Algoritmos e o fim do Direito Constitucional, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Estudiosos não perceberam que estão sendo rebaixados a seres irrelevantes pelos engenheiros de TI que criam algoritmos e seus donos

Algoritmos e o fim do Direito Constitucional

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Mattias Kumm é sem dúvida um grande constitucionalista. Mas a passagem dele pelo Brasil não foi muito notada. Eu mesmo só fiquei sabendo que ele deu uma palestra na USP quase um mês depois da mesma ter ocorrido. Nesse vídeo feito em Israel, Mattias Kumm reflete sobre o Direito Constitucional como se mundo já não tivesse sido profundamente modificado.

O constitucionalismo é uma espécie muito especifica de discurso cuja principal característica é orientar e estruturar a produção e a circulação de todos outros discursos que permitem à uma sociedade politicamente organizada existir garantindo aos cidadãos as condições indispensáveis para eles viverem, realizarem seus projetos pessoais e desenvolverem atividades econômicas. Assim, o discurso constitucional só pode realizar sua tarefa se for reverenciado, respeitado, valorizado e colocado acima de qualquer outro tipo de discurso.

Os debates constitucionais devem ser realizados de maneira séria e profunda, especialmente quando ocorrem nos Tribunais criados para resolver disputas constitucionais. A sociedade pode ser plural e aceitar todos os tipos de discursos (inclusive o jocoso), mas ela não deve equiparar todos as modalidades de discurso, porque isso provocaria um caos político e institucional.

De maneira geral, nossos regimes constitucionais eram estáveis. Mas eles começaram a sofrer um acelerado processo de degradação na última década. Isso particularmente se deve à métrica utilizada na internet, ambiente em que todos os discursos coexistem e são submetidos ao mesmo tipo de tratamento.

Os algoritmos das plataformas de internet não foram concebidos para valorizar uma modalidade de discurso ou para preservar a hierarquia entre os discursos em decorrência de sua qualidade. Os discursos mais valorizados são aqueles que se tornam mais virais.

Foi nesse contexto que a autoridade e a respeitabilidade de decisões de um tribunal constitucional como o STF brasileiro se tornaram paradoxalmente menos importantes do que as teorias da conspiração compartilhadas de maneira viral pelos adeptos de Bolsonaro que não aceitavam nenhuma derrota dele na esfera judicial. Em certo momento o próprio Bolsonaro disse “Eu sou a constituição” e afirmou que tinha o poder de não cumprir decisões da Suprema Corte que o desagradassem.

Os vídeos de Bolsonaro no YouTube atacando o STF eram mais vistos, compartilhados e impulsionados do que os vídeos produzidos pela Suprema Corte brasileira. Curiosamente os estudiosos do Direito Constitucional ainda não perceberam que estão sendo rebaixados a condições de seres irrelevantes pelos engenheiros de TI que criam algoritmos e pelos donos deles.

O que deslegitimou o sistema constitucional do Brasil não foi propriamente o que Bolsonaro disse, mas a propagação do discurso dele com mais intensidade e capilaridade em virtude dos algoritmos das plataformas de internet. Nelas o discurso constitucional produzido pelo STF tinha tão pouco valor de 2019 a 2022 que o prédio da Corte chegou a ser invadido e vandalizado em 2023 de uma maneira nunca antes vista.

Na atualidade o que compromete a autoridade do discurso constitucional não é a ameaça política tradicional e sim a hegemonia da métrica inventada pelos engenheiros de TI e o modelo de monetização das plataformas de internet valorizam qualquer coisa (Fake News, mentiras, conspirações, campanhas de ódio, racismo, etc…) porque no mundo virtual o discurso qualitativamente mais importante (aquele que estrutura a sociedade, ou seja, o constitucionalismo) não tem qualquer valor. No Brasil, ele desapareceu de tal maneira que as hordas radicalizadas invadiram o Supremo Tribunal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Uma pessoa defecou dentro do Congresso como se a merda dele tivesse o mesmo valor que a constituição e o discurso constitucional.

Nos últimos anos os livros de doutrina dos estudiosos do Direito Constitucional viraram papel higiênico. Sem admitir e refletir sobre isso será impossível derrotar o novo inimigo do constitucionalismo.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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