Divergente, o filme

Ontem fui ver o filme Divergente http://pt.wikipedia.org/wiki/Divergente_(filme) . Não li o livro, portanto, todas ilações que farei aqui se baseiam na versão cinematográfica.

 

A primeira coisa evidente no filme é a sua temática: rito de passagem, utopia social pós-moderna, medos, sexualidade e rebeldia adolescente.

 

Sobre os ritos de passagem, Kaj Birket-Smith afirma que:

 

“Para os povos primitivos, como para nós, a passagem da infância à idade adulta é o acontecimento mais significativo, que muitos festejam duma maneira particular. Dá-se maior realce ao fato social que ao fato biológico da puberdade. Faz-se ressaltar involuntariamente nessas cerimônias de iniciação esse aspecto da vida social que caracteriza a vida adulta. Graças aos padres Gusinde e Koppers, sabemos como se passa essa cerimônia  em um dos povos mais primitivos da erra, os Yamana da Terra do Fogo. Souberam penetrar a mentalidade desses índios e acompanharam eles próprios, toda a cerimônia do começo ao fim. O tema principal é um ensino sistemático das tradições da tribo.” (História da Cultura, volume 2, Edições Melhoramentos, página, 68).

 

Um pouco mais adiante, Kaj Birket-Smith esclarece:

 

“Não somente as provas de virilidade propriamente ditas, mas os ritos de iniciação em geral são clara e fortemente marcados de sexualidade. A mentalidade masculina se manifesta através dessas diversas cerimônias. Seu centro de interesse é a admissão na sociedade dos homens. Somente entre as tribos mais primitivas, como os Yamana, é que é permitido às mulheres tomarem parte em qualquer cerimônia. A grande difusão desses ritos de iniciação, precisamente entre povos muito primitivos, fez ressaltar sua grande antiguidade. Entretanto, quando o Padre Schmidt dez que germes desses fatos se encontram entre eles nos níveis de cultura muito primitivos, não se lhe pode dar inteiramente razão. Não há traço algum disso, entre outros, por exemplo, nos povos polares e nos nômades da estepe, mau grado o fundo extremamente primitivo de sua cultura.

Já foi dito que os rituais de iniciação se continuam manifestamente com a admissão nas classes de idades e nas sociedades secretas. Essas instituições se acham perfeitamente identificadas com as sociedades matrilineares. Isto explica que, nessas sociedades, instituições de caráter tão manifestamente masculino como os rituais de iniciação, degeneram e alteram seus caracteres. Em seu lugar, aparece por vezes uma série de costumes associados à puberdade da mulher. Para as mulheres, a puberdade se manifesta mais corporalmente que entre a juventude masculina. Para a mentalidade primitiva as menstruações são algo de místico e de perigoso. Quase por toda parte encontramos a mulher submetida a prescrições muito rigorosas, tanto tempo quanto dura este estado crítico. Não se deve, na maior parte do tempo, comer com os outros; devem abster-se de certas comidas, dormir numa cabana especial e evitar o mínimo contato com a caça ou o gado.” (História da Cultura, volume 2, Edições Melhoramentos, página, 70)

 

Em sociedades modernas como a nossa, mesmo que tenham sobrevivido (tese de Kaj Birket-Smith) os ritos de passagem não são tão dramáticos, nem tampouco constituem uma obrigação social. Católicos e judeus tem ritos de passagens elaborados, mas as quase todos Estados modernos são laicos e garantem liberdade de consciência e de religião, de maneira que ninguém pode ser forçado a adotar esta ou aquela crença ou passar por este ou aquele rito de passagem religioso. O mesmo pode se dizer das sociedades secretas, cuja adesão é facultativa nunca imposta. Atualmente, o vestibular funciona como uma espécie de rito de passagem, mas por sua própria finalidade e natureza ele tem que ser aberto a qualquer pessoa de qualquer idade. Portanto, as provas para admissão na Universidade não constituem uma cerimônia concebida e desenhada exclusivamente para introduzir os adolescentes no universo adulto.

 

O mesmo não se pode dizer de filmes como Divergente. Por intermédio da ficção, o filme como que submete o adolescentes a um rito de passagem estético-simbólico (literário no caso do livro) para suprir a absoluta ausência de ritos de passagem em nossas sociedades modernas e laicas em que cada qual tem que encontrar sozinho seu lugar no mundo adulto. O adolescente, que  não sabe como fazer isto sozinho, pode aprender o que é necessário vendo o filme. Nas sociedades primitivas o rito de passagem, que é compulsório e por vezes dramático, fornece ao adolescente um caminho. E é justamente um caminho que o filme Divergente pretende oferecer aos adolescentes. Isto fica muito claro, por exemplo, quando a jovem heroína revela seu medo de fazer sexo com o parceiro e o rejeita sendo aplaudida porque passou no teste.

