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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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25 pontos para entender o legado da doutrina de segurança nacional da ditadura civil-militar

Há semelhanças entre o que aconteceu na época da Ditadura e o que acontece hoje em dia. E não se trata de coincidência, mas de reincidência.

25 pontos para entender o legado da doutrina de segurança nacional da ditadura civil-militar

Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas. Que vieram como gotas em silêncio tão furioso. Derrubando homens (…) Devorando árvores, pensamentos”. (BY FAGNER):

60 anos de tortura e perseguição na periferia urbana brasileira: “Parece que foi ontem”: Mas foi!

por Marcelo Karloni

  1. DILEMAS E GOVERNOS DEMOCRÁTICOS, TAREFA INCONTORNÁVEL

O Brasil de 2024 encontra-se novamente diante de um dilema. Não, não é a escolha presidencial, esse foi resolvido em 2022 com a eleição em 30 de outubro. E não, também não são as eleições municipais que servirão de grande teste para o Governo Federal. Quem está atento às movimentações políticas, projetos e mesmo investigações em andamento, sabe disso. O dilema que se apresenta é um pouco mais sensível e, caso não resolvido, pode significar apenas o “congelamento” das forças golpistas e não seu extermínio, como os setores progressistas e democráticos anseiam.

O golpismo no Brasil hiberna regularmente para, em seguida, retornar. É por causa disso que entre 1946 e 2016 tivemos poucos presidentes que encerram seus mandatos. O golpe anda à espreita em nossa sociedade exatamente por que suas forças, no momento em que se veem sob ameaça de extinção, conseguem no último instante negociar uma trégua que frequentemente lhes permite seguir existindo.

Qual a razão para tal? Há algumas apostas feitas por quem acompanha a vida política e a história brasileira. Uma delas é a não realização da justiça de transição tornada fato com o fim da filosofia da doutrina da segurança nacional e constituição do inimigo interno.

2. A PERIFERIA NEGRA E SEU PAPEL NA NÃO-REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO: o novo inimigo interno

Fala-se de filosofia porque esse é ainda o fundamento que forma as forças armadas no Brasil em suas academias, as mesmas que ainda chamam o golpe de 1964 – que este ano completa 60 anos – de revolução e veem o comunismo como ameaça em cada esquina de nossas cidades, suas periferias e nas universidades públicas.

As Forças Armadas ainda carecem da existência de um “inimigo interno” para sustentar sua existência, falsamente compreendida como defesa de fronteiras ideológicas e não reais. No Brasil, a figuração do “inimigo interno” e a busca por seu extermínio pode ser vista nas estatísticas de violência policial nas periferias das grandes cidades. Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), em 2021, para cada policial morto no Brasil, houve 34 mortes de civis. Na soma total foram 6.100 mortos no país pelas polícias estaduais, sendo 81,5% negros. Desse total de 6.100 mortos, 97% ocorreram em ações das polícias militares, responsáveis pelas ações ostensivas de patrulhamento.

Do outro lado, 183 policiais morreram, sendo 83% do total membros da corporação da polícia militar. O que chama também atenção é o fato de que 76,5% das mortes de PM´s se deram quando esses estavam fora de serviço.

Quando fora de suas escalas de serviço, esses servidores públicos precisam recorrer a “bicos” para complementar sua renda e de suas famílias além de serem esses os que mais reagem aos assaltos à mão armada quando abordados.

A precariedade das condições de trabalho e salários dos nossos policiais finda por além de aumentar os números de suas baixas por homicídio, cooperar na outra ponta do fenômeno de violência na manutenção das mortes de civis inocentes sobretudo em periferias e população negra.

Estado de guerra permanente, assim como defendido na DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO, que opera ainda hoje como o mindset  das operações policiais. Mas o que é essa doutrina de segurança nacional? E o que é o “inimigo interno” por ela descrito? Que relação há com a politica urbana? Toda!

