Brasil, quem desdenha quer vender, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

É justamente o fato de o terreno ser primeiramente do país que legitima o papel do Estado como garantidor do direito de propriedade.

Brasil, quem desdenha quer vender

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

O direito de propriedade é tido por alguns incautos como inalienável. Não é no Brasil, muito menos nos Estados Unidos e menos ainda no Japão. Trata-se de uma concessão. Antes de ser uma fazenda, é Mato Grosso e, antes de ser Mato Grosso, é Brasil. Talvez seja essa cadeia o conceito mais difícil para o brasileiro entender. Para muitos de nós, a ordem está invertida, crendo-se que é justo usar e abusar de sua terra, envenenando-a, desertificando-a como se fosse um carro a ser jogado ao ferro-velho. O terreno sobre o que se construíram as Torres Gêmeas, bem como seu memorial, tinha dono e foi desapropriado pela prefeitura de New York no início dos anos 1971, aliás, com indícios de corrupção. É justamente o fato de o terreno ser primeiramente do país que legitima o papel do Estado como garantidor do direito de propriedade. É justamente por isso que é lícito lançarem-se impostos sobre a propriedade, o que não difere muito do pagamento de uma renda pelo uso individual do que é coletivo.

Ocorre que o legislador não entende a dimensão espacial dos impostos. Imaginemos que vivamos em um apartamento de quarto e sala, talvez, numa quitinete, ou, como se diz no Rio, um conjugado. Os custos de manutenção serão muito menores do que se vivermos numa mansão de 400 m² de área construída, num terreno de 2.000 m². No segundo caso, uma diarista não será suficiente para manter as coisas minimamente limpas e o casarão habitável. Serão precisos uns quatro empregados, sem contar os serviços terceirizados para limpeza da piscina e jardinagem. E quanto à segurança? Além da cerca eletrificada, será preciso contratar uma empresa com pessoal treinado e com disponibilidade 24 h/dia e sete dias por semana. É de se supor que o dispêndio seja proporcional ao espaço ocupado, mesmo que a ocupação se dê pelo direito de propriedade, não necessariamente por nossos corpos ocuparem tudo ao mesmo tempo.

O sistema tributário brasileiro não leva em conta que, para manter a Amazônia intacta, respeitando-se os interesses de todos os seres vivos que ali habitam, humanos ou não, são necessários recursos. Não há qualquer imposto cujo repasse da União aos estados ocorra pela área total. Ora, se a ocupação não gera receita e a desocupação gera despesas, por que o estado vai se preocupar com a conservação de sua superfície? A coisa vai ainda mais longe, Entenda-se o repasse do ITR (Imposto Territorial Rural). A União se encarrega da arrecadação e o repasse ocorre 100% para os municípios que, quanto maiores forem, maiores serão suas despesas, mas não necessariamente suas receitas. A coisa fica ainda mais grave quando o número de reservas naturais ou destinadas aos povos indígenas passa a ser significativo, pois elas acabam com a perspectiva de receita para os municípios onde se encontram. A ocupação, mesmo que irregular, mais cedo ou mais tarde, depois de anistiada, vai contribuir com impostos, daí políticos locais fazerem vista grossa, quando não aderindo à prática da grilagem.

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A planilha 1 foi elaborada a partir de dados fornecidos pelo portal do Confaz. Por questões de facilidade, os dados de arrecadação estadual foram anualizados entre janeiro e dezembro de 2021, estando disponíveis em valores mensais. Consideraram-se todos os impostos e transferências. As áreas foram obtidas no portal do IBGE e a arrecadação por Km² foi calculada sem ponderação. Alguns valores chegaram próximos de estarrecedores. Minas gerais, por exemplo, sendo o terceiro estado em arrecadação, é o 14º em receita por área, ficando atrás de estados tidos como muito mais pobres como Alagoas, Sergipe e Rio Grande do Norte. É que a economia está baseada na mineração e grandes áreas destinam-se à produção de hortaliças que, apesar de margem estonteante, não contribuem com um tostão de impostos estaduais. Aliás, fica claro que a baixa participação do agronegócio em geral na carga tributária brasileira é responsável por grande parte das distorções, visto que é justamente o setor que mais ocupa nosso território. Basta acompanhar a planilha 1 e verificar que todos os estados tipicamente agrícolas estão abaixo dos R$ 100 mil reais de arrecadação por Km².

O Rio de Janeiro, mesmo depois da perda de arrecadação ocasionada pelo marco do Petróleo, continua tendo a maior arrecadação por área, descontando-se o Distrito Federal. Isso se reflete no Espírito Santo, graças ao pré-sal, que se estende até lá e a São Paulo, embora a exploração, nesse caso, não pese tanto na arrecadação total.

Os números também explicam a aparente falta de empenho do estados da Amazônia para coibir as invasões, seja em áreas de proteção permanente, seja em terras indígenas. Todos os estados que compõem a Amazônia legal estão nos últimos lugares nesse ranking. Nem mesmo o Matopiba, área composta pelo sul de Maranhão e Piauí, Tocantins e oeste da Bahia beneficiaram-se tributariamente do desmatamento de vastíssimas extensões de terras. É que a agricultura de exportação que ali de desenvolve não paga impostos.

Isso só se pode resolver dirigindo-se o repasse do IPI e do ITR por área dos estados em que a arrecadação por Km² não atinja o mínimo necessário para fazer face às despesas de manutenção, seja sob o ponto de vista logístico, seja sob o ponto de vista da Natureza. Na reforma tributária, há que se criar meios para compensar os estados pela perda de arrecadação, presente ou futura, advinda das áreas de preservação permanente e/ou das destinadas aos povos indígenas. Só então os governos estaduais serão parceiros na defesa de nosso território.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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