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Saudades do Futuro, por Denise Elias

Felizmente, faltam poucos dias para o fim desse que foi, sem dúvida, um dos mais desastrosos e perversos governos do Brasil.

Ricardo Stuckert

Saudades do Futuro

por Denise Elias

Em alguns aspectos, viver é uma das ações mais dialéticas do mundo, pois ao mesmo tempo que é maravilhosamente inigualável, é também muito difícil, o que demanda recorrer a várias estratégias para todos os dias acordar, levantar da cama e seguir em frente acreditando que faz sentido. E nos últimos quatro anos tudo ficou ainda mais difícil. Por isso, mais do que nunca, as saudades do futuro estão entre as mais fortes sensações hoje presentes em milhões de mentes e corações brasileiros.

Sob qualquer ponto de vista, as eleições presidenciais e parlamentares de 2018 são um marco para a periodização da história do Brasil. Sob o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) verdadeiras atrocidades foram e ainda estão sendo impostas à sociedade como um todo, com o apoio de parcela expressiva das elites econômica, política, jurídica, da imprensa e dos militares das Forças Armadas.

Paralelamente ao aparelhamento do Estado sem precedentes no país, tivemos o desmonte de inúmeras instituições e políticas públicas que, de alguma maneira, protegiam categorias sociais mais vulnerabilizadas, tais como os programas de incentivo à agricultura familiar, de combate à fome e à insegurança alimentar, à fiscalização e licenciamento ambiental, à demarcação de terras indígenas e para a formação de estoques reguladores de alimentos, entre tantas outras.

Felizmente, faltam poucos dias para o fim desse que foi, sem dúvida, um dos mais desastrosos e perversos governos do Brasil. Mas a herança que fica para todos os brasileiros não é nada promissora: instituições públicas destruídas por falta de investimentos e diretrizes adequadas; crise econômica e social; aumento da concentração de renda, da pobreza e das desigualdades socioespaciais; avanço do desemprego e da precarização das condições gerais de trabalho; aumento da inflação e a consequente dilapidação do poder de compra da população; crescimento do preço da cesta básica de alimentos etc.

Se não bastasse todos os colapsos supracitados, desde o começo de 2020, vivemos a pandemia de Covid-19. Para um país como o Brasil que teve um grupo de negacionistas à frente do executivo federal que rejeitam preceitos científicos mundialmente solidificados, as consequências foram ainda mais nefastas. Isso se deu pela ausência de uma política sanitária federal e o total descaso com a vacinação, que atrasou em vários meses o início da vacinação em massa da população, tal e qual com outras das medidas sanitárias básicas recomendadas por todos os especialistas da área.

Entre os resultados, tivemos o total descontrole da pandemia desde o seu início, fazendo do Brasil um dos epicentros globais da Covid-19, uma doença que matou perto de 700 mil pessoas em todo o país. Esta é mais uma herança desse governo que se encerra, já que provado está que esse número seria bem menor se as medidas sanitárias adequadas tivessem sido tomadas no tempo e da forma indicada pelos especialistas. Sem contar na ausência de intersetorialidade no enfrentamento da pandemia na esfera federal de governo, atingindo de forma atroz outras políticas públicas, como a de educação e a de cultura.

 A fome também cresceu de forma bastante acelerada desde o marco que serve para a periodização utilizada neste artigo, sendo mais uma das mazelas que precisarão ser enfrentadas com muito vigor pelo novo governo eleito que assumirá no próximo dia 1 de janeiro de 2023.

A violência no campo, traço estruturante da sociedade brasileira, ligada às disputas por terra e por água, também aumentou sobremaneira e pode ser comprovada pelo crescimento do número de assassinatos de indígenas e lideranças dos movimentos sociais no campo.

Por outro lado, desde 2019, o número de queimadas e desmatamentos criminosos bateu recorde atrás de recorde, tendo consumido percentuais significativos de alguns dos mais importantes biomas brasileiros, especialmente a Amazônia e o Pantanal. Contudo, até o momento, os responsáveis seguem impunes como mais uma prova do desmonte das políticas ambientais sob a batuta dos ministros do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, especialmente Ricardo Salles, que se notabilizou por uma declaração em abril de 2020, quando defendeu que o momento seria oportuno para aproveitar que a imprensa estava bastante ocupada com a cobertura da pandemia do Covid-19 para “passar a boiada” e aprovar desregulamentações ambientais. Importante lembrar que este ex-ministro se elegeu recentemente deputado federal pelo estado de São Paulo.

