Milton Nascimento, o culto do mistério e o show inesquecível da despedida, por Luis Nassif

A música surge como um farol brilhante em cada período cinzento da história, apontando os rumos da nacionalidade

Já assisti a muitos shows inesquecíveis. A última turnê de Tom Jobim, uma das últimas de João Gilberto, a família Caymmi nos anos 90. E o show Tambores de Minas, de Milton Nascimento.

Em cada período cinzento da história, a música surge como um farol brilhante, apontando os rumos da nacionalidade. Foi assim no último show de Chico Buarque, em pleno desmonte institucional do país, ou da família Caymmi, após o terremoto Collor.

Em cada um deles, a alma brasileira invadia o palco, se espalhava pelo público, deixando a certeza de que um país que produzia aquela música não poderia desaparecer.

Ontem, no enorme Espaço das Américas, duas mil pessoas de todas as idades se juntaram para assistir o Clube da Esquina, provavelmente o show de despedida de um dos pais da chamada MPB. Duas mil pessoas cantando em coro as principais composições de Milton, balançando, se irmanando na música mágicas que emerge dos tambores de Minas e se espalha pelo país.

Milton, Chico, Caetano e Gil, secundados por Ivan Lins, João Bosco e Djavan, foi o time que sucedeu a brilhante geração da transição para o moderno, a geração de Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra.

Eles foram o tronco principal, a árvore que foi sendo enriquecida por galhos de todas as partes, os filhos do Clube da Esquina, a geração dos cantadores líricos do Nordeste, o som que surgiu do centro-oeste e do interior de São Paulo, a música gaúcha.

Muitos anos atrás, depois de uma crônica com que o homenageei, recebi um e-mail de Milton, propondo um depoimento sobre o que passou na ditadura. Por alguma razão, o projeto não foi adiante. Fez parte do seu culto do mistério.

Ontem, enquanto os céus do país escureciam com enunciados nazistas, a multidão cantava Milton e mostrava que terraplanismo nenhuma derrotará a alma brasileira.

Aqui, a crônica com o que o saudei em fevereiro de 2003.

O culto do mistério

O arranjo começa com acordes de sopros, seguidos por celos ao fundo. Algumas notas ficam presas aos celos, como ecoando no fundo da memória. Depois da introdução, entram os sons cadenciados de um violão e de um piano preparando a entrada dos demais instrumentos. Quando a música inicia, piano, oboés, flautas, celos se juntam, tal qual Leo Peracchi ensinou. O arranjador é o discípulo Eumir Deodato, o gênio precoce que cedo nos abandonou por uma carreira vitoriosa nos Estados Unidos.

Do meio das cortinas sonoras, emergem duas das maiores vozes da música brasileira, Milton Nascimento e Elis Regina, renascida na voz da filha Maria Rita Mariano.

A música “Tristesse” (Milton Nascimento e Telo Borges) não é para ser ouvida sóbrio. Faz parte do CD “Pietá”, o último lançamento de Milton e mostra o gênio no auge da sua força criativa, em uma das mais lindas músicas brasileiras de todos os tempos. Pensei cá comigo: o criador não morreu.

A primeira vez que vi o mestre pessoalmente foi muitos anos atrás, lá para o início dos anos 90, ele à beira de uma piscina em um hotel de Angra dos Reis. Cheguei devagar, para pedir a benção. Sua timidez aguçou a minha, balbuciei alguma coisa daqui, ele resmungou outra dali e bati em retirada.

De longe, fiquei observando o negro tímido, fechado em copas, que parecia fera acuada quando qualquer pessoa tentava romper sua intimidade, ou ao menos dar um alô. À noite, no show que apresentou, parecia um dínamo. Os baianos haviam redescoberto os ritmos transcendentais do país. Mas o que Milton Nascimento produzia naquele palco de hotel ia além. O meu batimento cardíaco, pelo menos, passou a funcionar de modo estranho, como se a batida do coração tivesse sido capturada pela pulsação dos ritmos que vinham do palco. Na platéia, de uma moçada de 15 anos a cinquentões, todos pareciam hipnotizados pela eletricidade que emanava do palco.

Na manhã seguinte, Milton não apareceu na piscina. Deixei de lado a economia, a palestra que iria preparar, e fiquei imerso em indagações, tentando adivinhar os mistérios, a história que haviam moldado aquela energia, o sofrimento que, às vezes lamento, às vezes explosão, produzira a mais significativa obra da música brasileira, pós Tom Jobim.
Não consegui, ninguém conseguiria decifrar o culto do mistério de Milton.

Depois, veio a doença, a perspectiva do fim, a quase despedida com os “Tambores de Minas”, a recuperação, o show histórico com Gilberto Gil. A cada novo lançamento, por conta do que escrevi sobre ele, o mestre me manda um exemplar autografado com palavras de carinho discreto, próprias dos de Minas. E a cada encontro casual, como no Festival de Avaré, em que se homenageou os 25 anos do Clube da Esquina, o bloqueio da dupla timidez sempre impede mais do que um “tudo bem?”.

A música inicial do CD, “A Feminina Voz do Cantor”, de Milton e Fernando Brandt, revela parte do mistério. “Sem as vozes que ele ouviu / quando era aprendiz / como pode sua voz ser uma Elis?”.

