A lava-jato pode ser comparada ao tenentismo?, por Gustavo Roberto Costa

Boris Fausto repele a afirmação de que os tenentes foram representantes da “classe média”, o que seria, segundo defende, uma “simplificação”.

do Coletivo Transforma MP

A lava-jato pode ser comparada ao tenentismo?

Um contraponto à reflexão do Dr. Wilson Rocha Fernandes Assis

por Gustavo Roberto Costa

Leio, neste espaço, artigo intitulado “Uma PGR para a humanidade”, de autoria do Dr. Wilson Rocha Fernandes Assis, Procurador da República. Nele o Dr. Wilson aborda, de forma concisa, as atribuições constitucionais do Ministério Público. Segundo entende, “a instituição foi desenhada para defender os direitos humanos e promover a persecução dos indesejáveis, dos malfeitores, dos inimigos públicos”.

Em seguida, indica a necessidade de se compreender como o Ministério Público Federal, recentemente, “canalizou anseios difusos de reforma social, articulando-se com movimentos sociais de tendência regressista, capazes de sacudir as estruturas de nossa vida democrática”. A partir de então, aduz que os acontecimentos protagonizados pelo MPF (como a operação lava-jato) “sinalizam tendências da história do Brasil, movimentos que vêm antes e que vão além da própria instituição”.

O autor faz um paralelo entre o movimento tenentista – ocorrido nos anos 1920, formado, segundo ele, por “jovens bem formados no aparato estatal, que passam a operar com certa autonomia dentro da burocracia e apresentando-se como porta-vozes de aspirações da classe média” – com a lava-jato. Assevera que algumas das lideranças do tenentismo “empurraram o Brasil para sucessivas crises militares, que desembocaram no golpe de 64”. Para o Dr. Wilson, “os membros da Lava-jato são a reemergência desse veio persistente da história do Brasil”.

A seguir, faz um escorço histórico do Ministério Público pós-88 e indica a urgência de mudanças na instituição, que sejam aptas a demonstrar seu realinhamento “com o projeto de fortalecimento da democracia brasileira”, sob pena de sobrar a ela a “caducidade precoce e a insignificância”. Como conclusão, estabelece a importância de ser nomeado para chefiar o MPF um profissional que, “por seu histórico de vida e trabalho”, possa “sinalizar para os novos rumos que se pretende tomar”.

Inicialmente, seria necessário esclarecer a afirmação de que cabe ao Ministério Público “promover a persecução dos indesejáveis, dos malfeitores, dos inimigos públicos”, pois, num Estado Democrático de Direito, não há indesejáveis, nem malfeitores, e nem inimigos. Todos são sujeitos de direitos e todos são amparados pelos direitos e garantias estabelecidos pela Constituição. Não há quem esteja fora de sua esfera de proteção. Parece-me que colocar a questão nestes termos pode dar azo a interpretações errôneas sobre a verdadeira compreensão do autor a respeito das atribuições do MP.

Mas a principal divergência refere-se a comparar o tenentismo à lava-jato, movimentos total e completamente diferentes, seja por seus objetivos, seja pela realidade social em que inseridos, seja pelos resultados de sua intervenção.

Nos anos 1920, durante a República Velha, quem dominava o cenário político eram as elites agrárias. As oligarquias revezavam-se no poder, sendo a participação do restante da sociedade quase inexistente. A classe média urbana em ascensão tendia a apoiar movimentos que visassem a um liberalismo autêntico. Para Boris Fausto (2019, p. 261), isso significava “eleições limpas e o respeito aos direitos individuais”.

Em meio a esse anseio geral por mudança, surge o movimento tenentista, o qual teve como “suas principais figuras oficiais de nível intermediário do Exército” (o alto comando manteve-se alheio) (ibid., p. 263). Com a profissionalização do ensino militar, os oficiais passaram a ter uma concepção própria sobre a sociedade e o sistema de poder (ibid., p. 268). Segundo Fausto, os tenentes podem ser vistos como herdeiros do salvacionismo, porquanto tinham a pretensão não apenas de purificar a instituição de onde provinham, mas também a sociedade (ibid., p. 269).