A venda de estatais importantes para o futuro do Brasil, tais como as refinarias da Petrobrás; a concessão de portos e aeroportos e a privatização de parques nacionais estão também entre as heranças malditas deixadas pelo governo que se encerra. Vale dizer que desde que foi anunciada a não reeleição do atual presidente – muito embora o mesmo praticamente tenha abandonado grande parte de suas obrigações – as nomeações, privatizações e concessões seguem em ritmo ainda mais acelerado. É como se tivessem deixado de cumprir o “feijão com arroz” para ganhar tempo e seguir até o último minuto do seu governo com a pilhagem do patrimônio do povo brasileiro, a mesma que promove desde o início de seu governo.

Poderíamos exemplificar esse desmonte com o recente anúncio da privatização do Parque Nacional de Jericoacoara, um dos mais belos trechos do litoral oeste do estado do Ceará, publicada no Diário Oficial da União e assinada pelo ministro da Economia Paulo Guedes, no último dia 12 de dezembro, ou seja, cerca de duas semanas antes do fim do atual mandato. Detalhe: ao contrário do governo que encerra agora, a concessão do parque será de 30 anos.

Outro exemplo da espoliação ao apagar das luzes do governo Bolsonaro é o sinal verde dado ao fracking em edital com concessões a entidades de petróleo e gás também no último mês de seu mandato. Trata-se de uma forma de exploração de reservatórios por meio de técnicas de perfuração já banidas em outros países por serem consideradas prejudiciais à saúde humana e do meio ambiente.

Outra aberração também de última hora desse desgoverno é a tentativa, às pressas, via processos administrativos e judiciais, de legalizar a grilagem de mais de 9 mil hectares de terras públicas ao norte do estado de Mato Grosso, no município de Nova Guarita, na Gleba Gama, já declaradas pelo próprio INCRA como de interesse social para Reforma Agrária. Esperamos que todos esses e tantos outros desatinos de última hora possam ser revogados pelo próximo governo.

Como se todas as mazelas citadas não fossem suficientes para estarmos com muitas saudades do futuro, o trabalho da Comissão de Transição do novo governo eleito vem descobrindo que o “buraco” é ainda mais fundo do que se imaginava e exigirá esforços extraordinários e vários de médio prazo para a reconstrução do país. 

Por tudo acima citado, o tecido social no país está totalmente esgarçado e a exclusão de milhões de brasileiros, o patrimonialismo e a manutenção da cultura do privilégio determinam, cada vez mais, como as relações sociais se processam no Brasil, inibindo a construção de relações de reciprocidade e de uma sociedade de direitos. Isso reflete em situações que temos vivenciado em nosso cotidiano, como tensão social, violência e banalização da vida humana.

Dessa forma, a agenda de reconstrução precisa considerar de maneira continuada e intensiva o diálogo com os movimentos sociais, a formação de uma frente popular e a reforma agrária, visando a construção de uma sociedade de direitos e não de privilégios como a que vivemos. A força para seguir em frente surge ao admitirmos que isso é possível.

Devemos sempre ter isso em mente, pois só assim será possível construir um outro futuro. Assim sendo, desejamos ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e a toda a sua equipe muita coragem. Coragem para a construção de um outro Brasil. E que nesse outro Brasil não existam retrocessos políticos, governos genocidas, latifúndios, desmatamentos, grilagens, trabalho escravo, alimento com veneno, fome, desigualdades socioespaciais e de gênero e racismo estrutural, mas que haja comida de verdade no prato de todas as brasileiras e de todos os brasileiros.

No Brasil, país de tantas contradições e desigualdades, não temos só fome de comida, temos também fome de mudanças. Seguimos, assim, cada vez mais com muitas saudades do futuro.

Denise Elias é Geógrafa e Doutora em Geografia Humana, Líder do Grupo de Pesquisa Globalização, Agricultura e Urbanização (GLOBAU), Vice-líder da Rede de Pesquisadores sobre Regiões Agrícolas (REAGRI), Pesquisadora da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe) e Colaboradora da Rede BrCidades.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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1 Comentário

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  1. Excelente, professora Denise. Eu vi muitas pessoas dizendo que, após a vitória nas eleições, fomos liberados para sonhar novamente com um futuro melhor. Que assim seja!

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