicto social subyacente al proceso”. (El ‘Juez de Garantías’ y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del Poder Judicial frente a la política criminal brasileña.
Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 207-208).
A ruptura orientava-se pela radical preservação da imparcialidade cognitiva [aqui; aqui] em face da diferenciação funcional entre os órgãos jurisdicionais nas duas Etapas [Investigação e Julgamento] do caso penal, com a finalidade de evitar a “comunicação” entre o conhecimento adquirido “antes” e “depois”.
A função da etapa de investigação criminal é a de adquirir evidências quanto ao evento penal reportado [materialidade; autoria; elemento subjetivo; circunstâncias], materializado no relatório da autoridade policial. Em consequência, exaure-se com a Hipótese Criminal (HCrim) construída em face dos indicadores de realidade levantados durante as diligências, com a limitada participação da defesa.
Com o resultado da investigação criminal, o legitimado ativo poderá analisar a presença/ausência da “justa causa”, consolidada na Hipótese Acusatória (HAc), decidindo sobre o exercício da ação penal.
O suporte lógico é trivial: a etapa de investigação criminal é administrativa, desprovida das garantias constitucionais da etapa de julgamento, dentre elas: [1] Imputação Formalizada [demarcação da conduta atribuída por meio de denúncia ou queixa-crime]; [2] Imediação Jurisdicional [produção de argumentos e provas perante órgão judicial]; [3] Contraditório [efetiva participação da defesa, nas modalidades direta e indireta]; e, [4] Ampla Defesa [possibilidade de contraditar todo conjunto de argumentos e provas].
Logo, as funções das etapas de investigação criminal e a de julgamento são distintas, com a atividade judicial chamada quando necessária a restrição de direitos fundamentais (cautelares pessoais; probatórias; patrimoniais). Para que o órgão judicial possa decidir sobre os pedidos cautelares, então, deve “conhecer” os elementos já produzidos, motivo pelo qual devem ser “separados” os órgãos judiciais, porque a segunda etapa (julgamento) inicia-se somente com a formalização da denúncia ou queixa-crime. Para fins de condenação criminal, o conjunto da prova válida restringe-se somente à “produzida” em contraditório [direto ou diferido], sem que possa acontecer o “reaproveitamento” automático das evidências da etapa de investigação criminal.
O ponto principal é: o órgão jurisdicional que participou da produção de prova para fins da etapa de investigação criminal encontra-se “contaminado cognitivamente”: “já sabe” desde “antes” do conteúdo que deveria conhecer somente “depois”, durante a instrução e julgamento.
Os achados da Psicologia Cognitiva, Economia Comportamental, Neurociência, Psicologia Social, dentre outros campos do saber [TOSCANO, Rosivaldo. SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. O cérebro que julga. Florianópolis: EMais, 2022], impõem restrições epistêmicas às possibilidades do conhecimento sobre o caso penal e à suposição de plena imparcialidade, própria da mentalidade inquisitória.
A relevância é tamanha que o CNJ alterou a Resolução 75/2009 para incluir a temática no concurso e na formação de magistrados ao expressamente reconhecer a importância da Economia Comportamental, das Heurísticas e dos Vieses Cognitivos/Motivacionais na formação do magistrado, situação tratada largamente pela doutrina especializada.
Longe de ser fraqueza, má-fé ou desvio moral, as armadilhas cognitivas são parte da condição humana, amplamente reconhecidas no domínio científico, conforme alentada bibliografia técnica, destacando-se o Prêmio Nobel de Economia de 2002, atribuído ao psicólogo Daniel Khaneman [Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012], que, recentemente, publicou com outros dois reconhecidos pesquisadores, Oliver Sibony e Cass R. Sustein, obra destinada a demonstrar a incidência de vieses cognitivos nos julgamentos judiciais [Ruído: uma falha no julgamento humano. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021].
Por isso, a separação funcional entre o juiz das garantias [JG] e o juiz de julgamento [JJ] deveria servir de anteparo às armadilhas epistêmicas [lógicas, cognitivas, motivacionais, mentais, cerebrais, psicológicas etc.] que, inconscientemente [sem domínio da consciência, não psicanalítico; CALLEGARO, Marco Montarroyos. O novo inconsciente. Porto Alegre: Artmed, 2011; FERRAREZE FILHO, Paulo. Curso de Psicologia do Direito. São Paulo: Tirant lo blanch, 2022; RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019; WOJCIECHOWSKI, Paola Biachi; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as herurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: EMais, 2021], distorcem a cognição, a atitude e/ou as habilidades e os meios de construção do conhecimento sobre o caso penal.
Não bastasse a necessidade de criação de mecanismos epistêmicos de prevenção contra influências cognitivas [vieses] ou psicológicas que afetam a imensa maioria das pessoas, principalmente os que se acham ilesos à incidência de vieses cognitivos, justamente porque padecem do “Viés do Excesso de Confiança”, conforme pontua Robert J. Sternberg:
“[…] a supervalorização que uma pessoa faz de suas próprias aptidões […] Em geral, as pessoas tendem a superestimar a precisão de seus julgamentos. Por que as pessoas demonstram excesso de confiança? Uma razão é que as pessoas podem não perceber o quão pouco conhecem. Uma segunda razão é que podem entender o que estão supondo quando se valem do conhecimento que possuem. Uma terceira razão pode ser não saberem que suas informações originam-se de fontes não confiáveis. […] O motivo pelo qual tendemos a manifestar excesso de confiança em nossos julgamentos não está claro. Uma explicação simples é que preferimos não pensar na possibilidade de estarmos errados.”
