Um ônibus cheio como metáfora do governo Bolsonaro: manifestações do fascismo popular, por Arnaldo Cardoso

A ordem deve ser mantida, ainda que seu condutor, um motorista de ônibus ou um Presidente da República, conduz todos ao abismo.

Um ônibus cheio como metáfora do governo Bolsonaro: manifestações do fascismo popular

por Arnaldo Cardoso

Um ônibus de passageiros cheio para em um ponto e apenas alguns dos passageiros que ali esperavam o transporte para casa, depois de mais um dia de trabalho, conseguem entrar, espremidos e equilibrando-se nos degraus da porta de entrada. A catraca por onde devem passar os passageiros utilizando seu cartão eletrônico para pagar, pois desde muito a tecnologia substituiu o cobrador, fica no início do corredor e, logo depois, está a primeira porta de saída. É nessa primeira metade do ônibus que as pessoas costumam ficar amontoadas, percorrendo a menor distância para a obtenção de seu particular resultado. Uma expressão vulgar do utilitarismo neoliberal. O restante do espaço do ônibus até a segunda porta de saída fica frequentemente menos ocupado.

Ontem, em um desses ônibus em São Paulo, se repetiu uma cena frequente. Uma senhora que não conseguiu entrar pela porta dianteira do ônibus, decidiu entrar pela primeira porta de saída, aproveitando espaços vagos pela menor concentração de pessoas.

O motorista, que acumula a função mediadora que antes era desempenhada pelo cobrador, observa pelo retrovisor toda a movimentação de passageiros e, ao ver a senhora entrar por uma porta de saída, logo grita para a senhora descer pois a entrada só pode ser feita pela porta da frente, para que o pagamento seja feito. Como a senhora não desceu imediatamente, ele gritou novamente dizendo que não seguiria o percurso enquanto ela não descesse. Não demorou para que uma passageira amontoada na entrada do ônibus também gritasse para a senhora descer e, em seguida se viu formar um coro de passageiros mandando a senhora descer. Algumas dessas pessoas que gritavam, estavam instaladas logo após a catraca, com seus celulares em mãos, algumas jogando um game qualquer ou checando seu Instagram ou Whatsapp, bloqueando com seus corpos o fluxo de pessoas pelo espaço integral do ônibus. Paradas logo após a catraca e próximas da primeira porta de saída, são eloquente expressão da ideologia do menor esforço e a indiferença com o próximo. Essa indiferença pode ser lida, forçando um pouco a caracterização, como falta de consciência de classe. A reprodução irrefletida da ordem representada na figura que ali ocupa lugar de poder, o motorista, completa um quadro que remete ao fascismo. O que importa é o pagamento da passagem, ou seja, o cumprimento da lei, sem qualquer reflexão ou sensibilidade diante da situação dos passageiros que, após mais um dia de trabalho, suportando uma sorte de explorações, é submetido a condições desumanas de transporte, praticadas sob uma lógica do lucro perseguido pelas empresas de transporte detentoras de concessão pública sem a devida prestação de contas sobre o serviço oferecido. Ampliar o intervalo de tempo entre cada ônibus de uma linha, lotando cada um deles em número muito superior ao defensável para cada ônibus, é a fórmula já tornada corriqueira nas grandes cidades brasileiras. E o motorista, não menos explorado, desempenha com zelo a função de garantidor da ordem – que inclui a realização plena do lucro pelo proprietário do capital –, uma ordem que incide sobre corpos e mentes, tornando-os passivos, resignados, ou ainda, como o episódio revela, apoiadores dessa ordem que também os oprime. Uma expressão da moralização no utilitarismo neoliberal.

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A gritaria contra a senhora que diante da impossibilidade de ingressar no ônibus pela porta da frente considerou justificada sua entrada pela porta central ao ver espaços vazios no ônibus, faz lembrar a célebre narrativa bíblica (Lucas: 23:21) do povo respondendo à Pilatos sobre o destino de Jesus de Nazaré: Crucifica-o! Crucifica-o!

A ordem deve ser mantida, ainda que seu condutor, um motorista de ônibus ou um Presidente da República, conduz todos ao abismo. A obediência à regra, à lei, por indivíduos movidos por uma moral rasteira, desprovidos de ética e de solidariedade, é componente essencial dos fascismos. A família, os “cidadãos de bem”, defendem primeiramente a lei e a propriedade, não a vida e a dignidade humana. O filósofo Vladimir Safatle recentemente avaliou que estamos vendo prosperar no Brasil o fascismo popular, que encontra suas raízes no integralismo de Plínio Salgado, negligenciado por intelectuais e políticos brasileiros no último século.

É prioridade na eleição de outubro próximo derrotar Bolsonaro e a cultura fascista que seu torpe governo estimulou, mas é mais que notório que o desafio maior será estancar essa deletéria expansão fascista e empreender ações de longo prazo, através de consistentes políticas públicas nas áreas da Educação e da Cultura, para o enfrentamento de uma herança maldita de séculos de violência, egoísmo, exploração e desprezo pela res publica e pela dignidade humana. É também certo que problemas como a fome, a falta de moradia e de trabalho demandarão esforços colossais do próximo governo, mas a restituição de poder aquisitivo ao pobre para poder consumir picanha e cerveja, não será suficiente para combater males profundos que envenenam a alma do povo brasileiro.

Se for minimizada a gravidade da situação, desse fascismo popular operante, não só veremos seu fortalecimento como também se inviabilizará qualquer tentativa de construção de uma sociedade solidária, justa e próspera para todos.

Arnaldo Cardoso, sociólogo formado pela PUC-SP, escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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