Tia Ana – O adeus da guardiã da Dança da Lezeira do Piauí, por Francisca Sousa e Eduardo Pontin

O terreiro de sua casa foi reduto da tradicional dança centenária

Ana de Neco ao inteirar 83 anos (Foto: Francisca Sousa).

Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (VI)

Tia Ana – O adeus da guardiã da Dança da Lezeira do Piauí

por Francisca Sousa e Eduardo Pontin

Guardiã da dança da Lezeira na cidade de Floresta do Piauí, Tia Ana (Ana Francisca Torres, 1/1/1939-29/9/2022) se despediu desse plano. O terreiro de sua casa foi palco de grandes rodas de Lezeira, que eram iluminadas pelo clarão da lua ou pelo fogo ao centro do círculo. Descendente de uma família que desde o início do século XX cultivou com carinho a Lezeira geração após geração, Tia Ana fez seu papel ao abraçar a dança em seu terreiro. A Lezeira é um tipo de dança de roda de adultos realizada em pares de damas e cavalheiros muito cultivada no sertão do Centro-Sul do Piauí, com cancioneiro particular repleto de beleza e piauiensidade.

Tia Ana, também chamada de Dona Ana ou Ana de Neco era neta do cearense João Raimundo Torres (1883-1971) e da piauiense Firmina Maria de Jesus (1884-1949), dançadeira fina de Lezeira.

João Torres, um dos fundadores da Carnaibinha (Foto: Acervo da Família).

João é um dos fundadores da Carnaibinha, hoje cidade de Floresta do Piauí, chegando a região por volta de 1905. O terreiro da casa de João e Firmina foi o primeiro grande reduto de Lezeira do então povoado. Na Sexta-Feira Maior, após as obrigações religiosas, quando o galo cantava depois das 00h00, a Lezeira se iniciava e muitas vezes alcançava a barra do dia.

Com a morte de Firmina em 1949, a dança da Lezeira prosseguiu sendo brincada em outro terreiro.

Tia Ana era filha de Ângelo Raimundo Torres (1911-1959) e Francisca Ana da Conceição (1912-1989), conhecidos como Anjo e Chiquinha.

Ângelo Torres, fomentador da cultura popular do sertão do Piauí (Foto: Acervo da Família).

Ângelo Torres foi o mais próspero homem da antiga Carnaibinha. Sua casa foi a primeira da região a ser construída com alvenaria e a substituir o telhado de palha por telha, em 1957. Mesmo não participando diretamente, Ângelo era amante da cultura popular e atuava como um mecenas na região. Incentivava a prática do Reisado ofertando quartas de legumes e cereais aos reiseiros, que se apresentavam mais de uma vez durante a noite de 6 de janeiro em sua casa. Além disso, Anjo abrigava a dança da Lezeira em seu enorme terreiro, hoje praça pública da cidade, o que foi feito até sua morte, em 1959.

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Talvez influenciadas pela paixão do pai, todas as 8 filhas de Ângelo e Chiquinha deram para a cultura popular: Maria, Isabel, Luísa, Helena, Luzia, Francisca, Inácia e, claro, Dona Ana. Conta-se que para inventar uma roda de Lezeira de uma hora para outra, para garantir as damas bastava chamar as meninas de “Anjo” e Chiquinha.

Com a morte de Ângelo, seu irmão, Augusto Raimundo Torres (1922-2006), o popular Ti Gusto, passou a ser o anfitrião da dança da Lezeira na Carnaibinha. Ti Gusto é considerado o maior cantador de Lezeira que a Floresta do Piauí já conheceu.

Ti Gusto, o maior cantador de Lezeira da história de Floresta do Piauí (Foto: Acervo da Família).

Por volta da década de 1980, Ana de Neco se tornou a nova guardiã da família Torres a acolher a dança da Lezeira no ainda povoado Carnaibinha. Isso significa que o terreiro da casa de Dona Ana era o quarto grande reduto de Lezeira do lugar, o que a tornou matriarca dessa manifestação cultural típica do sertão do Piauí. Ou seja, por praticamente um século a dança da Lezeira foi cultivada na atual cidade de Floresta do Piauí pela família Torres, sendo ensinada na prática de geração para geração.