[Psicologia Cognitiva. Trad. Anna Maria Luche. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 442].
No entanto, o julgamento das ADIs pelo STF rejeitou a hipótese das limitações cognitivas humanas, preservando a lógica da atividade probatória do órgão judicial e, também, a sobreposição do conhecimento produzido “antes” [etapa de investigação] e “depois” [etapa de julgamento], ao atribuir ao juiz de julgamento a função de admissão da acusação.
Se a premissa do juiz das garantias era a de evitar o contato com os elementos produzidos “antes” e a admissão da acusação exige o controle da “justa causa”, o ato judicial deveria ser do juiz das garantias. Entretanto, ao determinar que o recebimento da acusação seja realizado pelo Juiz de Julgamento, promove-se a contaminação cognitiva por meio da sobreposição do “antes/depois”.
Priscilla Placha Sá especifica:
“A figura o juiz das garantias — dissociada completamente daquela do juiz do processo — é o assento da busca por um efetivo e não mais mitológico sistema acusatório, com estrutura (inclusive, principiológica) que o sustente, para se consagrar o processo penal o modelo democrático; afastando a possibilidade de, nesta fase, existir iniciativa probatória do juiz e preservando assim seu distanciamento a fim de evitar a influência na formação dos elementos que venham a configurar ou antecipar a pretensão de quem quer que seja”.
(O Juiz de Garantias: Breves considerações sobre o modelo proposto no PL 156/2009. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; CASTANHO DE CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti (orgs.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 159-160).
Neste sentido, complementa Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi:
“Lo cierto es que el juez, cuanto más preservado y distante de las tareas investigadoras esté, en el sentido del estímulo, recepción o producción de las averiguaciones del hecho punible, es decir, cuanto mejor definida su ajenidad a los intereses contrapuestos, estará, a su vez, más libre psicológicamente de la natural tensión o compromiso que esas actividades son capaces de producir, podrá acentuarse como supremo garante de (todos) los derechos y libertades que corren el riesgo de ser vulnerados y contribuirá, más inmediatamente, a reparar, incluso, los ya vulnerados, encaminando las responsabilidades ahí ocurridas a las investigaciones debidas”. (El ‘Juez de Garantías’ y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del poder Judicial frente a la política criminal brasileña.
Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 36).
Em resumo, o juiz das garantias intervém diretamente na etapa de investigação criminal, ainda que passivamente (sem o protagonismo do juiz inquisidor ou do juiz de instrução, figuras rejeitadas pela Constituição e pelo Supremo), supervisionando a instauração, a duração e as provas produzidas durante as investigações, até o recebimento da denúncia/queixa, com o fim de garantir a conformidade da apuração criminal, cessando a intervenção quando remetido o caso para julgamento.
O escopo da legislação foi o de ajustar o sistema processual penal à orientação dominante na América Latina e no mundo ocidental quanto à “cisão funcional” entre o exercício das funções relacionadas à Reserva de Jurisdição das Etapas de Investigação e de Julgamento, preservando a imparcialidade objetiva, subjetiva e cognitiva do órgão julgador. Entretanto, a decisão do STF, ao mesmo tempo que reafirmou a importância do juiz das garantias, ao atribuir a admissão da denúncia/queixa ao juiz de julgamento, mitigou o efeito da preservação cognitiva, favorecendo a contaminação cognitiva.
A cisão funcional das atribuições entre juiz das garantias e juiz de julgamento restringe-se a atender ao interesse democrático de garantir a imparcialidade dos controles epistêmicos, com a vedação da sobreposição de funções por juízes monocráticos (excluída a incidência do juiz das garantias aos colegiados).
O balanço inicial é o de que se agregou ao sistema de Justiça salvaguardas institucionais mínimas quanto à independência, integridade cognitiva e imparcialidade do órgão julgador responsável pelo controle da legalidade das investigações criminais (CPP, artigo 3º-B), por meio da “cisão funcional” entre as atribuições, anteriormente concentradas somente na figura de um órgão julgador. O passo subsequente será o da implementação do juiz das garantias, ajustando-se as consequências procedimentais posteriormente. (GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel. Pensar da reforma judicial no Brasil: conhecimentos teóricos e práticas transformadoras. Florianópolis: Empório do Direito, 2018, p. 13-15).
Mas é importante sublinhar: o instituto do JG só funcionará se houver a cláusula de impedimento, ou seja, a determinação legal de que que o juiz que atua na investigação não pode ser o mesmo que depois irá instruir e julgar o processo. Neste sentido, é incompreensível a decisão do STF de declarar inconstitucional o artigo 3º-D, que determina: “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo”.
É imprescindível resgatar essa cláusula de impedimento sob pena de esvaziamento do principal fundamento da existência do juiz das garantias.
Ainda que não tenhamos o juiz das garantias na extensão original, além das objeções, cabe discutir a conformidade da implementação operacional, mantida a diretriz do princípio acusatório previsto no artigo 3º-A, do CPP. Eis o desafio que se renova.
*Aury Lopes Jr. é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.
**Alexandre Morais da Rosa é juiz de Direito de 2º Grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
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