Madrinha Eunice, a matriarca do samba paulista, por Daniel Costa

Em um ambiente marcado pelo machismo, nossa madrinha impôs sua liderança dentro da escola do Glicério e no universo do samba

Escultura Madrinha Eunice – Agência Brasil

Madrinha Eunice, a matriarca do samba paulista

por Daniel Costa

Nos últimos meses diversos veículos de imprensa noticiaram a descoberta de artefatos arqueológicos na área onde será erguida a futura estação 14 Bis da linha laranja do metrô, na região da Bela Vista, centro da capital paulista, e também a resistência de diversos moradores, frequentadores da região, estudiosos e pesquisadores que através do movimento “Mobiliza Saracura Vai-Vai” busca preservar o sítio arqueológico , a memória do local e que a futura estação tenha o nome de Saracura Vai-Vai e não 14 Bis, como aparece no projeto original. Esses artefatos foram encontrados em uma região carregada de simbolismo para a população negra da cidade. Basta dizer que segundo pesquisadores, a área em questão pertenceu ao antigo Quilombo do Saracura, ali também ficava a antiga sede da tradicional escola de samba Vai-Vai que foi demolida para dar passagem aos trilhos do metrô. Assim, mais uma vez a população negra vê seus símbolos sendo alvo da destruição em nome de um suposto progresso.

Outro fato que despertou atenção foi à discussão gerada nas redes sociais em torno da inauguração da estátua em homenagem a Deolinda Madre, a madrinha Eunice, figura de destaque no samba de São Paulo e fundadora da Escola de Samba  Lavapés na região do Glicério. A escolha do Largo da Liberdade para a fixação do monumento gerou críticas por parte alguns grupos que enxergam a região apenas como bairro oriental, desconsiderando o seu passado de raízes negras; antes mesmo da inauguração da estátua em homenagem a Madrinha Eunice, tais críticos poderiam identificar parte desses vestígios ao visitar por exemplo, a Igreja dos Enforcados, que resiste fincada entre o constante assédio da especulação imobiliária que insiste em construir novas edificações em seu entorno, sufocando cada vez mais a humilde igreja, como se quisessem também sufocar os vestígios de uma população que ocupou por décadas aquela área.

Diante dessas iniciativas que buscam ocultar personagens e memórias que fogem a padrões preestabelecidos dentro de uma narrativa hegemônica, cabe trazer ao leitor tais memórias, sejam em relação aos lugares, ou os próprios personagens. Assim, trazer para o grande público a trajetória de uma figura ímpar como Madrinha Eunice, surge como questão fundamental, pois se no Rio de Janeiro o samba tem como sua matriarca a baiana Ciata, São Paulo tem em Deolinda Madre a representação da força da mulher no samba.

Nascida na cidade de Piracicaba em 1909, Deolinda, filha de negros alforriados muda com a família para a capital ainda criança, fincando raízes na região da Liberdade, onde viveria até falecer em 1996, aos 87 anos. Estudando apenas até o quarto ano, ainda criança Deolinda começou a vender frutas na região central, chegando quando adulta a possuir quatro barracas grandes pela região, fato que contribuiu para o estreitamento de seus laços com a comunidade, resultando mais tarde na grande influência que teria no universo do samba. Frequentadora das festas religiosas e dos festejos carnavalescos, foi após acompanhar o carnaval no Rio de Janeiro em 1936 que decidiu ao lado do seu irmão, Zé da Caixa, e do então companheiro Chico Pinga, e os  cunhados Pérsio, Osvaldo e Mário, fundar a Lavapés, aquela que seria a escola de maior importância na capital, ao menos até o final da primeira década do Século XX, ocupando  depois o importante papel de grande mãe das demais escolas de São Paulo.