3. A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL

1964 é um ano que entrou para a história do Brasil como o ano do golpe Civil-militar. Por vinte e um anos, entre 1964 e 1985, o país teve nos mais altos postos de comando, especialmente no executivo, militares e seus apadrinhados civis. Durante esses 21 anos, as instituições – as formais e organizadas segundo marcos legais e burocráticos – se viram guiadas por uma orientação alinhada com uma doutrina. Sim, trata-se de doutrinação.

A conhecida doutrina de segurança nacional e desenvolvimento (DSND) foi responsável por alimentar a formação de nossas forças armadas e polícias estaduais. Porém, sua influência se estendeu para além dos anos finais da ditadura. Advogo, inclusive, que elementos dessa doutrina são responsáveis pela manutenção de uma forma de gestão da segurança pública de nossas cidades que vitimiza, sobretudo, a população nas suas periferias, formada em sua maioria por negros e pobres.

A Constituição Federal de 1988, conhecida por Constituição Cidadã, após as duas longas décadas de autoritarismo institucional, submeteu o comando das forças armadas à presidência da república. Porém, apenas no ano de 2004 é que o MINISTÉRIO DA DEFESA passou a ser condutor de fato de todas as ações e política de defesa do país. Portanto, somente após 16 anos sob o governo do Partido dos Trabalhadores é que as Forças Armadas e toda a política de defesa se viu subordinada, ao menos legalmente, ao pleno comando civil.

4. HERANÇA INSTITUCIONAL

O Brasil amargou durante mais de 40 anos uma orientação de defesa e um tipo de formação das forças armadas que apenas se viu em alguns momentos, no máximo, arrefecida, mas nunca abandonada. É assim que se assistiu no país, por meio da continuidade de uma ação das policiais militares estaduais, à criminalização das populações da periferia de nossas grandes e médias cidades. Criminalização essa fundada na lógica do INIMIGO INTERNO.

Na verdade, o que de fato sempre houve é a contenção da participação nas decisões nacionais dos estratos menos favorecidos.

5. A BUSCA POR UM INIMIGO COMUM

A busca por um inimigo comum é evidenciada nas perseguições dos políticos de esquerda durante a ditadura, na vigília constante das universidades e no monitoramento dos movimentos sociais e seus lideres Essa política de Estado – pois de fato foi uma política de Estado e não a decisão de um individuo isolado como desejam fazer parecer – se viu implementada pelo uso dos recursos de repressão para sufocar e intimidar qualquer vento de divergência.

No contexto geopolítico internacional, o que se via era a disputa territorial e de narrativas ideológicas entre os EUA e a extinta URSS. Na disputa por áreas de influência, um dos recursos utilizados, sobretudo pelos EUA, era a fragilização das forças de defesa nacionais dos países na América Latina, visando resguardar-se de sublevação nacional diante de sua política imperialista.

Essa fragilização deu-se exatamente a partir da constituição de uma ideia muito bem vendida, a de que havia “INIMIGOS INTERNOS” que deveriam ser combatidos pelas forças armadas com objetivo de defender os interesses nacionais e seu próprio povo.

Fato é que as forças militares dos EUA, tanto secretamente quanto abertamente, insuflaram Golpes de Estado, realizaram espionagem e treinaram militares brasileiros para a aplicação de técnicas de tortura.

6. O FRONT É BEM AQUI

A interferência da política estadunidense teve como suporte atores como setores cívico empresariais conservadores, mas também um judiciário conivente e conservador.

A soberania brasileira, diga-se claramente, se viu não apenas perdida, mas humilhada no cenário internacional, porém, internamente, foi valente contra seu próprio povo. E não, não foram militares isolados que o fizeram. Foram os comandos a serviço do Estado brasileiro. O modo de abordagem da questão do autoritarismo é estrutural e sempre foi.

