Balanço do golpe II, por Guilherme Scalzilli

por Guilherme Scalzilli

A base parlamentar

A causa direta do golpe foi o desmoronamento do apoio a Dilma Rousseff no Congresso Nacional. O desgaste começou com o fracassado projeto de criar um “centrão” via PSD, ganhou cores vingativas após a chegada de Eduardo Cunha à presidência da Câmara e virou conspiração quando Michel Temer o substituiu no comando dos insatisfeitos.

Politicamente inapta, inflexível e mal assessorada, Dilma não soube (e em boa medida não quis) aplacar as pressões do fisiologismo. Suas concessões programáticas pouco aliviaram o problema, pois a aparência entreguista dos ministérios tenebrosos escondia uma relação esquizofrênica e autodestrutiva com as bases partidárias.

O triunfo reativo do pemedebismo ilustra os limites dessa ideia de governabilidade imanente, capaz de seduzir o baixo clero e as lideranças regionais com brioches burocráticos. Uma ingenuidade compartilhada pela esquerda antipetista, Marina Silva inclusa, que finge não ver os obstáculos intransponíveis a seu purismo retórico.

As manifestações pró-impeachment, o catastrofismo econômico e as ameaças cirúrgicas da Lava Jato criaram ambiente propício à debandada parlamentar. Mas as animosidades poderiam ter sido contidas, ao menos em curto prazo, através de boas articulações envolvendo os interesses eleitorais que dominaram o ano legislativo.

Cunha e Temer usaram tais demandas para canalizar os ânimos revoltos. Divulgando manifestações que o aproximavam do cargo presidencial, Temer empoderou-se como “pacificador” da base. Seu único obstáculo seria a entrada de Lula no governo. Tão logo isso ficou evidente, vazaram ilegalmente as gravações já ilegais de Sérgio Moro.

O impeachment foi um golpe parlamentar tradicional, quase ortodoxo na sua simplicidade. O esforço para naturalizá-lo (“é do jogo”) não o legitima, pelo contrário. Apenas destaca a sua importância como dispositivo de autopreservação de uma estrutura antidemocrática por natureza.

A série “Balanço do golpe”:

Introdução

http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/2016/09/balanco-do-golpe-ii.html

Redação

4 Comentários

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  1. Vazar seria a solução….

    Temer vazará breve, não suportará a altíssima  pressão proveniente da fisiologia de partidos e da mídia que o apoiaram no golpe. 

  2. Balanço do golpe I
    A viabilização do golpe se deu no âmbito estratégico. O impeachment representou uma confluência de elementos que foram se articulando ao longo dos últimos três ou quatro anos, nem sempre de forma planejada, mas partindo de setores com o mesmo interesse. Nesse sentido o governo petista contribuiu com a própria tragédia, como um jogador que planeja mal seus movimentos e subestima as manobras adversárias. Isso diz respeito a uma esfera pragmática da atividade política, onde ideais, plataformas e mesmo realizações ocupam lugar lamentavelmente secundário. http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/2016/09/balanco-do-golpe-ii.html

  3. O voto torto e o suplente oculto

    O formato de eleição para senador, na eventualidade em que há duas vagas por Estado – como será agora em 2018, exige dois votos para senador, da parte do eleitor. O sistema eleitoral cria aqui uma figura eleitoral curiosa que, historicamente, tem conseguido perpetuar as oligarquias no comando do senado e, a través do senado, o comando efetivo do Brasil. O formato é esperto e garantidor, assim como nos EUA, que naquela carreira de obstáculos cheia de votos de representantes, de super-representantes, e etc., fazem que esta gincana eleitoral termine obrigatoriamente apenas com candidatos Democratas contra Republicanos, num clássico Caprichoso contra Garantido, há mais de 200 anos.

    A eleição de senador, ao exigir dois votos do eleitor, obriga a este, quando tem convicção política, rifar o outro voto para o “menos pior”. Quando não tem convicção, vota naqueles mais conhecidos e divulgados pela mídia, para “não perder” o seu voto. Ganha sempre a direita e o poder econômico (é só analisar estado por estado). Ainda, como vimos ao longo das últimas eleições, o PT, candidamente, trocou em favor do seu candidato a Presidente aquele voto paralelo, pelo Senador ou Deputado, nos seus eventuais aliados. Deu no que deu: o PT ganha mais não leva nada.