No “Pietá”, o mestre mergulha no passado, cutuca as feridas, sugere parte da história. Na contracapa, sua homenagem à mãe de criação, a mulher que lhe trouxe os sons das cantoras que moldaram sua voz, conta pouco, porque contar mais não é necessário. “Eu que nasci no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, fui levado de volta à Minas, terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um garoto de pouco mais de um ano e fui recebido com muito carinho pela minha família, mas alguma coisa dentro de mim havia se partido, e sangrava. Pietá, para mim, é minha mãe de criação Lilia que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio me socorrer. Foi ela quem cuidou de mim e continuou a cuidar por toda a vida, junto com meu pai Josino”.

O véu se levanta pouco, e volta a se fechar. E, no duo de Milton e Elis Mariano sobressai o vulto de dona Lilia, guiando o cantor maior pelas fendas e sombras da vida, para o destino dolorido e complicado que o mundo reserva para os gênios, e Minas relega os seus.

 

 

 

Luis Nassif

14 Comentários

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  1. Nassif você é demais!! Sempre se superando e buscando o que há de melhor na alma de nós, brasileiros. Grande admiração pelo seu trabalho, comprometimento com as mais nobres causas e combatividade!

  2. As vezes fico pensando..
    Como um genial.como.Milton , Ivan Lins, Beto Guedes, Brant, Flavio Ve turinne pode ser comparado.com o desafinado, chato e com músicas limitadissimas como Chico Buarque? Nada,os mineiros e nordestinos como Gil deveriam estar.em outra prateleira musical, mas os pseudos críticos insistem em coloca Los juntos, Chico e só Chico, como o genro dele que veste um chapéu ridículo pra ser jurado na Globo, Chico e assim, só fez algum sucesso.por causa da.globo, e ruim mesmo, e este crítico também. E Ruim.

  3. Chico não é nada? Pelo amor de Deus. Até Elis Regina gravou Chico. Ele não é cantor, é compositor. Seria o mesmo que dizer que Lupicinio Rodrigues ou Cartola não foram nada na música brasileira.

  4. No fogo de agora, 18/01/2020, às 13:15, o corpo da floresta estala de dor. Seus ossos moldados em galhos, folhas e raízes está crepitando, e a fumaça lança fuligem assemelhada à neve caindo acesa em vermelho neon, são lágrimas vermelhas, que sobem e caem como um véu, uma mortalha ensaguentada, cor de sangue. Ouço os gritos em milhares de estalidos. Sua gente, os índios. Seus carinhos, os animais. Suas veias, seus rios. Todos estão mortos.

    A tribo Ava Canoeiro foi dizimada há décadas atrás:

    https://www.youtube.com/watch?v=rKrTEQiK8_w

    Canoa, canoa
    Milton Nascimento

    Canoa canoa desce
    No meio do rio Araguaia desce
    No meio da noite alta da floresta
    Levando a solidão e a coragem
    Dos homens que são
    Ava avacanoê
    Ava avacanoê
    Avacanoeiro prefere as águas
    Avacanoeiro prefere o rio
    Avacanoeiro prefere os peixes
    Avacanoeiro prefere remar
    Ava prefere pescar
    Ava prefere pescar
    Dourado, arraia, grumatá
    Piracará, pira-andirá

    Jatuarana, taiabucu
    Piracanjuba, peixe-mulher

  5. Boa tarde Nassif. Não pude ir ontem na despedida com ele e mais tantos azes….mas em abril 2019 estive no Show dele, tb no Espaco das Américas, e posso dizer que foi assim misterioso, potente.
    Alento pra seguir em vida não mendigada, mas musicalmente vivida na voz nas letras e tambores: coração sempre.

  6. Por que provavelmente esse foi o show de despedida de Milton? Não li nada a esse respeito. Que eu saiba é o show de despedida da tour Clube da Esquina – que eu até havia assinado ano passado em Jaguariuna – mas não a do próprio, que eu saiba. É visível a dificuldade de locomoção de Milton e a voz que já não é tão mais forte assim mas nada que impeça que seu show continue sendo um evento especial pra quem o prestigia. Mas, despedida do Milton…..

  7. Milton e Ivan são geniais. Porém, colocar Beto Guedes e Fernando Brant no mesmo time e colocar a todos acima de Chico, só pode ser uma coisa: vc está esquecendo de tomar seus remédios!

  8. Para quem gosta de boa música foi ao lugar certo. Lindo show!! Fui ontem e me emocionei à cada música e à cada convidado.
    Viva a nossa querida Música Popular Brasileira!!! Viva Bituca!!!

  9. Que texto lindíssimo, esse, Nassif. Nossa…emocionou, lavou minha alma. Por tudo que vc disse do Milton, com tanta delicadeza, brilho e essa reverência que vc ( assim como milhões de nós ) tem por seu gênio musical. Mas foi lindo, quando vc reflete, e diz que um país que produz, que tem essa música, não pode desaparecer e, depois, quando vc arrasa de vez :
    ” Ontem, enquanto os céus do país escureciam com enunciados nazistas, a multidão cantava Milton e mostrava que terraplanismo nenhuma derrotará a alma brasileira”. Obrigada, valeu demais !

  10. Milton seria um dos maiorais do mundo, fosse europeu ou norte americano. É sempre difícil responder quem é o melhor cantor de todos os tempos, mas não é Milton, porque Milton é uma entidade e não um cantor. Por muitas vezes eu peguei o trem azul na minha imaginação, com o Sol na cabeça, saindo da minha Santos beira-mar até o mar de montanhas de Caldas (terra do Fernando Brant) pelo amor que sinto por Pocinhos do Rio Verde, ao som de Milton, Lô e Beto.

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