Dona Ana nutria profundo respeito pelas tradições de seus ancestrais e, até seu último ano de vida, guardou a Sexta-Feira Santa para reunir a família em memória das chagas de Jesus. Tia Ana era barriga cheia, a sua casa era lugar de fartura, lá comia-se bem, bebia-se bem e todos sentiam-se bem, com ela verificando caprichosamente se todos se agradavam em estar ali.

Dona Ana era mulher de coragem, enfrentava trabalho duro de roça, montava animal e resolvia o que tinha que ser resolvido. Talvez tenha sido a primeira mulher da região a possuir e administrar um bar, posição que costumava ser ocupada apenas por homens. Teve 7 filhos, porém, os compromissos maternos nunca a impediram de brincar e ir à festa.

Dona Ana dança Lezeira mais Seu Gabiru (Foto: Francisca Sousa).

Na dança da Lezeira Dona Ana era prato cheio. Para saber se um cantador de Lezeira domina mesmo o seu ofício, basta pedir a ele que entoe a cantiga do “Juazeiro”. Por ter 8 pés, é uma das cantigas mais extensas do cancioneiro da Lezeira, sendo muito comum um cantador se atrapalhar ao executá-la. Mas não Tia Ana.

Aliás, numa das últimas vezes que rodou uma Lezeira, em outubro de 2020 no terreiro de Seu Dodó (Domingo Mariano Marcolino da Silva) no povoado Macambira, em Floresta, Dona Ana pediu carinhosamente a Gabiru (Manoel Francisco de Lima), hoje chefe dessa expressão do lugar, que cantasse o “Juazeiro”. Neste dia, do alto de seus 81 anos, Tia Ana dançou com desembaraço respondendo cheia de ânimo: “ô tim, ô tim”. A cantiga do “Juazeiro” é Tia Ana todinha:

Juazeiro, juazeiro (ô tim, ô tim)

Teu espinho me espinhô (ô tim, ô tim)

Na raiz do coração (ô tim, ô tim)

Na firmeza do amor (ô tim, ô tim)

Vem cá meu bem (ô tim, ô tim)

Não vô lá não (ô tim, ô tim)

Por qual motivo? (ô tim, ô tim)

Falô razão! (ô tim, ô tim)

Em novembro de 2021, Ana de Neco foi reconhecida oficialmente Mestra Imortal pela Academia Florestense de Cultura Popular e pela Prefeitura de Floresta do Piauí, por sua relevante contribuição a expressões populares.

Ana de Neco foi agraciada como Imortal pela Academia Florestense de Cultura Popular (Foto: Francisca Sousa).

Quando queria reforçar uma fala sua, soltava o seu mais famoso bordão: “Ixente!”. Vaidosa, não importava a ocasião, estava sempre bem arrumada, com um par de brincos dependurado, além de acessórios como relógio e colar. Seu amor pelos animais demonstrava muito sobre o grande ser humano que era. Não era difícil chegar a sua casa e encontrá-la acarinhando os pintinhos que tratava com grande afeição.

Mesmo sendo guardiã da dança da Lezeira na cidade de Floresta, sem dúvida era como pessoa que de fato se destacava. Toda vida teve um gesto só, ou seja, era o que era, sem nenhuma falsidade. Boazinha e carinhosa, se dava com todos e a todos ajeitava.

A sensação de estar em paz na presença do outro só é proporcionada por seres verdadeiramente iluminados, que vêm a Terra com um propósito maior. Era o que Tia Ana emanava. Bastava um pequeno contato inicial para que ela te deixasse à vontade com a sua presença. Para isso, muito contribuía o seu farto e sincero sorriso. As pessoas dão apenas o que têm para dar, e Tia Ana era só amor.

A cultura popular do Piauí perdeu um importante elo com as suas raízes e a cada Dona Ana que se vai, mais pobre o nosso país fica. Pobre de cultura, pobre de amor, pobre de humanidade.

A bença, tia, descanse em paz.

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Eduardo Pontin

1 Comentário

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  1. nossa que lindo nedinha . minha mãe merece esta omenagem linda muito obrigada prima amei muito lindo seu trabalho e sensacional muito lindo parabéns beijos beijos

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