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Segundo o compositor e pesquisador Osvaldinho da Cuíca, “nos primeiros desfiles, que saiam da rua Galvão Bueno, a Lavapés comportava-se exatamente como um cordão, com balizas e estandarte e sem enredo, samba-enredo, mestre sala e porta bandeira e outros requisitos de uma escola de samba”. Ainda de acordo com Osvaldinho, apesar de carregar o nome de escola de samba, sua estrutura era muito mais próxima dos cordões que das escolas, quando comparadas as agremiações cariocas. Era perceptível também a nítida influência do samba de Pirapora na Lavapés, pois Chico Pinga e Madrinha Eunice eram frequentadores assíduos das festas do Bom Jesus e costumavam trazer de lá grandes batuqueiros.

Em seu livro Batuqueiros da Paulicéia, Osvaldinho afirma que, “o auge da Lavapés se deu nas décadas de 40 e 50, quando foi um dos exemplos mais bem acabados do carnaval paulista, tanto do ponto de vista musical, quanto do visual”. A importância da Lavapés e da liderança de Eunice pode ser medida também pela quantidade de sambistas que tiveram sua formação nas batucadas do Glicério; entre os mais conhecidos podemos lembrar figuras como o cantor Germano Mathias, seu Carlão, que viria a fundar a Unidos do Peruche, Silval Rosa, fundador da Império do Cambuci, o apitador Geraldão que viria a formar a dissidente Rosas Negras, o também apitador Bolão que viria a criar a Brasil Moreno e o grande Mestre Feijoada que deixaria sua marca no Vai-Vai.

Apesar de ser católica devota, frequentando anualmente as festas de Bom Jesus em Pirapora e participando das novenas, rezas e festividades na paróquia local, Madrinha Eunice era versada e escolada na quimbanda, daí o fato da intrínseca ligação entre a escola e o Exu Veludo, entidade cultuada por Eunice e que seria fundamental para a proteção da agremiação.

Segundo Rosemeire Marcondes, neta de Madrinha Eunice e presidente de honra da escola, hoje rebatizada como Lavapés – Pirata Negro e presidida pelo ator e ativista cultural Ailton Graça, temos em sua figura a representação não apenas de uma, mas de várias mulheres negras que no começo do século tomaram para si o protagonismo em diversas frentes; seja no samba, na religiosidade e na família. Nas palavras de Rosemeire, “ela foi um dos baluartes do samba paulista, a primeira mulher negra, independente, a ter o protagonismo na linha de frente de uma escola de samba, Madrinha Eunice foi uma mulher a frente do seu tempo, na década de 1930, época de Getúlio, da ditadura, ela lutou, lutou, buscou seu espaço e conseguiu o reconhecimento devido”.

Em um ambiente marcado pelo machismo, nossa madrinha impôs sua liderança dentro da escola do Glicério e no universo do samba, sendo a única mulher a figurar na lista daqueles que ficariam na memória da paulicéia como os cardeais do samba. Além de Eunice, o grupo era formado pelos seguintes nomes do carnaval paulistano: Carlos Alberto Alves Caetano, o Seu Carlão do Peruche, o último cardeal ainda vivo (Unidos do Peruche), Inocêncio Tobias (Camisa Verde e Branco), Sebastião Eduardo Amaral, o Pé Rachado (Vai-Vai), Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê (Nenê de Vila Matilde) e Benedito Nascimento, o Xangô de Vila Maria (Unidos de Vila Maria).

Ainda poderíamos destacar outras faces de Madrinha Eunice, porém nada melhor que encerrar esse pequeno perfil com as palavras de sua neta Rosemeire, destacando o papel desempenhado por essa figura única do samba e da cultura paulista. Madrinha Eunice, “ensinou muito para as mulheres, que se pode viver sem precisar de ninguém, cuidando de seus filhos, da família, com bastante luta e tranquilidade”.

Que a estátua colocada no Largo da Liberdade, seja apenas o começo do processo de resgate da trajetória dessa personagem, uma das pedras fundamentais na construção do samba de São Paulo.

Daniel Costa é historiador pela UNIFESP, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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