7. É ESTRUTURAL E NÃO CONJUNTURAL

Não é apostando na responsabilização de indivíduos que teriam cometido excessos que se garante civilidades, mas sim na demolição de estruturas desde sua raiz e, no caso em tela, a formação segundo os moldes da constituição do inimigo interno.

Há quem aposte nesse sentido, ainda que a Constituição de 1967 – sob a ditadura – teve e ainda tem continuidade na atualidade. Não legalmente – embora às vezes também tenha – mas, sobretudo, nas práticas de segurança pública e condução de instituições, como o judiciário e policias militares.

O que há de perverso e assustador nessa continuidade é que processos de extermínios tão comuns durante a ditadura civil-militar seguem acontecendo, apenas havendo algumas mudanças de circunstâncias para o assassinato. Hoje, em muitas ocasiões, o critério para o extermínio de uma pessoa é a sua INVISIBILIDADE.

8. NAS PALAVRAS DA EMINÊNCIA PARDA

O general Golbery de Couto Silva, criador do Sistema Nacional de Informação(SNI), também conhecido como “eminência parda”, é quem pode nos ajudar a entender o porquê dessa invisibilidade.

Segundo a lógica de formação da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, vivia-se durante o período entre 1964 e 1985 num estado de guerra permanente. Em lugar de ações de dura repressão e violência serem considerados exceções, elas foram transformadas em regras. Ou seja, o Estado se viu autorizado moralmente, por si mesmo e pelo apoio popular que havia dentre setores privilegiados, a usar todos os seus recursos para perseguir e exterminar os “AMEAÇADORES DA ORDEM PÚBLICA”.

9. INIMIGOS DA PÁTRIA

O inimigo da pátria sem bandeira, sem uniforme e sem uma declaração de guerra declarada, poderia ser qualquer um: criança, professor, advogado, politico…enfim, não importava sua identidade social, qualquer fala ou posicionamento que o entregasse seria motivo para ser enquadrado como INIMIGO DA NAÇÃO e não apenas do Estado. Estado e Nação viraram sinônimos. Portanto, a doutrina de segurança nacional não conseguia conceber a ideia de que fosse possível ser divergente, discordar, ser diferente e, ao mesmo tempo, ser brasileiro e patriota. (Recado aqui é pra todos nós da esquerda também. Discordar é também construir).

10. ORDEM E PROGRESSO

É dessa época que emerge a noção esdrúxula de que todos os que se opunham à tortura, perseguição e ao governo eram considerados não-patriotas e terroristas.

Essa noção ainda hoje reinante em grupos sociais de que discordar é ato de desordem e de quem não sabe trabalhar em “equipe” vem dessa lógica negadora de identidade. O que se deseja é, se possível, apagar ou exterminar qualquer comportamento desviante do grupo dominante, sob a justificativa de manutenção da paz e da ordem.

11. VIGILÂNCIA PARA A PAZ

Segundo esses grupos dominante, é necessário uma ordem imposta, porém pacifica. Pacifica para quem se alinha, mas de guerra contra quem discorda. Desaparece aí a distinção entre policias e forças armadas. As primeiras passam a ser vistas como forças auxiliares das segundas e assim farão.

Controlando reuniões, vigiando professores em universidades, escolas, sindicatos e movimentos de bairro, a DSND cumprirá seu papel como asseguradora legal da PAZ PÚBLICA. Sob qual manto? Do sangue e da tortura dos que discordam.

Outrora alvos de preocupação, as fronteiras que devem ser vigiadas não serão mais entre países, mas, sim, as ideológicas. Cruzar tais limites colocará o cidadão como inimigo e, caso respeite as hierarquias, os porá como soldados.

12. VIOLÊNCIA E LETALIDADE POLICIAL NO ESPAÇO URBANO

A Lei de Segurança Nacional (LSN) de número 7.170 de 1983 conseguiu a  “proeza” de equivaler crime político s crime comum e isso produziu algo ruim nos anos que se seguiram ao fim da ditadura.