No fundo, prossegue Fausto, “pretendiam dotar o país de um poder centralizado, com o objetivo de educar o povo e seguir uma política vagamente nacionalista”. Pretendiam “reconstruir o Estado para construir uma nação”, até então fragmentada em feudos, cujos senhores eram “escolhidos pela política dominante” (ibid. p. 269).

Boris Fausto repele a afirmação de que os tenentes foram representantes da “classe média”, o que seria, segundo defende, uma “simplificação”. Do ponto de vista de sua origem social, boa parte dos tenentes provinha de famílias de militares ou de ramos empobrecidos de famílias de elite do Nordeste (poucos foram recrutados entre a população urbana do Rio ou de São Paulo) (ibid., p. 269).

Ademais, a revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, apoiado por jovens políticos que surgiram à sombra da oligarquia, contou com a participação dos tenentes, uma força ainda importante (ibid., p. 276). A base social e política da revolução era ampla e complexa, formava um quadro heterogêneo, que se havia unido contra o mesmo adversário: os velhos oligarcas (ibid., p. 279). Portanto, o tenentismo não era algo que surgira “da cabeça dos tenentes”, mas era parte de um grande movimento social e político.

A revolução, afora isso, acabou com o poder das oligarquias e permitiu o estabelecimento de importantes avanços sociais, como, por exemplo, o desenvolvimento da indústria e do trabalhismo.

A lava-jato, por outro lado, surgiu durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual contava com significativo apoio popular (notadamente das camadas mais baixas). Um governo que, apesar de suas limitações, tinha uma clara linha social e desenvolvimentista. Muito diferente da realidade dos tenentes.

Os representantes da “operação” (juízes e Procuradores da República) foram responsáveis por inúmeras e gravíssimas violações aos mais basilares direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988, a mais progressista da história (até propostas legislativas apresentaram para a retirada de direitos). Não tinham, como os tenentes, qualquer reinvindicação de ampliação dos direitos democráticos. Defendiam tão somente, de forma vaga, vazia e ingênua, o “combate à corrupção”.

Foram protagonistas de um golpe de estado, que apeou do poder uma Presidente da República sem a comprovação da prática de crime de responsabilidade, o que se seguiu a regressões legislativas importantes (como a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários), bem como a infame e nefasta venda do patrimônio público para forças estrangeiras, nos governos que se seguiram. Foram responsáveis pela prisão ilegal (antes de sentença transitada em julgado) da maior liderança popular do Brasil, contribuindo para a eleição ilegítima de Jair Bolsonaro em 2018.

Não bastasse, diferente do tenentismo – um movimento genuinamente nacional –, vicejam indícios e elementos de que a lava-jato é um movimento criado fora do país, visando a atender interesses estrangeiros. Um exemplo (entre outros muitos) é a recente notícia de que seus integrantes negociaram com autoridades norte-americanas a divisão de valores cobrados da Petrobrás em multas e outras penalidades.

Desta forma, de qualquer ângulo que se olhe, não prospera qualquer tentativa de comparar (como coisas parecidas) o movimento tenentista e a lava-jato. O tenentismo representou verdadeiros anseios, compartilhados por muitos setores, de mudanças e avanços sociais, em meio a uma realidade desfavorável. A lava-jato, por sua vez, representou tão somente retrocessos do pouco que já havíamos avançado.

A aliança dos tenentes com os revolucionários de 1930 resultou em significativos progressos para a sociedade brasileira, notadamente a consolidação de um país industrializado. A aliança da lava-jato com os setores golpistas de 2016 resultou em retrocessos sociais espetaculares, os quais dificilmente serão revertidos no curto ou médio prazo.

O tenentismo foi um movimento genuinamente progressista, revolucionário.

A lava-jato, de triste memória, um movimento profundamente reacionário e até mesmo contrarrevolucionário.

Referência

FAUSTO, Boris. A história do Brasil. 14. ed. São Paulo: Editora da USP, 2019.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD

Coletivo Transforma MP

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Concordo plenamente. Isso agora foi tudo criado, ou maximizado por elementos que claramente quiseram assaltar o Estado brasileiro. No fundo, no fundo, os tenentes de 20 em diante estiveram mais para os trabalhadores sociais-democratas de agora, já que, ambos frutos da nascente classe média brotada do que restou dos campos paraguaios; de triste memória. ao contrário desses elementos questionáveis.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador