Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Um Fantasma Ronda a Europa no Profético “Songs From The Second Floor”

 

Embora ambientado na ansiedade coletiva frente à proximidade do “bug do milênio” do ano 2000, “Songs From The Second Floor” do sueco Roy Andersson não perdeu nada da sua atualidade e relevância. No filme, o colapso financeiro e a crise espiritual são os dois lados de um mesmo movimento marcado ao mesmo tempo pela fé e angústia diante de instituições econômicas e religiosas que não funcionam. Tudo narrado com muito humor negro e “non sense”.


Quando pensamos na Suécia ou nos países escandinavos lembramos “daquele lugar com chocolate” ou de uma sociedade economicamente justa e com um louvável senso de igualdade. Mas desde os atentados terroristas impetrados por um jovem noruegues direitista, passamos a prestar a atenção para o “dark side” da cultura nórdica tal como o forte movimento Death e Black Metal, o latente espírito Viking rodeando a cultura jovem, e o existencialismo cristão do filósofo dinamarquês Kierkegaard que mescla a fé com a angústia (muito presente nos filmes do sueco Ingmar Bergman, por exemplo).


“Songs from the Second Floor” (Prêmio do Juri no Festival de Cannes de 2000) é uma comédia com forte humor negro e “non sense” que aponta para esse lado sombrio. Dirigido e escrito pelo sueco Roy Andersson, o filme é uma surpreendente colagem de referências estéticas tais como “Fargo” dos irmãos Coen, “Playtime” de Jacques Tati, os ambientes sombriamente cleans de Kubrick, as pinturas de Edward Hooper (incluindo a versão ao inverso da sua obra-prima “Notívagos”, como se fosse vista de dentro para fora) e o humor “non sense” do grupo inglês Monty Phyton.


Com esse filme Andersson iniciou uma trilogia, cuja continuação foi “Vocês, os Vivos” (2007) e uma terceira continuidade esperada para 2013.


A narrativa é composta por uma série de “sketches” onde a câmera numa se movimenta. Andersson pretende que o espectador mantenha uma relação intensiva com os planos, assim como quando observamos um quadro em um museu (daí as constantes alusões a telas do pintor norte-americano Edward Hooper). As vinhetas são a princípio fragilmente interligadas, mas, aos poucos, começamos a perceber certas recorrências como um enorme engarrafamento sem fim (várias vezes os personagens perguntam “como sair daqui?” ou “onde estou?”) onde ninguém consegue chegar a lugar algum e a referência constante à ideia de que a vida se resume “a comprar algo que possa ser vendido com um zero extra.”


As estórias são compostas por “perdedores”, em sua maioria corretores de bolsa e empresários que testemunham assombrados a ruína da sociedade, quadro a quadro. Ah!… e também um mágico incompetente que tenta serrar um voluntário ao meio e acaba quase partindo-o!

 

Constantes alusões às telas de Edward Hooper tal 
como a clássica “Notívagos” – 
relação intensiva com os planos

 

O mundo parece cair aos pedaços logo na primeira sequência onde um homem é demitido após trabalhar 30 anos em uma empresa e, no seu desespero, em súplica, se agarra aos pés do chefe que simplesmente o arrasta ao longo de um corredor kubrickianamente vazio e muito claro. Depois vemos um rotundo vendedor de móveis falido e desesperado no metrô chamado Pelle (Lars Nordh), coberto de fuligem e segurando um saco com tudo que restou do seu negócio: ele tocou fogo na sua própria loja para poder receber o dinheiro do seguro.


Em meio a um congestionamento de veículos interminável aprisionando pessoas solitárias e quebradas financeiramente, um homem cria uma oportunidade comercial com a chegada do Natal e a possibilidade do apocalipse com o Y2K (o chamado “bug do milênio”): vender estatuetas de madeira com Cristo crucificado. O homem tranquiliza Pelle afirmando que o negócio tem tudo para dar certo com a proximidade da data do aniversário de Jesus. Como Pelle fala, tudo o que ele quer é “colocar comida na mesa da sua casa”.


O denominador comum do filme é a princípio a economia e o dinheiro como a raiz de todos os males, inclusive espirituais. Nos sketches estão presentes a hipocrisia da religião organizada, o capitalismo corrupto, o progresso que leva à inutilidade da existência e à solidão etc.


Mas há algo de mais incômodo e radical sugerido por Roy Andersson que torna esse filme de 2000 atual e profético: a aproximação entre a crise religiosa com a crise financeira global.


Economia, Kierkegaard e a fé


Como já viemos desenvolvendo em algumas postagens anteriores (veja links abaixo), a partir das ideias de autores como Karl Marx, Jean Baudrillard e da antropologia, longe de ser uma ciência exata, a economia possui na sua essência e funcionamento um núcleo metafísico e ritualístico. Como Karl Marx sugeriu com a discussão do Fetichismo da Mercadoria na sua obra máxima “O Capital”, o funcionamento do capitalismo é, basicamente, feitiço e magia ao transmutar trabalho em mercadoria e mercadoria em dinheiro. Ou ainda em Baudrillard, onde a economia é concebida como puro “Potlatch” (instituição de tribos indígenas da América do Norte onde se distribuía e destruía a riqueza própria).

Em outras palavras, tal como na religião a economia é fundamentada na fé (ou “credibilidade”) dos seus agentes econômicos em relação a instituições tão abstratas (“mercado”, “valor” etc.) como as das religiões.


Essa aproximação que Roy Andersson faz entre a crise econômica e a religiosa somente é possível com toda a carga do existencialismo cristão de Kierkegaard presente na cultura nórdica.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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