Os crimes de discriminação nos hospitais

Por Caiubi Miranda, do blog Direitos Humanos no Trabalho

– Ei, negão! O remédio do meu pai já tá meia hora atrasado!

A interpelação partiu de um jovem parado na porta do quarto 330 onde seu pai estava hospitalizado.  O interpelado era um Técnico de Enfermagem, Joacir, que ignorou o chamado do jovem e continuou caminhando pelo corredor.

– Eu não vou mais atender ao paciente do 330, é um desgraçado de um racista. Esse foi o desabafo do Joacir para a Enfermeira Chefe, responsável pela gestão da equipe de trabalho naquele turno. A Enfermeira Chefe buscou acalmar Joacir mas sabia que teria que remanejar seu pessoal de forma que o quarto 330 não fosse mais atendido por um Técnico de Enfermagem que fosse negro, como Joacir.

A situação que pareceria banal à maioria das pessoas é sintomática de um mal que, aparentemente, vitima grande parte dos hospitais brasileiros, pequenos ou grandes, públicos ou privados: o preconceito dos pacientes e seus acompanhantes em relação à equipe de enfermagem do hospital.  A questão torna-se particularmente importante  porque, por razões não muito claras, a maior parte dos profissionais da área é negra e há, também, muitos homossexuais.

Um grande e dos mais conceituados hospitais de São Paulo decidiu entender e buscar uma solução para o problema. Na visão da área jurídica do hospital, as manifestações de racismo e homofobia são crimes tipificados. Ao envolver empregados do hospital e ocorrendo em suas dependências, sua omissão poderia ser encarada pela justiça como acobertamento de um crime ou, mesmo, cumplicidade. Mais que isso: para diminuir seus problemas, embora não oficialmente, nos processos de seleção de novos empregados a área de recursos humanos passou naturalmente a dar preferência aos candidatos brancos e, até onde era possível identificar, heterossexuais. Esse era, sem sombra de dúvida, um procedimento racista tipicamente criminoso.

Identificado e dimensionado o problema, a direção do hospital passou a buscar soluçõese percebeu, então, que o fato era muito mais complexo do que parecia à primeira vista. Como evitar que os pacientes internados ou seus acompanhantes tivessem comportamento preconceituoso – racista ou homofóbico – em relação aos empregados? O hospital não podia simplesmente expulsar esses pacientes e sequer adverti-los formalmente. Isso implicaria em coleta de provas, em ouvir testemunhas…  

– Nós estamos aqui para curar o paciente, não temos responsabilidade e nem ação sobre seus valores e crenças pessoais, argumentou o diretor médico da instituição numa reunião para tratar do assunto.  – E eu jamais vou fazer um boletim de ocorrência numa delegacia denunciando um paciente que nos procurou para tratar de um problema grave de saúde que exigiu sua internação, completou. Considerava-se também que o processo de internação era, por si só, estressante e deixava pacientes e acompanhantes nervosos e exaltados.

Por outro lado, havia a questão dos crimes cometidos contra os empregados e do potencial risco legal para o hospital. Nem sempre, a manifestação de preconceito limitava-se a um mero “Ei, negão” como no caso do Joacir. Existiam muitas situações mais graves e delicadas que essa e que não estavam sendo tratadas. Em geral, a Enfermeira Chefe ou mesmo alguém mais graduado procurava acalmar o empregado discriminado, dizendo que era um ônus da profissão e que ele precisava lidar com aquela situação.

Foram consultados outros grandes hospitais que reportaram ter o mesmo problema e que não tinham conseguido equacionar uma situação para ele e, ao final de três meses de discussão, esse grande e conceituado hospital de São Paulo chegou à conclusão que tinha um problema insolúvel e que tinham que conviver com ele.

Apenas para minorar a gravidade da situação, foram adotadas três providências:

a) a área de seleção de novos empregados não poderia, de forma alguma, discriminar no processo de seleção empregados não brancos ou homossexuais; o percentual histórico deveria ser mantido ao longo do tempo;

b) a política de não discriminação do hospital seria incluída no livreto de orientações gerais entregue ao paciente no momento no momento da sua internação;

c) os novos empregados negros e homossexuais receberiam uma orientação especial de como agir nessas situações, evitando um conflito com o paciente ou seu acompanhante.

Essas medidas são apenas paliativas e não solucionam o problema. Crimes de discriminação continuam sendo cometidos nos hospitais. E os hospitais, à medida que são coniventes com eles, passam a ser cúmplices.

Obviamente não é uma situação fácil de solucionar e ignorá-la só vai contribuir com sua perpetuação. 

Redação

33 Comentários

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  1. Mesmo entendendo a “sinuca de

    Mesmo entendendo a “sinuca de bicos” em que estão metidos os hospitais, entendo que os profissionais discriminados não podem simplesmente aceitar o tal “ônus da profissão”. Que fazer? Entrar em atrito com seus pacientes e familiares mal educados e preconceituosos? Também não é uma solução. Mas, os profissionais contam nos seus sindicatos de classe com departamento jurídico. Coleta de provas e de testemunhas para uma ação judicial posterior contra os racistas deveria ser encaminhada.

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

      Dirval,

      é uma “sinuca de bico” realmente. Também concordo com você que caberia ao sindicato da categoria aprofundar-se no assunto, dimensioná-lo adequadamente e, talvez em parceria com os hospitais, conceber uma solução para o problema. Que não é exclusivo de hospitais particulares, com pacientes branquinhos.  Nos contatos que fiz, o problema também existe nos hospitais públicos.

      Caiubi Miranda

  2. Pelo amor de Galileu!
    A

    Pelo amor de Galileu!

    A maioria dos pacientes que pode pagar um bom hospital é branca. Se eles exigem ser atendidos por profissionais brancos, apesar de absurdo, tem um lógica, ainda que perversa.

    Agora fico pensando, se isso ocorre nos hospitais públicos, onde a maioria dos pacientes tem a pele escura e eles não querem ser tratados por profissionais negros, aí o negócio é mais escalafobético ainda.

    Eu pensei que já tinha visto tudo no que se refere ao racismo, mas esta me surpreendeu.

    Aff.

     

    1. Tem logica simplesmente

      Tem logica simplesmente porque a pessoa pagou exigir ser atendida por alguem de determinada cor ?

      Não tem não, isso é racismo claro.

      Ainda mais em um hospital que mesmo sendo umaa instituição privada é um local público.

      Se o sujeito pensa dessa forma, então tem que contratar enfermeiros particulares de sua preferencia para ser atendido em casa.

      1. Daniel,Mas em nenhum momento

        Daniel,

        Mas em nenhum momento o paciente fez tal exigência absurda. O que houve foi uma ofensa (também absurda) por parte do filho do paciente e o hospital de forma inadequada passando panos quentes…pelo menos considerando as informações do post, pois a história pode ser mais longa.

        E por mais que seja compreensível a postura do profissional, mesmo criminosos merecem um tratamento digno, lembrando que não foi o paciente que foi racista. Pensar diferente neste caso é cair na mesma “vala” dos que defendem “direitos humanos para humanos direitos”…ou então, direitos humanos é algo bem seletivo, ao contrário do que muita gente prega e defende. Ou alguém aqui defende culpar e prender pais de menores que cometem crimes? E imagino que o filho em questão nem deve ser “dimenor”.

        1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

          Ed,

          o caso citado no post foi apenas um exemplo. Pela pesquisa que fiz, o comportamento discriminatório e ofensivo inclusive por partes dos pacientes é uma coisa corriqueira, acontece todos os dias e, em algumas ocasões, é extremamente grave. Não é um caso isolado.

          Caiubi Miranda 

      2. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

        Daniel,

        a meu ver, o crime continuaria existindo já que o critério do cidadão seria racista. Não tornar-se-ia público mas não deixaria de existir.

         

        Caiubi Miranda

    2. Só agora vc percebeu que o

      Só agora vc percebeu que o povão é altamente preconceituoso?!!! Mesmo esse “povão” sendo em sua maioria pardo/negro. Vcs da esquerda realmente vivem no “mundinho da fantasia esquerdista”, em que os pobres são todos “progressistas” vítmas da classe “média branca”.