    O resultado é aquele que recentemente observamos, outorgando inadvertidamente o verdadeiro poder para aquela turma golpista que hoje tomou conta do Brasil. De que adianta escolher Presidente, com milhões de votos, se o outro voto se escorrega pela esperteza regimentar dos poderes paralelos. No recente impeachment observamos que, por exemplo, no Estado de Alagoas, onde Dilma ganhou com 62% dos votos, todos os três senadores são representantes de oligarquias, e todos os três golpistas. O mesmo em Minas Gerais, onde não apenas Dilma ganhou do Aecim, mas que escolheu o seu Governador do PT, mas, os três senadores são da base do Aécio e votaram pelo impeachment. Qual representação política é essa? Alagoas queria isso? Minas Gerais queria isso?

    O sistema “democrático” garante o poder a quem sempre mandou no Brasil, mesmo com eventual Presidente progressista, pois este sempre foi tutelado pelo verdadeiro poder paralelo.

    Para conferir maior legitimidade nas escolhas para o Senado Federal, é necessário que seja determinado que nas eleições que estiverem em disputa duas vagas para o Senado, o eleitor vote em apenas um candidato, sendo eleitos os dois candidatos mais votados. O suplente não devia nem existir, pois o senado pode perfeitamente trabalhar com alguns senadores a menos. Quando a necessidade é por falecimento ou algo assim, é só colocar mais uma vaga no estado pertinente, e disputar na eleição seguinte. Hoje é um escândalo ver parentes e/ou amigos ocultos na vaga de suplente de senadores bons de voto, e que se acham donos do cargo.

    Essa maioria parlamentar circunstancial substitui os 54 milhões de votos recebidos por Dilma em 2014, e implanta no Brasil uma agenda que foi rejeitada, na mesma eleição.

    1. De onde sai essa representação porca?

      Excelente, Alexis. Faz tempo que queria abordar exatamente esse assunto, a representação porca no Congresso. E de onde sai isso? Como é possível o estado de Alagoas mandar para o Senado Renan Calheiros, Benedito de Lira e Fernando Collor? Todos representantes de oligarquias políticas e canavieiras? Aquele eleitor lá do sertão alagoano, renda máxima de 500,00/mês, votou neles. Como assim? Ele se sente representado por eles? O mesmo se dá em Minas Gerais. A começar que elegeram um moribundo, o Itamar Franco, que morre antes de 6 meses no cargo, e assume o suplente, Zezé Perrella, e temos ainda Aécio e Anastasia. Aquele mineirinho do norte de Minas, da região inserida no  polígono da seca votou neles. Por que? Antes de responder, vamos ao caso do Amapá.

      O estado do Amapá deu 3 mandatos consecutivos (24 anos, 1/4 de século) ao José Sarney. Desafio alguém a mostrar uma única foto do Sarney fazendo campanha no Amapá, subindo e descendo de aviões monomotores, subindo e descendo rios de barcos, desembarcando em comunidades ribeirinhas pedindo voto, fazendo comícios em cima da carroceria de caminhão. Como ele passou 24 anos no Senado sem fazer isso? Quem deu votos para ele, se nunca apareceu no Estado? É onde entra a importantíssima figura do vereador. Exemplo real e concreto: 

      Dona Maria da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) mora numa cidade do Pará, localizada na margem esquerda do rio Amazonas. Ela se destaca na sociedade local, tem um emprego público, renda certa todo mês, muito acima da média da cidade (cerca de 1.200 líquidos, em 2006). Ela vai até ao BB “arrumar sua vida” antes de viajar ao interior de MG para visitar a filha. Ali, ela diz o motivo da viagem, o cara do Banco pergunta se quer aumentar o limite do cartão, empréstimo consignado, essas coisas. E diz, orgulhosa, que já comprou e pagou a passagem de avião de Belém a Belo Horizonte. Estranho, tem avião ali pertinho, 8 horas de barco, em Santarém, por que embarcar em Belém, 3 dias e 3 noites na rede? É que eu não pago a passagem de navio, explica ela, o vereador Fulano tira pra mim. Explica-se: o deputado estadual Antonio Rocha é dono do navio (850 passageiros) Amazon Star, que faz a linha Belém/Manaus. O vereador é o preposto do deputado na cidade, cabo eleitoral. Dona Maria explica: lá em casa são 9 votos. Que ela entrega direitinho ao vereador. 