Na prática, o produto dessa doutrina foi a incapacidade de se distinguir entre espião internacional, militante pacifista e pequeno assaltante da periferia. Todos passaram a ser vistos como ameaça ao Estado e à Nação.

Crimes de desaparecimento passaram a ser julgados pela justiça militar. Na verdade, tais desaparecimentos foram atribuídos à má conduta do policial ou militar. Desse modo, o Estado conseguia escapar de sua responsabilidade e, mais uma vez, transferir a responsabilidade por uma política de segurança que até hoje insiste em não ser reformado ao soldado de baixa patente, mas jamais ao general que dá a ordem.

13. POR QUE A RECORDAR É URGENTE? PARA QUE NÃO SE REPITA EM ÉPOCA OU ESPAÇO ALGUM

Há semelhanças entre o que aconteceu na época da Ditadura Civil-militar brasileira e o que acontece hoje em dia? Sim. Aqui não se trata de coincidência, mas de reincidência. Quem reincide? o Estado brasileiro que custa a enfrentar o dilema da não realização da justiça de transição.

Alguns dados podem ser levantados que sustentam parte do argumento até aqui posto, qual seja, o de que as “balizas” institucionais da atuação das forças de segurança no Brasil seguem condicionadas pela doutrina da segurança nacional.

A polícia militar (PM) do estado do Rio de Janeiro entre 2003 e 2012 matou 9.646 pessoas. No estado de São Paulo, entre 2005 e 2009, a PM matou 2.045 pessoas.

14. NÚMEROS, NÚMEROS…E AINDA ASSIM…

Para efeitos de comparação, entre 2005 e 2009 o total de pessoas mortas em ações policiais (todas as polícias juntas) nos EUA foi de 1.915 pessoas. O problema é que os EUA tinha à época algo em torno de 300 milhões de habitantes e São Paulo algo em torno de 40 milhões. Já a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que possuía cerca de 5% da população estadunidense no período, matou em dois anos o mesmo número de pessoas  que as polícias dos EUA matou em cinco.

Há ainda mais a ser dito. Por exemplo, vejamos os dados gerais de homicídio no Brasil e não apenas da ação das forças de segurança estaduais. Segundo publicação do IPEA e do Atlas da Violência, em 2014 teria havido 59.627 homicídios no Brasil. Entre os anos de 2004, quando Brasil registrou cerca de 48 mil homicídios, e 2014, quando registrou cerca de 59 mil, o aumento foi de 11 mil homicídios.  Portanto, em 2014, tivemos uma taxa de 29,1 homicídios por cada grupo de 1 mil habitantes. Esse valor equivale a 10% do total de homicídios no mundo.

15. ATLAS DA VIOLÊNCIA

O Atlas da violência de 2014 trouxe um item fundamental para entender o significado do número de homicídios total frente sua relação com a manutenção do Estado policial. Porém, o desafio levantado pelo Atlas é de que o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/MS/SVS/CGIAE), apesar de ser o mais confiável, não assegura que as mortes por ação letal da polícia são fielmente retratadas. Há um processo de subnotificação que precisa ser considerado. Segundo o Atlas da violência de 2014 :

No caso de mortes causadas por agentes do Estado em serviço, poder-se-ia esperar que os responsáveis fossem, em princípio, identificados. Se uma vítima chega ferida ou morta em decorrência de ação policial, o hospital deveria ser informado e registrar o fato na categoria Y35-Y36 do SIM, chamada “intervenções legais e operações de guerra”, mas a comparação com outras fontes de dados das Secretarias de Segurança Pública revela que essa notificação não ocorre, conforme apontado em Bueno et al. (2013). Mesmo quando observamos a tabela de mortes por intervenções legais por unidades da federação, fica evidente a subnotificação existente, pois não podemos entender o “0” como ausência de mortes nessa categoria, mas, possivelmente, como falta de registro (IPEA,p.15,2014).

