Pela dignidade e contra a cultura do estupro, por Arnaldo Cardoso

Conhecido por seu trabalho incansável em defesa dos mais vulneráveis, a pregação do padre Júlio combina franqueza, honestidade e devotado amor ao próximo.

Pela dignidade e contra a cultura do estupro

por Arnaldo Cardoso

No rito inicial da missa celebrada pelo padre Júlio Lancellotti no último domingo (6), antevéspera do Dia Internacional da Mulher, ele ergueu sua voz em homenagem a todas as mulheres e em oposição a uma educação machista que alimenta a cultura do estupro e da opressão contra mulheres no Brasil e em outras partes do mundo.

Dirigindo sua mensagem especialmente às mulheres que sofrem violências físicas e psicológicas, fez questão de mencionar as mulheres negras, indígenas, travestis, trans, detentas, quilombolas e em situação de rua. Emendando contundente condenação da guerra na Ucrânia, o padre Júlio pediu a Deus proteção e amparo às mulheres ucranianas e todas aquelas que sofrem com os filhos combatentes em guerras pois, endossando fala recente do Papa Francisco, repetiu a avaliação de que toda guerra é insensatez e loucura. Concluiu condenando o desejo de poder de líderes políticos que com seus desvarios só produzem destruição e sofrimento.

Invocando os princípios do cristianismo que tem na palavra e nas ações do Cristo o exemplo de solidariedade, prontidão no socorro aos mais vulneráveis, reconhecimento do irmão no outro, contrastou com aqueles que seguem falsos messias, que seguram com uma mão a cruz e com outra a pistola, que discriminam e segregam, que acumulam riquezas diante dos que passam fome, que ensinam aos seus filhos o individualismo egoísta que valoriza a linguagem das máquinas e despreza as relações humanas.

Rejeitando uma suposta seletividade na sensibilidade, lembrou o sofrimento das mulheres palestinas, sírias, iraquianas, indígenas da Guatemala, migrantes e refugiadas de toda a América Latina e África, que carregam seus filhos e o peso do sofrimento através de desertos, mares, florestas e campos nevados.

Bradando que nada revoga a dignidade humana, em clara menção ao deprimente episódio de vazamento de áudios produzidos por parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo em viagem à Ucrânia, o padre criticou homens vulgares e insensíveis que veem mulheres apenas como objetos para a satisfação de seus depravados desejos, negando-lhes respeito e dignidade. Apontou de forma certeira o machismo e a misoginia como promotores da cultura do estupro.

Condenando a política do ódio e da indiferença com os mais vulneráveis, o padre avaliou que também vivemos uma guerra no Brasil, talvez não declarada, mas que vitima principalmente os pobres e moradores de rua em cidades de todo o Brasil. Mencionando o abrigo Centro Temporário de Acolhimento (CTA 11) da Água Rasa, que ganhou visibilidade recente em função das suas condições precárias, infestado de percevejos, o padre ironizou a manifestação de admiração por algumas autoridades públicas do município, diante do descalabro constatado.

Mais que falta de recursos o padre Júlio alertou para a disfuncionalidade da burocracia insensível que consome a maior parte dos recursos públicos que deveriam diminuir o sofrimento dessas pessoas e promover o resgate de dignidade e autoestima. Implantam-se sistemas e softwares avançados operados por pessoas desprovidas de empatia.

Voltando ao tema do horror das guerras, o padre Júlio falou emocionado da carta do jornalista e escritor Jamil Chade (dirigida ao deputado paulista, autor dos repugnantes áudios compartilhados com grupos de amigos, sobre mulheres ucranianas) publicada no sábado (6) na Folha de S. Paulo, em que Chade invocando sofridas memórias, acumuladas através de diferentes trabalhos em zonas de conflito e campos de refugiados, trata da “condição feminina na guerra e na paz”.

Ao longo da missa, com os ritos intercalados por cânticos, ouviu-se ecoar na iluminada e colorida capela instalada no campus da Universidade São Judas, na Mooca-SP, um coro de múltiplas vozes repetindo refrões como “E quem fala com sabedoria / É aquele que ensina com amor”.

Conhecido por seu trabalho incansável em defesa dos mais vulneráveis, a pregação do padre Júlio combina franqueza, honestidade e devotado amor ao próximo. Invocando escritos do apóstolo Paulo, repetiu os ensinamentos sobre a importância de não só conhecer a Palavra de Deus, mas praticá-la, reconhecendo a humanidade em cada um.

Nos momentos finais da missa o padre chamou ao altar uma senhora de ascendência ucraniana e entregou-lhe um arranjo de flores em homenagem a todas as mulheres e, em particular, às ucranianas que sofrem os horrores da guerra.

Já fora da capela, com o padre Júlio cumprimentando muitos que vinham em seu encontro agradecer a inspirada e humanizadora mensagem transmitida na missa, desfrutei de alguns minutos de conversa com ele, quando ouvi do padre a defesa de que o jornalista, escritor e militante pelos direitos humanos e direitos dos refugiados, Jamil Chade, seja indicado para a Academia Brasileira de Letras.

Voltei para casa pensando na importância da ação de pessoas como o padre Júlio Lancellotti, o jornalista Jamil Chade, e inúmeras outras pessoas pelo mundo, que mesmo quando as trevas parecem cobrir todo o céu, não sucumbem e seguem com uma esperança teimosa, apostando que o sol há de brilhar outra vez.

E.T.: O padre Júlio Lancellotti assina o prefácio do novo livro de Jamil Chade, “Luto: reflexões sobre a reinvenção do futuro”, Editora: Contracorrente.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

1 Comentário

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  1. Padre Júlio Lancellotti fala mais “ecclesia ad extra”. Com efeito, um inocente útil, bem a propósito dos laicistas, inimigos do Evangelho. A despeito dele e os agentes pastorais atuarem próximos aos Sofredores de Rua, isso não é causa de admiração. Sãos as exigências éticas no seguimento ao Evangelho Cristo. As falas midiáticas direcionadas “intra ecclesiam”, são questionáveis.

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