      Dona Maria é Lulista de coração e alma. Porém, dentro da sua inocência e nenhum conhecimento dos meandros da política, ela sequer faz ideia de que aqueles nomes para deputado federal e senador que o vereador Fulano coloca na mão dela são inimigos do seu querido Lula. Congresso, Brasília, são coisas muito distantes para ela. O seu problema é doméstico, paroquial, o vereador arruma as passagens para ela quando precisa. O vereador não interfere na escolha do Lula/Dilma, ele não faz questão, não interessa, o que interessa é quem bota o dinheiro na mão dele, o deputado estadual. É ele quem irriga os vereadores do interior do estado, que por sua vez, garantem a própria eeleição e a do financiador. Dona Maria sabe que para continuar merecendo a confiança do vereador, tem de entregar direitinho seus 9 votos (eu, meu velho, meus filhos, noras e genros, explica ela), numa cidade onde vereadores se elegem com 500/600/700 votos. 9 votos contam muito. É uma relação de cumplicidade. 

      É o que sempre fez o Sarney. Lá de Brasília, mandava 50 mil (por hipótese) para cada vereador e esperava o resultado. O Amapá  é pequeno, poucos municípios. Exemplo: Em Vitória do Jari, Sarney teve 6.396 votos, ou 69,63% do total da cidade, em 2006, sua última eleição. Em Tartarugalzinho, 4.846 votos, ou espetaculares 72,56% dos votos da cidade. Quem vota no Sarney? A elite da cidade, certo? Errado, a menos que se acredite que em Tartarugalzinho 72,56% dos eleitores pertençam à elite. Foram eleitores miseráveis, comandados pelo vereador, devidamente “irrigado” pelo Sarney. O mesmo se dá em Alagoas, como pode um usineiro – Benedito de Lira – ter votos em todo o estado, da capital ao interior, dos eleitores miseráveis? Porque os eleitores miseráveis entregam seus votos para quem os socorre nas necessidades, o vereador, na porta de quem eles batem quando precisam. O vereador está ali, à mão, ele não vai se socorrer com o deputado federal ou o senador.

      Quando o rio Amazonas teima em subir além do seu normal, cerca de 8 metros, os ribeirinhos ficam desabrigados e vão para a cidade. Eles precisam de uma rede para dormir. Vão bater na prefeitura, que nem sempre socorre, e na casa do vereador. Que socorre na compra na farmácia e no mercado. É o que explica ganhar a presidência e ser fragorosamente derrotado na Câmara e no Senado. Seria demais exigir que eleitores dos fundões e grotões do País ainda tenham de entender do jogo político de Brasília.

      O mesmo vereador que socorre dona Maria com a passagem de navio, um dia entra no boteco onde está o cara do Banco. E começam as lamúrias e as agruras de ser vereador, as dificuldades, o assédio dos eleitores na porta de casa, sempre com uma receita médica na mão, pedindo ajuda para os remédios, a rede, etc. E confessa, inocente e candidamente, que juntou todos os comprovantes e bateu no gabinete do prefeito, adversário/inimigo político, para pedir uma “ajuda” com as despesas, pois o salário de R$ 3.000,00 (2006) não dava para nada. E justificou “…nós precisamos dele e ele precisa de nós”. O prefeito negou. Poucas semanas depois, em uma festa tradicional e anual na cidade, o assunto/novidade era o reatamento de relações pessoais e políticas entre o vereador e o prefeito, vistos entre beijos e abraços. Chegaram a um “acordo”.

      É isso que ajuda a explicar essa representação porca que temos no Congresso. O problema começa lá, no vereador. Um partido/governo sem vereadores está fadado a ser emparedado no Congresso. Se o PT sobreviver, o que não acredito, tem de começar elegendo vereadores, em 2020. Muitos, para romper esse círculo vicioso. 

       

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