Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 3) – Filmes


Com essa postagem encerramos a trilogia sobre as mutações na percepção da realidade. Na década de 1990 dois filmes iniciam uma nova visão crítica da mídia e do Jornalismo: “O Quarto Poder” (Mad City, 1997) de Costa Gavras e “Mera coincidência” (“Wag The Dog”, 1997) de Barry Levinson. Em ambos os filmes a crítica não está mais na manipulação política dos fatos por jornalistas e interesses econômicos, mas em uma denúncia, por assim dizer, “metafísica” de que a realidade estaria tornando-se um “constructo” do próprio aparato midiático que pretende representá-la como notícia e informação. A realidade progressivamente assume aspectos de um estúdio de TV a céu aberto a tal ponto que não mais se distingue a verdade e a mentira, a ficção e a realidade.


A década de 1990 foi marcada por uma safra de filmes hollywoodianos que começam a tematizar as relações da mídia e jornalismo não apenas com os fatos ou as notícias, mas com a própria realidade. Se em outras décadas tivemos diversos filmes que denunciavam o caráter manipulador dos interesses políticos e econômicos de repórteres e dos conglomerados midiáticos (A Montanha dos Sete Abutres, 1951; Todos os Homens do Presidente, 1976; Network: Rede de Intrigas, 1976 etc.), na década de 1990 acompanhamos produções que vão além da denúncia da manipulação ao lançar uma estranha suspeita: o que entendemos como “realidade” pode estar se tornando um gigantesco estúdio onde acontecimentos são produzidos direta ou indiretamente pela presença dos aparatos de captação do real (câmeras, microfones, repórteres etc.): Ed TV (1999), Show de Truman (Truman Show, 1998), Herói por Acidente (Hero, 1992), O Quarto Poder (Mad City, 1997), Mera Coincidência, (Wag the Dog, 1997) etc.


Vejamos o caso do filme “O Quarto Poder”. Desde o filme “Z” (1969) sobre abusos da ditadura militar na Grécia, Costa Gavras se notabilizou como adepto do cinema político, mas nesse filme em particular o diretor abandona o campo da política institucional (o Estado, o Poder, a Repressão Política etc.) para entrar no ambíguo tema do jogo de mútuos reflexos entre mídia e realidade.

 

John Travolta faz o guarda de um museu (Sam Bailey) cujo mantenedor passa por dificuldades financeiras. Demitido pela sua administradora (Mrs. Banks), Sam desespera-se em perder todos os benefícios trabalhistas e retorna ao museu determinado em reaver o seu emprego. Dentro de uma sacola carrega armas e explosivos para, ingenuamente, “convencer” Mrs. Banks a recontratá-lo. Sam perde o controle da situação, obrigando a pegar todos que estavam no interior do museu como reféns para negociar com a polícia que cerca o local. Dentre os reféns está Dustin Hoffman (Max Breckett) que faz um repórter decadente que vê naquela situação inesperada uma forma de cobrir um evento que tenha repercussão nacional e o faça ser promovido e retornar ao noticiário da rede em Nova York.

A cobertura do fato pelo repórter que está no interior do museu junto com os demais reféns cria uma situação de múltiplos reflexos entre o fato e a mídia: as câmeras refletem a realidade espontânea dos fatos ou o próprio desenrolar dos acontecimentos são contaminados pela presença do aparato de cobertura televisiva? A certa altura Max Breckett é orientado pelos executivos da emissora a impedir que Sam se entregue de imediato à polícia para que a cobertura do evento alcance altos índices de audiência nacional no horário nobre. “Não se preocupem. Com Max em campo a história nunca termina”, afirma o âncora-estrela do telejornal Kevin Hollander. Eis o paradoxo quântico, simbolizado numa sequência do filme onde a vidraça do museu reflete a chegada do furgão da estação de TV local: quem reflete o quê?

Em “O Quarto Poder” os acontecimentos 
ganham uma estranha qualidade: 
autoconsciência metalinguística

Gavras nos mostra, progressivamente, como a realidade é seduzida pela ficção. No filme, duas imagens são recorrentes: primeiro uma configuração de plano que engloba sempre um monitor de TV dentro do próprio evento sempre sintonizado na emissora que transmite os acontecimentos. O evento vê-se a si mesmo ganhando uma estranha natureza autoconsciente ou metalinguística. É presença contaminante da mídia que transforma o evento em pseudoevento, realidade em supra-realidade.

Segundo: em vários momentos do filme encontramos personagens (populares curiosos, policiais etc.) tentando capturar a atenção das câmeras. A simples presença da câmera altera o objeto enquadrado, a observação altera o observado. 


E o que é mais importante: Max deixa de ser repórter para converter-se em um verdadeiro diretor de cena. O script e os principais personagens já estão prontos na sua cabeça: ele precisa direcionar a realidade para que ela confirme a sua pauta. Max orienta Sam a acompanhar um script, ou uma espécie de protocolo, que a mídia e a opinião pública esperam em eventos como esse (por exemplo, libertar duas crianças, uma negra e outra branca, para não ser acusado de racismo, pedidos de reivindicações plausíveis, etc). A partir daí a realidade se transfigura para a supra-realidade: Sam assume o personagem de sequestrador, consegue a simpatia da opinião pública e até pensa em um futuro programa na TV (o “Cantinho da Pesca do Sam”). Sam olha para si mesmo e para o próprio evento que ele protagoniza através do monitor da TV do museu. Esta situação metalingüística produz uma irresistível supra-realidade: história e estória, ficção e realidade, referente e simulacro confundem-se. O próprio interior do museu transforma-se numa espécie de set de gravação.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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