Em 2004, das 27 unidades da Federação apenas dez apresentaram dados referentes a registros de morte por intervenção legal, como são conhecidas as ações de letalidade das polícias. Caso seja realizada a comparação entre os dados do SIM do ano de 2014 com os do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, o primeiro irá apresentar 681 mortes, ao passo que o segundo irá apresentar 3.099, sendo dessas 2.668 causadas por policiais.

16. A REPARAÇÃO SELETIVA

Realizando-se o recorte étnico, o desenho adquire contornos ainda mais perversos. Segundo o mesmo Atlas da violência de 2014, o afrodescendente no Brasil entre 15 e 29 anos possui probabilidade muito maior de ser vitima de homicídio. Nos seus 21 anos, esse individuo tem chance 147% maior de ser morto em relação ao branco, amarelo, ou ao indígena.

Em 2014, para cada não-negro que sofreu homicídio, 2,4 indivíduos negros foram mortos. Coube a Alagoas a liderança dessa taxa naquele ano, uma taxa que foi de 82,5 por 100 mil habitantes negros. enquanto Santa Catarina, na outra ponta, obteve 15,2 na mesma taxa.

Em estado próximo de Alagoas, o Rio Grande do Norte, também na Região Nordeste,  teve um aumento nessa taxa da ordem de 388,8%, ao passo que São Paulo teve redução de 61,6% entre 2004 e 2014.

Visitando os dados mais recentes, ainda que com ressalvas, pode-se compreender parte considerável da questão. Ressalvas essas que terão, como ver-se-á mais à frente, relevância extrema para entender a continuidade da lógica do inimigo interno ainda presente.

17. MAIS NÚMEROS…E NADA!

A maior probabilidade de vitimas de homicídio no Brasil segue muito superior entre a população negra. Em 2019, 77% das vítimas foram pessoas negras. A chance de ser morto no Brasil é 2,6 vezes maior se você for cidadão negro.

Em Alagoas, por exemplo, quase a totalidade das vítimas de violência letal, 99% eram negros. De fato, desde o ano de 2015 as taxas de homicídio para a população negra nesse estado é 42,9 vezes maior que a população não negra.

18. NÚMEROS DIZEM MUITO MAS NÃO TUDO.

As ressalvas aqui precisam ser feitas. Números dizem muito, mas não dizem tudo. Os dados do Atlas da violência do IPEA, publicado anualmente, são fundamentais nesse sentido. Fundamentais inclusive nos dois sentidos diga-se. No sentido de confirmar a permanência da lógica autoritária e de extermínio que guia as políticas de segurança, como também no de negá-las, a depender de quem esteja no comando do instituto.

Por exemplo, não há no ATLAS de 2021 nenhum item a tratar dos dados de violência policial. Eles simplesmente não estão relacionados. A última vez que esses dados foram apresentados foi no ATLAS de 2018.

Durante a publicação do ATLAS DE 2021, onde tal informação é negada, a presidência do IPEA coube a CARLOS VON BOELLINGER, nomeado pelo presidente Jair M. Bolsonaro.

19. O CIDADÃO DE BEM

Carlos Von Boellinger talvez não muito conhecido pelo grande público, porém ganhou destaque no lançamento do ATLAS de 2019, quando defendeu abertamente a posse e porte de armas pelo cidadão comum como solução para a violência, durante a conferência de lançamento. Segundo o próprio Boellinger: “Como cidadão, me incomoda a impossibilidade do cidadão de bem, sem antecedentes, ter uma forma de defender a integridade física, de sua propriedade e da sua família. Acho que esse é um direito do cidadão”.