      Se duvida de mim, faça o seguinte: vá a qualquer bairro de periferia e questione as pessoas sobre negros, homossexuais, ateus etc. Vc vai entender até o porquê o povão é o primeiro a querer linchar qualquer um que seja minimamente suspeito. Eu moro na periferia (Jaçanã)e estudei metade da minha vida escolar em escola municipal , por isso falo com conhecimento de causa.

      1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

        Rafael,

        acho que não há nenhuma questão política – esquerda, direita – envolvida. Mas acho que o preconceito e a discriminação existem em todas os estratos sociais. A homofobia, por exemplo, parece ser muito maior no que você chama de “povão” do que na classe média.

        Caiubi Miranda

    3. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

      Daniel,

      discordo totalmente de você. Discriminação pela cor da pele é crime e deve ser tratado como tal.

      Caiubi Miranda

  3. Dinheiro, nao moral

    Pra mim, o que o hospital esta querendo evitar e’ perder dinheiro. So’ isso. Pega mal vc denunciar seu cliente – especialmente esses que podem pagar por saude privada. E isso fica evidente quando o foco do problema para eles era simplesmente que o hospital poderia ser considerado cumplice, se nao agisse. Em nenhum momento, eles pensaram em tomar alguma medida pelo simples fato de que racismo e’ imoral, o motivo de preocupacao era apenas pelas consequencias financeiras que isso poderia ter. E por isso mesmo preferiram nao fazer nada.

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS

      Luis,

      certamente nos hospitais privados a questão econômica está presente, não só pelo eventual custo de uma ação judicial, como também pelo impacto negativo junto à comunidade.

      Caiubi Miranda

  4. Tire o seu racismo do caminho…

    Se até na dor e num momento dificil as pessoas ainda encontram tempo para serem preconceituosas e racistas, so uma coisa da para ser feita, processo em cima. 

    Agora essa questão de racismo começa em casa… no berço. 

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Maria Luisa,

      não acho que é tão simples assim mas concordo que o racismo depende muito da criação recebida pelo cidadão.

      Caiubi Miranda

    2. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Maria Luisa,

      não acho que é tão simples assim mas concordo que o racismo depende muito da criação recebida pelo cidadão.

      Caiubi Miranda

  5. Terminal.

    Um sujeito que está tomado por uma enfermidade, internado num hospital e se mantém preocupado em preservar suas convicções racistas ou homofóbicas, não tem uma enfermidade. Tem duas. Ou melhor, três. Ou múltiplas.

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Artaud,

      certamente você tem razão. Pena que nem todas elas podem ser tratadas no hospital.

      Caiubi Miranda 

    2. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Artaud,

      certamente você tem razão. Pena que nem todas elas podem ser tratadas no hospital.

      Caiubi Miranda 

  6. Cirurgia.

    Queria ver o racismo se o paciente chegasse todo lascado no hopital e o cirurgião fosse, negro, homossexual, etc.. Trabalhei com um cirurgião geral negro que nunca sofreu preconceito. Primeiro porque se colcava, segundo ele falava: quem está com o bisturi sou eu, eu estou no comando!

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Klaus,

      certamente a condição de cirurgião do seu conhecido – e o fato dele estar no comando – atemorizava os eventuais racistas operados por ele. É, com certeza, uma condição diferente de um Técnico de Enfermagem. Além disso, temos que considerar que nem todos pacientes são racistas, provavelmente são uma minoria.

      Caiubi Miranda 

    2. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Klaus,

      certamente a condição de cirurgião do seu conhecido – e o fato dele estar no comando – atemorizava os eventuais racistas operados por ele. É, com certeza, uma condição diferente de um Técnico de Enfermagem. Além disso, temos que considerar que nem todos pacientes são racistas, provavelmente são uma minoria.

      Caiubi Miranda 

  7. Bobagem

    A intenção é boa, mas o exemplo dado é uma tremenda bobagem. Qual o problema de chamar um negro de negão? Seria o mesmo que chamar  um loiro de “alemão” ora, pois.

    1. Nao é o mesmo nao, absolutamente nao

      Em certos contextos, a palavra alemao tb pode ter uma associaçao pejorativa. Mas nao tem séculos de escravidao por detrás. Um amigo chamar outro de negao nao é preconceito, mas um cliente chamar um funcionário do hospital é. 

    2. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      João,

      você tem razão, apenas chamar um negro de “negão” não é suficiente para caracterizar uma atitude racista. Isso só foi percebido quando aprofundamos o assunto e constatamos que as atitudes preconceituosas eram comuns no meio.

      Outra conclusão que chegamos é que muitas vezes a discriminação é percebida só pela pessoa que foi vítima dela e tudo parece “normal” para as pessoas que estão em redor.

      Caiubi Miranda

      1. subjetividade

        De fato, como referido pela Anarquista, tudo depende do contexto e do tom empregado o qual pode ter sentido pejorativo e, portanto, discriminatório. No entanto, discordo que o simples contexto cliente/funcionário seja o suficiente para a caracterização de crime de racismo ou discriminação apenas por chamar o outro de negão.

  8. Esta é a geração

    Esta é a geração cristalzinho. Se quebra com facilidade. Nunca vi povinho tão ofendível como a juventude atual. 

  9. Boa medida  é   advertir

    Boa medida  é   advertir  pacientes,parentes amigos e fornecedores,  que  a uma ofensa   terá como contrapartida operação tartaruga e a continuar  a seguinte  será  jacaré… 

     

  10. Injeta um veneno mortal na

    Injeta um veneno mortal na veia desses racista e sai de fininho, eh,eh,eh.

    Falando sério.

    Acho que na maioria das vezês o preconceito não parte do paciente e sim de alguns acompanhantes.

    O paciente, dependendo do estado de saúde, está tremendamende fragilizado e qualquer ajuda é bem vinda.

    Duvido que no momento de dor profunda, o pacinete vai escolher quem vai lhe aplicar uma injeção para alívio da dor.

    Acho que o preconceito parte de alguns familiares, que estão devido o estado de saúde de um ente querido,  sob grande pressão e emoção, e nessa hora qualquer coisa pode sair de controle.

    Agora, em relação ao médico negro rola preconceito sim.

     

     

    1. CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO NOS HOSPITAIS


      Gilson,

      nem todos os pacientes e nem todos acompanhantes são racistas ou homofóbicos, são certamente uma minoria. Mas, pelos depoimentos, a menos que estejam muito debilitados, os pacientes também se comportam dessa maneira. E, é claro, estão todos em condições de stress proporcionada pelo fato de estarem num hospital.

      Caiubi Miranda

  11. Auxiliares de enfermagem excelentes.
    Recentemente uma grave crise renal me levou a internação hospitalar de emergência. Um procedimento cirúrgico esperado para ser de curta permanência acabou saindo das previsões e quando retornei a consciência , depois de ser anestesiado , estava num leito de UTI. Este fato me estressou de maneira inusitada. Naquele ambiente os únicos que me pareceram humanos e tratáveis foram estes auxiliares de enfermagem como retratados no post. Só tenho elogios para fazer a este time. E agradecer porque pude contar com eles. A manifesta atitude racista neste caso é uma doença social a ser combatida.

  12. Alguém saberia dizer qual a

    Alguém saberia dizer qual a função atual do Enfermeiro?

    Pergunto isso porque, antigamente, era o profissional que ministrava medicamentos, aplicava injeções, tirava sangue etc. Uma espécie de longa manus do médico.

    Mas já há muitos anos, sempre que preciso fazer quaisquer dessas coisas, somente sou atendido por técnicos ou auxiliares de enfermagem.

    A única função que vejo enfermeiros exercendo é, justamente, a de chefe dos técnicos ou auxiliares. É só isso que eles fazem? Pergunto por curiosidade mesmo, não estou questionando a necessidade/utilidade de tal profissional.

     

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