Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Qual é a mensagem do filme Não olhe para cima?, por Michel Aires de Souza Dias

O filme “Não olhe para cima” retrata as consequências psicossociais e subjetivas da cultura massificada.

Qual é a mensagem do filme Não olhe para cima?

por Michel Aires de Souza Dias[1]

A classe burguesa se formou a partir da cultura espiritual das ideias, da arte, da filosofia e dos sentimentos. Foi a partir do Esclarecimento que ela se libertou do mundo feudal, tomando o poder político na Inglaterra do século XVII e na França do século XVIII.  Ela produziu homens como Kant, Fichte, Herder, Voltaire, Goethe, Schiller e Hegel. Essa experiência formativa possibilitou que ela desempenhasse as tarefas econômicas e administrativas. Sem essa formação, o burguês não poderia assumir o seu papel social como empresário ou funcionário público (ADORNO, 2005). Em sua autoconsciência, ela foi capaz de monopolizar a formação espiritual (Bildung), impedindo o proletariado de ter acesso a ela. Com isso, a burguesia foi capaz de separar o mundo espiritual simbólico do plano material do trabalho. A desumanização implantada pelo processo capitalista de produção impediu que os trabalhadores tivessem acesso a uma formação cultural plena.

 O que caracteriza as sociedades de massas é a união entre as esferas da cultura e da indústria. Com o advento do mundo industrial capitalista, a classe burguesa desenvolveu uma cultura massificada para a classe trabalhadora. A formação do proletariado seria determinada por meio da industrialização da cultura, por meio do rádio, do cinema e da televisão. Desse modo, a cultura foi mutilada e perdeu sua essência espiritual formativa, transformando-se em semicultura, cuja função é disseminar ideologias a partir de produtos midiáticos. Assim, os produtos da semicultura servirão de conteúdo formativo para a sociedade de massa. Na avaliação de Adorno (2009, p. 49), “o fato de que a cultura europeia como um todo tenha degenerado em mera ideologia aquilo que oferece ao consumo, hoje prescrito a populações inteiras por managers e técnicos em psicologia, provém da mudança de sua função em relação a práxis material, de sua renúncia a uma intervenção direta. Essa mudança certamente não foi nenhum pecado original, mas algo imposto historicamente.”

O filme “Não olhe para cima” retrata as consequências psicossociais e subjetivas da cultura massificada. Quando o único conteúdo da consciência dos indivíduos são os conteúdos padronizados da indústria cultural surge a idiotia e a imbecilidade. Os indivíduos que assistem diariamente novelas, filmes enlatados, jogos de futebol, cultos religiosos e os programas de auditórios, tão comuns na televisão brasileira, perdem a capacidade de pensar de forma autônoma. Eles perdem a capacidade de perceber e compreender a realidade de modo pleno e significativo. A mídia provoca uma regressão da consciência e da sensibilidade, uma interrupção no desenvolvimento normal cognitivo. O cérebro perde sua plasticidade, perde sua capacidade de pensar de forma crítica e reflexiva.  Os indivíduos se tornam mais propensos a assimilação de ideologias, crenças e teorias da conspiração. Os processos racionais dão lugar ao predomínio de processos afetivos e inconscientes. Freud em seu livro, Psicologia das massas e análise do Eu, já havia demonstrado que o indivíduo na massa é mais facilmente sugestionado, sendo guiado por processos irracionais inconscientes do que propriamente por fins racionais objetivos: “A psicologia de massa, como a conhecemos pelas descrições tantas vezes mencionadas – o desaparecimento da personalidade individual consciente, a orientação dos pensamentos e dos sentimentos nas mesmas direções, o predomínio da afetividade e do psíquico inconsciente, a tendência a execução imediata dos propósitos que surgem -, correspondem a um estado de regressão a uma atividade psíquica primitiva” (FREUD, 2019, p. 130). São esses aspectos psicológicos emocionais e inconscientes que levam as pessoas a seguirem facilmente líderes religiosos ou políticos, mesmo que os fins objetivos sejam irracionais e contra seus próprios interesses, mesmo que sejam contra sua própria vida. É isso que o filme procura mostrar. Seguindo os discursos de líderes políticos e se entretendo com os programas televisivos e as fofocas na internet, as pessoas não acreditam que a humanidade será extinta por um meteoro. Elas passam a negar os fatos e as ciências.

Essa idiotia e imbecilização das massas pode ser observada de forma contundente nas redes sociais. As teorias da conspiração, o terraplanismo, as frases de autoajuda, o messianismo, as fakenews, o negacionismo das ciências, o pensamento por estereótipos, os preconceitos de toda ordem, o positivismo tóxico, o espiritualismo, o irracionalismo e a incapacidade de argumentar são a consequência da cultura massificada. Os indivíduos ao reduzirem sua vida ao consumo e aos produtos padronizados da indústria cultural, deixaram que sua interioridade fosse modelada pela produção de mercadorias. Em razão disso, as pessoas formam sua personalidade mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de tal modo que tudo assimilam e aceitam em termos dessa sociedade reificada (ADORNO, 1995). Para a filósofa Susan Sontag (1981), uma sociedade se torna moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens, quando as imagens passam a determinar nossas exigências com respeito à realidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, à estabilidade política e à busca da felicidade individual.

A regressão da consciência não ocorre apenas nas classes mais humildes, com baixo nível educacional, mas ocorre também nas classes educadas, que possuem uma formação superior. Uma grande parcela da classe média e da elite econômica também consomem os mesmos produtos pasteurizados da indústria cultural. Elas deixaram de assimilar a cultura humanística e científica, que possibilitou a formação da classe burguesa, e passaram a assimilar os produtos culturais padronizados da sociedade de massas. Não é incomum que um alto empresário leia apenas livros de administração ou autoajuda, mas que nunca chegou a se interessar por livros sobre ciência, literatura, história ou filosofia. Também não é incomum que esse mesmo empresário não compreenda o seu próprio presente, ignorando que vive em uma época de capitalismo flexível e de fim do Estado-Nação, mesmo que estes fatos determinem sua vida e seu futuro como empresário.  Do mesmo modo, a maioria das pessoas conhecem bem a vida de um artista ou de um jogador de futebol, mas ignoram, por exemplo, quem foi Marechal Deodoro da Fonseca ou Floriano Peixoto. Elas são desprovidas de consciência histórica. Também há muitas pessoas que defendem de forma messiânica um candidato a presidente, mas desconhecem sua perspectiva ideológica e sua política econômica, que podem ser contrárias aos próprios interesses do indivíduo.  O que é característico da indústria cultural é que ela deteriora a memória e a consciência, uma vez que os produtos culturais servem para entreter e idiotizar as pessoas, com o objetivo de melhor manipulá-las.

Referências

ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Indústria cultural                                            e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 45-61.

ADORNO, Theodor. Teoria da Semicultura. Revista Primeira Versão. Ano IV, n. 191, maio/agosto, p. 1-20, 2005.

ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: LP&M, 2019.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.


[1] Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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