20. ARMAR A POPULAÇÃO COMO CONSEQUÊNCIA DA NEGAÇÃO DO PASSADO

Não bastasse fazer essa veemente defesa do uso armas, o então presidente do IPEA fez a defesa dessa estrategia citando o caso de Angola que, segundo ele, manteve os números de homicídios baixos mesmo diante da população armada. Disse Boellinger: “A taxa de homicídio era baixíssima no país quando todos andavam armados. Anos depois, começou a aparecer a criminalidade. Os ministros me disseram que os brasileiros trouxeram um negócio de drogas que era praticamente desconhecidas, o povo começou a consumir e a criminalidade começou a surgir,. O governo de lá resolveu adotar normas rigorosas de repressão ao tráfico e a polícia não tem muito esse negócio de direitos humanos. Conseguiram reprimir as taxas de criminalidade e elas caíram novamente”.

21. AS DÍVIDAS DE UM ESTADO QUE INSISTE EM NÃO PAGAR A SOCIEDADE QUE LHE LEGITIMA

Não há muito a dizer nesse ponto. Basta um exame dos acontecimentos dos últimos meses no Brasil para ver que o processo social de constituição do inimigo interno que animou sanhas golpistas, invadiu a Praça dos Três Poderes e desafiou o resultado das urnas segue em porções do nosso território produzindo chacinas em busca de capital político, algo que ainda conta ainda com a possibilidade de ser “perdoada” mais uma vez em nome de um projeto de pacificação.

A “fatura” segue em processamento.

Talvez os constituintes de 1988 tivessem real esperança de que, passados quase 40 anos, o Brasil estivesse menos polarizado que hoje e que realmente houvesse uma pacificação que democratizaria o país. Porém, não foi o que se viu.

Setores conservadores se reorganizaram, viveram nas instituições, formaram quadros autoritários embaixo dos nossos olhos e tentaram golpear a democracia. Enquanto isso, celebramos a urna, quando deveríamos também por fim ao espirito da doutrina da segurança nacional ainda reinante entre forças armadas e, pasmemos, no próprio judiciário.

A pergunta que escuto frequentemente em análises que acompanho feitas por militantes de esquerda e progressistas é essa: “quando será o próximo golpe?”

22. O PASSADO SEMPRE VOLTA

Sempre disse e repito: o autoritarismo é um processo social antes de ser institucional. Há base para ele ser o que é. Nessa altura do “campeonato”, os iludidos que escolheram errado vão abandonar esse “barco”. O que ocorreu em Foz do Iguaçu, o que ocorreu na Cinelândia (quando um drone atacou pessoas inocentes na rua com fezes montada por um fascista que está preso) e o que pode acontecer amanhã é sim fruto de um discurso de ódio alimentado pelo lado fascista e não deve ser posto no colo de lideranças petistas não.

A despeito de toda crítica que se faça com legitimidade ao Lula ou ao PT, não há um episódio de incitação a morte de opositores. Digo nomes abertamente embora saiba que logo, caso sociedade não reaja, nem isso possa fazer. Hitler queimou o parlamento antes de assumir como chanceler supremo e por a culpa nos comunistas. O resto sabemos

23. NO VÁCUO E NA NEGAÇÃO, CHOCA-SE O OVO DA SERPENTE. “SERÁ QUE NINGUÉM PERCEBE?”

 Todavia, há um vácuo no Brasil. Esse vácuo, a meu ver, é produto de um anti projeto de caráter não civilizatório e oposto a toda noção de emancipação humana, devido à ausência de uma discussão sobre o projeto de país que queremos. Infelizmente, parte do debate atual que tem por pretensão pensar o Brasil se vê deslocado para discutir segundo critérios desprovidos de cientificidade que, se não for combatido, vai legar à nossa sociedade uma herança de continuidades e não de transformações.

Há muito a se dizer sobre a relação entre espaço e política. Muito mesmo. Basta recordarmos que parte de nossos principais instrumentos de planejamento, como a da reforma urbana, são frutos de lutas sociais. Isolar a dimensão da política da intervenção no espaço e nas cidades é o mesmo que,  por exemplo, destinar ao estatuto da cidade um lugar de retórica e não de prática.

Discutir projeto de cidade é discutir projeto de sociedade. Projeto de país. É política no sentido mais feliz do termo.

24. REVISTAR O PASSADO É TAMBÉM ABRIR CAMINHOS PARA SE REFAZER NOSSOS CAMINHOS TAMBÉM NA EDUCAÇÃO

Sinceramente, espero que aqueles que se propõem a discutir o espaço urbano em nossas universidades, no ambiente do poder público e mesmo aos meus alunos, entendam que, para além de uma racionalidade instrumental, existe uma que se sobrepõe, que é a racionalidade substantiva e criadora de civilidades, de cidadania, de equilíbrio na relação com a natureza e de democracia.

O projeto que deveríamos estar realizando em nosso país talvez encontrasse acolhida melhor se, em lugar de privilegiar a técnica, a subordinássemos ao atendimento das necessidades humanas.

Pessoalmente, começo a perceber que uma das razões que nos “jogou” nessa espiral de descida que estamos vendo no Brasil desde 2013 é porque, sem perceber, demolirmos a noção de que a política – a boa política – é a única saída.

Partimos de uma época de repressão entre 1964 e 1985, passamos pelo sonho de uma constituição cidadã em 1988, tivemos experiências de agenda de ordem neoliberal e neodesenvolvimentistas entre 1990 e 2013 e estamos tendo que lidar com a tarefa de discutir novamente a JUSTIÇA PARA OS FAMILIARES MORTOS E PERSEGUIDOS há 60 anos.

A agenda do capital nunca será civilizatória, já dizia Chico de Oliveira. Ela é uma agenda que, se preciso for, constrói consensos sem abrir mão de seus interesses de reprodução, mas também os desfaz, caso esses se vejam ameaçados.

25. A SAÍDA É PELA POLÍTICA E POR UMA ESQUERDA RENOVADA.

Um dos seus principais movimentos atuais das forças conservadores é a vilanização da política e a colocação no pedestal da moralidade e da virtude das técnicas ou seja, a tecnocracia. Isso pode levar mesmo a academia a implementar políticas de ensino e de currículo que põem as ciências humanas em lugar de menor importância. Acredito que isso aconteceu entre nós, por isso é tão comum encontrar defensores da técnica que apregoam sua neutralidade como virtude salvadora.

“A política. O viés político, isso é um mal. Não temos viés”, dizem, enquanto na verdade agem de uma forma puramente ideológica. Não vou nem falar de Althusser, de Paulo Freire e de Gramsci por aqui. Basta dizer que essa lógica é pavimento do fascismo que se vende como neutro e patriota enquanto, na verdade, é extremado e assassino quando convém de seu próprio povo.

Penso ser este o primeiro passo que demos para criar essa ambiência sufocante que está entre nós. Que passo? Vulgarizar as ciências humanas como domínio comum e conferir status de infalibilidade ao saber técnico. Ledo engano!Que o digam os cientistas e médicos nazistas que dominando o saber faziam experiência nos campos de concentração em nome da “ciência”.

Se há neutralidade no que ensinamos e pesquisamos, ela deveria se encerrar depois da obtenção dos dados, pois, após isso, a ciência construirá ou destruirá o que vier pela frente.

Mas claro, questionar sobre isso ficou difícil no Brasil de 2013 para cá, pois perguntar e refletir é coisa de “agitador” e “encrenqueiro”. O lamentável é que isso se espalhou em todos os espectros políticos.

O antidoto? No fundo todos sabemos: olhar o passado de 60 anos atrás mas também o passado recente pré golpe de 2016 e aprender com nossos erros.

Marcelo Karloni é Professor Adjunto IV do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Doutor em Dinâmicas Territoriais e Regionalizações do Desenvolvimento da UFPE, Mestre em Ciências Sociais na área de Estado, Política e Desenvolvimento da IFRN e membro da Rede BrCidades.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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