Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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O descarte social avança, por César Locatelli

Márcio Pochmann fala sobre a grande desistência histórica, estabelecida pelas classes dominantes, na virada do século XXI, do projeto de sociedade urbana e industrial instalado com a Revolução de 1930

O descarte social avança

por César Locatelli

Escreveu Oswald de Andrade, em 1937:

“País de sobremesa. Exportamos bananas, castanhas-do-pará, cacau, café, coco e fumo. País laranja! (…). Os nossos economistas, os nossos políticos, os nossos estadistas deviam refletir sobre este resultado sintético da história pátria. Somos um país de sobremesa. Com açúcar, café e fumo só podemos figurar no fim dos menus imperialistas. Claro que sobremesa nunca foi essencial.”

Desde 1937, certamente percorremos um longo trajeto, assombra-nos, todavia, a regressão a provedor mundial de ração animal.

As classes dominantes brasileiras desistiram do projeto de sociedade urbana e industrial, iniciado em 1930. Hoje vendemos bens primários para consumir bens e serviços digitais. “Em síntese, iniciou-se a aceitação, pelas elites atuais, da teoria do realismo periférico, que identificava o país como incapaz de exercer qualquer protagonismo no plano internacional, comprometido com a valorização da vantagem comparativa de produzir mão de obra mais barata possível e exportar mercadorias assentadas no neoextrativismo ambiental.” (1)

Essa é a tese defendida por Márcio Pochmann para explicar a mudança de época em curso, nessas primeiras décadas do século XXI: vivenciamos uma sociedade em ruínas, que tem como características marcantes a dissolução da relação salarial, o desmonte da sociedade industrial e a polarização entre o andar de cima e o andar de baixo da população.

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Seu método para analisar a conjuntura econômica, social e política brasileira é distanciar-se das emergências do curto prazo e, em uma perspectiva histórica, levar em conta a pressão que as mudanças estruturais exercem sobre ela.

“O Brasil e a Coreia do Sul eram as vitrines do capitalismo periférico, em termos de expansão industrial. Isso até 1970, virada do anos 1980. Depois disso, o que vamos observar é, na verdade, o desmanche dessa sociedade industrial”, sustentou Pochmann em debate, A Desistência Histórica e os Horizontes de um Novo Despertar, promovido pelo Instituto Amsur e Fórum 21. O debate sobre o futuro, tema recorrente naquele período, desapareceu nos anos 1990, “uma espécie de cancelamento do futuro”, emendou ele.

“Já vivemos um período histórico anterior [final os anos 1860], em que estava claro o desmanche de uma sociedade escravista, e havia duas forças dominantes, de um lado aqueles que queriam mantê-la por mais tempo, postergá-la no tempo e, de outro lado, aqueles que lutavam pelo seu encerramento, pela construção de uma coisa diferente.” E se a disputa política, naquele momento, era entre abolicionistas e a elite agrária, hoje temos uma direita que quer destruir as instituições existentes, sem saber o que colocar no lugar,  e uma esquerda que quer manter a ordem das instituições. Carecemos, portanto, de um projeto de futuro para os sujeitos sociais que têm surgido, explica Pochmann.

Ele cita o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, que utiliza a expressão “comprar tempo” para indicar as iniciativas de adiar as mudanças que são inexoráveis e iminentes. Streeck afirma que:

“Seguir o caminho dos últimos cerca de quarenta anos levará (…) a uma tentativa de libertação definitiva da economia capitalista e dos seus mercados, não dos Estados – uma vez que os primeiros continuarão a ser dependentes da proteção dos últimos em muitos aspetos –, mas da democracia, enquanto democracia de massas, de acordo com a forma que esta assumia no regime do capitalismo democrático. Hoje, os meios para dominar as crises de legitimação através da criação de ilusões de crescimento parecem esgotados.” (2)

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A desagregação da sociedade observada por Pochmann o faz rememorar a célebre frase de Margareth Thatcher de que não existe essa tal sociedade, diz ele:

“Nós temos hoje uma sociedade em ruínas. Aliás usamos o termo sociedade, mas acredito que a tese de Margareth Thatcher venceu. Ela dizia que não existe sociedade. Existem indivíduos, famílias e empresas. Olhando o Brasil, hoje, me parece que é isso que nós temos: indivíduo, empresa, família, mas sociedade, é uma sociedade em ruínas. Se olharmos o que era a sociedade brasileira na virada dos ano 1970 e 1980, ou seja, uma ampla classe operária industrial, hoje é praticamente residual.”

A desagregação produtiva é igualmente perceptível:

“A desindustrialização foi acompanhada do desmonte de um sistema de produção. O que temos hoje é uma economia que opera como se fosse um queijo suíço. Uma economia muito dependente do exterior, um grau de integração baixíssimo, isso do ponto de vista sistêmico da produção, mas também do ponto de vista regional, territorial.”

Tentando, no entanto, evitar desesperança, Pochmann lembra que as dificuldades de outros tempos não impediram avanços: “Tenho um otimismo da perspectiva histórica. Eu tenho a preocupação de olhar para o passado e entender que já vivemos situações de desmonte de sociedades e que, de alguma forma, se reconstituíram sociedades novas. Como foram as décadas de 1880 e a de 1930, a reformulação da sociedade passada se deu em um ambiente muito mais desfavorável do que estamos vivendo hoje”.

Ainda não está aparente a inflexão que sinalizaria o início da construção de um novo arranjo, a julgar por uma das considerações finais de seu recém-lançado “A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial” é que:

“Após 7 décadas de construção de uma superior sociedade urbana industrial, consolidaram-se no Brasil, com o fim do ciclo político da Nova República, em 2016, os novos e inegáveis ingredientes regressivos da transição para uma sociedade de serviços. Do progresso registrado em torno da construção de uma estrutura social, medianizada por políticas sociais e trabalhistas desde a década de 1930 e sistematizadas pela Constituição de 1988, constata-se, neste início do século XXI, o retorno à forte polarização no interior do mundo do trabalho. (… ) O descarte social avança com mais pobreza e exclusão no interior da sociedade.” (3)

Notas:

(1) Márcio Pochmann. A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial. São Paulo: Ideias e letras, 2022 ( p. 11).

(2) Wolfgang Streek. Tempo comprado : a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.

(3) Márcio Pochmann. A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial. São Paulo: Ideias e letras, 2022 ( p. 146).

Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia

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César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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  1. A sociedade brasileira é fortemente escravista e segregacionista, jamais desejando compartilhar seu espaço, ou mesmo os espaços público-estatal nos setores de dominância, com quaisquer representantes vindos de fora do seu círculo social. Tal caracteriza sempre se opôs à construção de um projeto nacional de desenvolvimento. A evolução da sociedade por meio do compartilhamento das oportunidades, com progresso social, econômico, intelectual, etc. A falta de uma visão voltada para o próprio território onde se vive, com necessidade de crescimento pelo desenvolvimento, aprofundou essa divisão da sociedade brasileira entre os de cima e os de baixo, os incluídos e os excluídos. Os desníveis educacionais, em todos os segmentos da educação e a apropriação do ensino superior nas Universidades Públicas, retardou o País de ter instituições públicas e privadas melhor preparadas. Isso teve e tem um enorme prejuízo ao País. Certas concepções, nem permitiram que houvesse bom crescimento do que estava incluído como também não deixou o Brasil alcançar o que poderia conseguir. Sonhar com relação a produtividade e competitividade ao mesmo tempo em que a sociedade passa um processo de precarização parece meio ilógico. Enquanto alguns países tentam valorizar seus mercados internos, reduzindo pobreza, caminha-se aqui em sentido inverso, com descarte social e aprofundamento da pobreza.

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