 

A interdição religiosa da sexualidade fracassou. Os Estados modernos não podem proibir os jovens de fazer sexo e este traz consigo a reprodução indesejada juvenil e os problemas relacionados à mesma (rejeição familiar, abandono paterno da criança, redução das possibilidades educacionais da mãe e seu insucesso econômico, pobreza, crianças abandonadas, vício na infância, criminalidade, etc…). A sugestão fictícia dada no filme Divergente da rejeição do sexo juvenil socialmente premiada, pode não ser muito convincente (o incentivo ao uso da camisinha é bem mais eficaz), mas pode poupar algumas garotas de muito aborrecimento. No limite, a fã pode dizer para si mesma que fez igual a heroína do filme. E neste caso o rito de passagem estético-simbólico teria cumprido sua finalidade.

 

A utopia descrita no filme parece vagamente inspirada no sistema de castas ou varnas indianas. Na Índia os brâmanes (sacerdotes e estudiosos), xátrias (guerreiros), vaixás (mercadores e artesãos) e sudras (trabalhadores manuais) compõe ainda hoje sociedade imutável em que a inserção social se dá não pelo mérito ou escolha e sim pelo nascimento. Todavia, alguns textos antigos, que perderam autoridade por mesquinhas razões econômicas, autorizam a mobilidade entre as varnas. Na utopia fílmica Divergente os nascidos numa tribo podem deixá-la.

 

A complicação que impulsiona a narrativa no filme é própria das sociedades sem mobilidade. Sobre o assunto diz Alan Beattie:

 

“… depois que as sociedades se ordenam segundo um padrão especifico, muitas vezes podem ficar presas nesse padrão. Uma vez estabelecido o sistema de castas, teria sido necessário uma enorme quantidade de coragem e energia politica para sair dele. Para estabelecer uma nova comunidade sem castas, um líder de casta mais baixa teria que persuadir alguém de casta mais alta que tivesse ad habilidades complementares necessárias (como um alto nível de educação) a também romper o código.” (Falsa Economia, Zahar, 2010, página 141).

 

O filme parece criticar o sistema político bi-partidário norte-americano que dificulta a ascensão ao governo de líderes genuinamente populares, reduzindo o estimulo a verdadeira mobilidade social. Divergente também proporciona alguns insights interessantes que ajudam a explicar o vigoroso rejuvenescimento político e econômico do Brasil ocorrido a partir do momento que uma parcela da intelectualidade e da elite industrial do país se aliou ao líder operário que ajudou a destroçar a Ditadura ao comandar greves operarias massivas na indústria metalúrgica e automotiva.

 

Um aspecto interessante do filme é a desconstrução da utopia. No princípio do filme tudo parece funcionar perfeitamente naquela sociedade utópica. Cada tribo tem sua obrigação (produção de alimentos, governança abnegada, solução de conflitos, segurança e erudição) e a realiza em benefício do todo social. Os jovens personagens passam pelo rito de passagem e são enviados para suas respectivas tribos. Ao chegar no seu destino eles descobrem que as coisas não funcionam exatamente como deveriam.

 

A tribo dos governantes é questionada pelos eruditos e soldados. Um golpe de estado é tramado em segredo e vai sendo descoberto. Há pessoas que não se ajustam bem às tribos que pertencem. Há aqueles que são descartados pelas tribos que adotaram e se tornam párias em razão de não poderem retornar à tribo em que nasceram. A crueldade substitui a coragem e a perversidade substitui a erudição, obrigando a governança abnegada a reagir de maneira violenta. O casal de jovens heróis consegue derrotar a tirania da força irrefletida aliada à perversão intelectual, mas ao custo de se tornarem párias.

 

Os párias de hoje foram os heróis que ontem salvaram a sociedade da ruína e do caos? Esta parece ser a verdade subterrânea não contada aos jovens naquela utopia pós-moderna retratada em Divergente. Mas não se enganem. Esta também é uma verdade nos EUA (cuja geração de 1960 derrotou politicamente a guerra do Vietnã ou participou dela, mas que hoje é amplamente rejeitada pelos jovens que apóiam as novas guerras neo-coloniais norte-americanas ou não tomam conhecimento das mesmas)  quanto ao Brasil (onde a geração que derrotou a Ditadura está sendo cruel e sistematicamente atacada pela imprensa em razão das preferências eleitorais dos barões da mídia). O filme Divergente sugere aos jovens que prestem mais atenção aos párias. Por mais que estejam na situação lamentável em que se encontram, eles fizeram a história daquela sociedade utópica assim como as respectivas gerações de 1960 fizeram a história política dos EUA e do Brasil.

Um bom filme que vale o ingresso. Indico especialmente para os adolescentes.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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